A vida e percurso de Vasco Pulido Valente

por Lucas Brandão,    19 Abril, 2020
A vida e percurso de Vasco Pulido Valente
Vasco Pulido Valente / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)

Vasco Pulido Valente possui um percurso muito rico no panorama cultural português. Não só escreveu como procurou construir História sobre o seu país, para além ter um histórico de ativismo e de resistência ao regime salazarista. Após essa fase, esteve na construção da democracia em Portugal, participando num governo na pasta da cultura. Porém, o seu reconhecimento tornou-se mais manifesto com uma presença assídua na comunicação social, escrevendo em diferentes jornais, algo que o acompanhou do início ao fim da vida. De voz sempre ácida e contestatária, tornou-se um dos mais emblemáticos rostos da discussão política em Portugal.

Vasco Valente Correia Guedes – Vasco Pulido Valente é pseudónimo, por desgostar do seu nome verdadeiro – nasceu em Lisboa no dia 21 de novembro de 1941, falecendo também nesta cidade a 21 de fevereiro de 2020, aos 68 anos. Nasceu numa família de intelectuais, fortemente vinculada à oposição ao Estado Novo, tendo pais que, outrora comunistas, se deixaram de identificar após a crescente radicalização política da União Soviética. Alguém que o influenciara muito foi o seu avô, Francisco Pulido Valente – tirou dele o seu pseudónimo -, médico e um dos responsáveis pela modernização do ensino de Medicina em Portugal, para além de ter sido o patrono de um hospital com o seu nome, em Lisboa. Cresceu, assim, desde cedo, em torno dos livros, nomeadamente dos clássicos da literatura francesa e inglesa, para além da convivência com membros da resistência comunista, que resistiam apesar da aversão dos seus pais ao comunismo nessa fase. Foi algo que perdurou no futuro historiador, embora só se deixasse de identificar com os seus valores mais tarde, já nos anos 1980. Após uma adolescência conturbada, entre uma relação tensa com a sua mãe e a passagem por algumas escolas particulares e até colégios privados em Lisboa – chegou a ser expulso no Liceu Camões -, viria a frequentar o curso de Filosofia no ano de 1962, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Era mais positivista – ligado a uma visão mais científica da filosofia – que existencialista, embora valorizasse o seu contributo literário.

Fazendo jus aos seus ascendentes, e confirmando, desde logo, a sua rebeldia, aderiu às lutas académicas anti-salazaristas e incorporou o movimento MAR – Movimento de Ação Revolucionária, à data coordenado pelo futuro presidente da República portuguesa Jorge Sampaio. Apesar das ligações à esquerda radical, Pulido Valente viria a aproximar-se da ala mais católica da oposição e escreveu em diferentes revistas, desde a revista de debate académica “Quadrante”, ligada à Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, até à ativista e aberta “O Tempo e o Modo”, sem esquecer a famosa “Almanaque”, onde passaram nomes como o poeta Alexandre O’Neill ou o dramaturgo Luís de Sttau Monteiro. Também ia dando os primeiros passos no jornalismo, nomeadamente no “Diário de Lisboa”, beneficiando de um crescente grupo de amigos intelectuais e ligados à atividade cultural. O jornalismo seria, assim, um percurso que seria bem mais explorado anos mais tarde.

No entanto, ainda antes da queda do regime salazarista, Pulido Valente viria a emigrar nos princípios dos anos 1970 para Oxford, cidade onde se doutorou em História, beneficiando de uma bolsa atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian. A tese que apresentou seria defendida pouco depois de abril de 1974, intitulada “O Poder e o Povo: a Revolução de 1910”. Já em plena democracia, deu aulas em diferentes instituições académicas portuguesas, nomeadamente no Instituto Superior de Economia e na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, para além de se tornar investigador-coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Iniciou, assim, um percurso fértil em trabalhos e em obras relativas à História de Portugal, nomeadamente da História da Política Portuguesa, assim como o estudo de alguns dos seus protagonistas.

A corrupção está íntima da cultura «nacional», no centro da ordem estabelecida, na maneira como os portugueses tratam de si e se tratam entre si.

“De Mal a Pior” (2016)

Conciliaria a atividade académica com o serviço ao seu país, fazendo parte do VI Governo Constitucional, sob a tutela de Francisco Sá Carneiro, que se candidatou e venceu as eleições em representação da Aliança Democrática. O seu percurso deambulou entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata, pelos quais foi demonstrando alguma afinidade durante os anos subsequentes. Admirador confesso deste primeiro-ministro, assumiu, assim, a pasta do Secretariado de Estado da Cultura, tal como o Secretariado de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, durante um ano, pouco depois da morte de Sá Carneiro. No entanto, Pulido Valente não se fechou no Partido Social Democrata, coordenando o Movimento de Apoio de Soares à Presidência (MASP), organização de apoio à candidatura bem-sucedida de Mário Soares à Presidência da República, em 1986, alguém que havia sempre admirado – nunca o deixou de tratar por “doutor Soares” – e de quem os seus pais eram amigos. Entretanto, e já nos anos 1990, seria eleito deputado à Assembleia da República, como independente, na bancada do PSD, acabando por sair ao fim de quatro meses, ainda no ano de 1995, após mostrar-se desapontado com o funcionamento do Parlamento, acusando a ociosidade dos seus membros e os seus pretextos partidários. Para além disso, sentia-se desgostoso com a incapacidade de Mário Soares de gerir “os caciques de esquerda” e os demais fragmentos do Estado.

