A violência e a cumplicidade, no segundo volume de ‘O Teu Rosto Amanhã’, de Javier Marías

por Miguel Fernandes Duarte,    15 Dezembro, 2017
A violência e a cumplicidade, no segundo volume de ‘O Teu Rosto Amanhã’, de Javier Marías

Ao julgarmos como facto ser impossível saber se alguém iria cometer determinado crime, se deteria em si a possibilidade (e capacidade) de o cometer, demarcamo-nos de qualquer culpa em algo que venha a ser cometido por quem cujo rosto amanhã não soubemos prever pelo rosto de hoje. Mas ao não os impedirmos, não seremos todos, com maior ou menor grau, cúmplices dos crimes que são cometidos?

Dança e Sonho, é o segundo volume da monumental obra do escritor espanhol Javier Marías, O Teu Rosto Amanhã, finalmente publicada na íntegra em português pela Alfaguara. No primeiro volume, Febre e Lança, conhecemos Deza, o protagonista espanhol, emigrado em Londres, à medida que o mesmo começa o seu trabalho numa organização secreta anónima cuja função é prever quais serão os comportamentos futuros de determinada pessoa face aos que apresenta no presente. Descobrir, portanto, com base no rosto de hoje, qual será o seu rosto amanhã: se a pessoa é capaz de matar, se é capaz de levar a cabo determinada acção, quais são os seus traços de personalidade, tudo isso inserido num relatório individual; no fundo uma categorização de pessoas que, apesar de aspirar a um profundo conhecimento de alguém, tem em si algo de infalivelmente superficial.

Será natural, portanto, que este segundo volume seja aquele onde Deza começa a questionar o que faz. Ao ler o relatório da empresa sobre si próprio, desconhecendo quem o tenha escrito, deixa de estar, ele próprio, seguro de possuir as capacidades que os outros lhe atribuem (a de alguém que consegue, em sentido figurado, ver através dos outros). Mas além disso descobre que o trabalho que desenvolve não é, como achava, sempre feito para o estado. A empresa anónima, no edifício sem nome, opera também para privados, e ele não tem como saber o destinatário do trabalho que está a fazer, não tem como saber quais são os fins para os seus meios.

Como no primeiro volume, que divagava à volta de um jantar e posterior manhã em casa do seu amigo Peter Wheeler, o segundo volume decorre, também, ao longo de praticamente apenas uma cena, neste caso numa discoteca, onde Deza acompanha o seu chefe Tupra numa saída de negócios com o casal Manoia, ele um italiano com ar de mafioso, ela uma dondoca que Deza tem de entreter ao longo da noite, enquanto Tupra e Manoia tratam do que têm a tratar.

Javier Marías prolonga, como é seu hábito e com a mestria que lhe permite levar a cabo projectos tão ambiciosos como este, a cena da discoteca durante todo o livro, ausente qualquer preocupação pelo desvendar do próximo ponto da narrativa (chega até a parecer que o autor faz de propósito, como se de uma pirraça para com o leitor se tratasse), o que interessa é o que Deza sente, o que pensa, o que reflecte, e, portanto, ao longo de uma cena na discoteca há tempo para falar sobre a Guerra Civil Espanhola, para ouvir as histórias do seu pai, para divagar sobre pedintes, para trautear The Streets of Laredo, para mais uma vez observar o seu vizinho dançarino do prédio em frente, para não só pensar nela como ligar à ex-mulher Luísa, e lhe perguntar se conhece o Botox ou se há possibilidade de uma mulher, ao não levar cuecas enquanto veste saia durante a menstruação, deixar cair, sem reparar, um só pingo de sangue no chão.

Mas é nessa discoteca que Deza acaba por ser colocado numa situação paralela à que lhe é contada, com horror, pelo pai, a de um escritor falangista que, durante a guerra civil de Espanha, tomou parte num literal tourear de um condenado, um espectáculo grotesco onde os intervenientes, antes de o executarem, se divertiram a espetar-lhe bandarilhos como se de um touro se tratasse.

Embrenhado nessa violência que sente completamente gratuita, Deza torna-se, ao mesmo tempo, cúmplice e vítima, perpetrador da violência por não a ter impedido, e vítima da mesma, que ele sente a qualquer momento poder começar a ser aplicada contra si.

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