A voz mística da Madrugada veio a Lisboa
Na passada noite de 10 de Maio, assistiu-se a algo especial no Lisboa ao Vivo, algo que, até há uns tempos, achávamos não ser possível: o regresso da banda norueguesa de rock alternativo Madrugada aos palcos. Esta banda já tem quase tanto tempo de inactividade como o seu reverso. Após lançar apenas quatro álbuns entre 1999 e 2008 – o último deles já gravado sem o guitarrista Robert Burås, falecido em 2007 – a banda decidiu terminar o seu percurso, pois não faria sentido sem a sua guitarra tanto intensa, como desoladora. Esse último álbum foi aquilo a que se chama a swan song da banda, criado como uma homenagem ao colega falecido e um último suspiro criativo.
Entretanto, chegados a 2019, pedia-se uma celebração: a dos 20 anos do lançamento de Industrial Silence, primeiro trabalho da banda. Assim, os membros sobreviventes reuniram-se e a eles juntaram-se um guitarrista e um teclista, para recriar o som do rock da década de 90 que o caracteriza. Portugal teve o privilégio de receber esta tour celebratória tanto em Lisboa, como no Porto.
Por cá, o evento principal da noite teve um preâmbulo fornecido pelos A Jigsaw. Esta banda já tem estado no activo há algum tempo, mas tem sempre permanecido um pouco na obscuridade. Na verdade, não entendemos bem porquê, pois uma banda com uma voz como a de João Rui sem dúvida merecia mais reconhecimento. Uma espécie de Mark Lanegan menos rouco, que canta histórias que nos lembram de Nick Cave (da altura de Murder Ballads), a sua voz atribui um certo misticismo às canções de banda de bar, ancoradas por um violino que ali assenta que nem uma luva. “One Right Lie” vê a sua punchline “Romeo wants a word with you” repetida como um mantra, dramaticamente, criando uma atmosfera que, em termos de ambiente, aquece bem o público para o que se seguiria.
O entusiasmo vai sendo manifestado pela audiência, que praticamente encheu o espaço perto do rio. Algumas pessoas gritam o nome da banda, outras clamam pelo vocalista, Sivert Hoyem, carismático líder cuja entrada em palco leva o povo ao delírio. A sua postura é de descontracção, trazendo alguma leveza a canções emotivas como “Quite Emotional”. A banda não perde tempo a destilar a intensidade das faixas mais agitadas de Industrial Silence, quase sem tempo para pausas ou conversa. Já íamos em quatro ou cinco canções, quando Sivert se dirige a nós pela primeira vez, com entusiasmo. A certa altura, refere que têm muito a tocar, pelo que não pode haver tempo a perder. Aí denota-se a vontade de partilhar o máximo possível com o público, após tantos anos afastados. Foram duas horas de concerto que certamente terão enchido as medidas dos fãs que até ali se deslocaram.
A banda manifesta uma sincronia bastante representadora da sua química criativa. A maior perda será realmente a destreza do guitarrista original, cujos solos aqui foram, infelizmente, encurtados, retirando alguns momentos de catarse ao concerto. Não que o concerto não tenha sido rico em momentos emocionais, até porque as melodias da banda puxam muito a esse lado. Quando chegamos a “Shine”, ainda no início do concerto, o refrão baladeiro aperta muitos corações; vemos casais abraçados e pessoas a balançar tranquilamente ao ritmo da música, num ambiente de uma melancolia alegre.
Sem desmérito para a voz de João Rui, que já elogiámos repetidamente, foi Sivert que mais encheu a sala com o seu timbre poderoso, que soou inacreditavelmente fiel ao álbum, mesmo 20 anos depois. A juntar a isso, a boa mistura de som não relegou a voz para segundo plano, onde nunca poderia ter ficado, de qualquer forma. Desde o dramatismo da marcha que é “Salt” à poesia falada de “Norwegian Hammerworks Corp.”, a voz brilhou. A certa altura, veste um casaco com lantejoulas que reflectiam a luz dos holofotes, criando um efeito estelar e literalmente brilhando.
Antes de tocarem mais uma das canções do álbum, Sivert descreve-no-la como sendo “a primeira boa canção que compuseram”. A noite dessa génese foi determinante para a banda e para o álbum, pois os quatro membros sentiram uma magia especial naquela composição. Sivert conta-nos como ficaram a noite inteira a tocá-la, preenchendo o silêncio com a melodia, enquanto, lá fora, os carros passavam na estrada e as luzes citadinas faiscavam. Foi assim que surgiu a noção de silêncio industrial que dá nome ao álbum. A imagem da sua capa surgiu repetidamente nas projecções que passavam por detrás da banda, assim como o seu azul clínico, que banhava a banda por meio da iluminação de palco.
No final, o entusiasmo é tanto, que Sivert nem consegue manter a fachada socialmente aceite que é o encore, sugerindo que a banda regressaria para tocar mais do que apenas canções de Industrial Silence. É assim que ouvimos canções como “What’s On Your Mind?” ou “The Kids Are on High Street”. Para o final, “Valley of Deception”, uma das faixas mais determinantes da banda, acaba por deixar a desejar. Os acordes difíceis de replicar não transmitiram a emoção que a versão de estúdio exsuda, acabando por perder um pouco da melancolia a eles associados e soar mais ligeiros do que deviam.
Repentinamente, para fechar o concerto, ouve-se “If I Can Dream”, de Elvis Presley, enquanto a banda recebe uma gigante ovação e faz os seus últimos agradecimentos. A sensação é de que esta reencarnação dos Madrugada está para ficar, e ainda bem que assim é. É curioso como uma banda de sucesso improvável criou este nicho de fãs dedicados, mas este concerto serviu como prova de que o seu reconhecimento é inteiramente merecido.