Porém, este percurso havia-lhe dado prestígio e relevância na sociedade civil, que se tornou patente na vasta e numerosa colaboração que deu a diferentes jornais do país, como o “Expresso”, o “Independente”, o “Diário de Notícias” ou o “Público” (aqui, cunharia a “Geringonça” num dos textos que escreveu), com crónicas nomeadamente de teor político, para além de intervir na rádio e na televisão. Ganhou um estatuto de ser um dos mais mordazes e acutilantes cronistas do país, granjeando uma posição polémica em torno dos diferentes quadrantes políticos. A sua presença desordenada e desalinhada, embora vista como pessimista, foi sempre respeitada, dada a sua formação e a aplicação desta na sua análise política e social. Era quase como um policiador, sempre muito crítico tanto de governantes ligados à centro-esquerda e à esquerda – a Geringonça e os seus protagonistas – como à centro-direita – os dois executivos de Aníbal Cavaco Silva.

A sua visão do Estado como um controlador das diferentes fontes de atividade social e económica sempre foi patente, apontando o fundamento do fascismo para um Estado que procurava sustentar uma pequena burguesia. Assim, procurava dispor de um grupo amplo de funcionários, do controlo da banca, do ensino, da comunicação social e de um rol de empresas para poder exercer a sua autoridade e acentuar a sua exploração. Defendia, assim, menos Estado em prol de mais igualdade, de mais modernidade e de um maior progresso económico e social, inspirando-se no percurso histórico que fez na sua investigação académica para o deduzir e o defender de forma assertiva. Em muito criticou, assim, a herança do comunismo e as fações dentro dos partidos, que contribuíam para que se tornassem menos coesos e coerentes, em especial à esquerda.

Nas artes, viria a colaborar no argumento de filmes de diferentes cineastas portugueses, como António da Cunha Telles (em “O Cerco”, de 1970), António Pedro Vasconcelos (em “Aqui d’El Rei”, de 1992) ou Fernando Lopes (em “O Delfim”, de 2002). Na sua literatura, destacam-se obras como “O Poder e o Povo” (1976, uma historiografia da I República Portuguesa, distante da tipicamente marxista), “Ir Pró Maneta: A Revolta Contra os Franceses” (1983, uma revisão histórica da invasão francesa a Portugal nos inícios do século XIX), “Às Avessas” (1990, uma coleção de artigos escritos entre 1982 e 1989), “Os Militares e a Política (1820-1856)” e “A República Velha” (1997, dois trabalhos de análise histórica).

Escrever é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem escreve calcula, planeia, emenda.

Jornal Público, edição de 06/09/2009.

No século XX, escreveu “Glória” (2001, a biografia de José Cardoso Vieira de Machado, um escritor e político português que faleceria aos 35 anos, pouco tempo depois de cometer um crime passional, assassinando a esposa), “Marcello Caetano: as Desventuras da Razão” (2002, uma versão aumentada de um artigo que faz de retrato à figura do último líder do regime ditatorial), “Um Herói Português: Henrique Paiva Couceiro” (2006, a biografia de um militar e administrador colonial da transição do século XIX para o XX, sendo um dos monárquicos resistentes contra a recém-implantada República), “A Revolução Liberal (1834-1836) – Os «Devoristas»” (2007, uma crítica histórica ao liberalismo e ao pós-Guerra Civil de 1832-1834) e “Portugal: Ensaios de História e Política” (2009, debruçando-se sobre as turbulências políticas dos finais do século XIX e do percurso tumultuoso entre a República e a Ditadura). “O Fundo da Gaveta” (2018) seria a sua última obra, onde estabeleceu diferentes paralelismos entre a atualidade e o liberalismo do século XIX em Portugal, fase da História que procurou sempre trazer à tona. Casou-se por cinco vezes, tendo uma filha, Patrícia Correia Guedes, fruto do seu primeiro casamento, onde esteve casado com a atriz Maria Cabral, entre 1964 e 1975.

Vasco Pulido Valente é uma referência quando se aborda o jornalismo e a História de Portugal em diálogo. As suas imensas crónicas, os seus ensaios e as suas obras tornaram-se referências para o público geral, contribuindo, para isso, o seu afincado percurso na academia e na política. Cruza, assim, três dimensões que não se cruzam de forma tão assídua, embora o faça de forma distinta: com as aulas e com os trabalhos que deu, pôde sustentar uma postura política muito identitária, que lhe permitiu não ser mais uma voz entre tantas outras. Permitiu-lhe, de igual modo, ser cáustico e rebelde nas suas palavras, mas sem que a sustentabilidade dessa posição pudesse ser posta em causa. Pulido Valente é, assim, uma voz que, embora não inspirasse carinho, fez da crónica política mais relevante, mais interessante e mais brilhante.

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