Agostinho da Silva, um português fora do comum
Agostinho da Silva foi, entre Portugal e o Brasil, um dos mais interessantes intelectuais do século XX. A sua filosofia desvinculou-se dos livros, dos ensaios e dos grandes polos de ebulição cultural, e debruçou-se sobre as raízes mais profundas das entidades e identidades singulares e coletivas. Um percurso que conheceu mais pisadas dos que palavras escritas, mais reflexões do que dissertações, mais intenções do que contemplações. A lusofonia tornou-se enriquecida e reconhecida nos achados e criados por Agostinho da Silva, associando-se à valorização do que ficou esquecido dos livros, compaginando-se em vida, em experiência, e em sapiência.
George Agostinho Baptista da Silva nasceu na freguesia de Bonfim, na cidade do Porto, no dia 13 de fevereiro de 1906, numa família da pequena burguesia de Lisboa. Recém-nascido, e filho único à data, passou a viver em Barca d’Alva, na zona de Figueira de Castelo Rodrigo, onde usufrui da sua infância pré-escolar. Tudo porque o seu pai se moveu para este posto fronteiriço, apesar de aspirante a assumir funções profissionais na Alfândega do Porto. Quando a necessidade de frequentar a escola surgiu, o seu progenitor foi promovido ao lugar que havia apontado, e a família, agora com a filha Mara Cecília, voltou ao Porto.
Assim, Agostinho frequentou a Escola Primária de São Nicolau, seguindo-se a Escola Industrial Mouzinho da Silveira, e o Liceu Rodrigues de Freitas, terminando, aqui, o ensino secundário com 18 anos, em 1924, com uma média de 20 valores. Aqui, recebe uma esmerada formação nas ciências sociolinguísticas, tornando-se familiarizado com as culturas portuguesa e francesa. Entre os 16 e 17 anos, estava já capacitado para ensinar a língua portuguesa aos ingleses que estavam envolvidos no comércio vinícola, para além de trabalhar no periódico Comércio do Porto, onde redigia vários casos fictícios da sociedade polémicos. É nesse ano que, após esse Curso Complementar de Letras, se inscreve na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde terminou a licenciatura em Filologia Clássica com mais uns exímios 20 valores, no ano de 1928, apresentando, como tese, uma edição comentada da poesia do latim Cátulo. Este é um período onde a faculdade está localizada na Quinta Amarela, uma instituição então ligada ao movimento cultural da Renascença Portuguesa, de cariz nacionalista.
Com somente 23 anos, no ano seguinte, defende a dissertação de doutoramento com distinção, de seu título “O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, e tornou-se o primeiro doutor proveniente dessa instituição académica. Como mestres e docentes, teve nomes consagrados, como Teixeira Rego, os renascentistas Leonardo Coimbra e Adolfo Casais Monteiro, e o pensador Sant’Anna Dionísio. É à luz desta base histórica e académica que dá luz e amplitude ao pensamento filosófico que se seguiria, estando desde cedo expostos na publicação monárquica que dirigiu na Associação de Estudantes da faculdade, em 1925. Assumindo conferências e a liderança de várias iniciativas estudantis, redigiu sobre filosofia e literatura no “Porto Académico” (1925-26), e na revista renascentista A Águia (1926-29), enquanto lecionava no Liceu Alexandre Herculano, no Porto; tendo lançado “Breve Ensaio sobre Pérsio”, poeta estoicista.
Os anos 30 seriam marcantes para adquirir outros horizontes, e, com isso, viaja para Paris, como bolseiro, no ano de 1931, onde estudou História e Literatura na reputada Sorbonne, e no Collège de France. Isto sem antes estagiar para se tornar professor na Escola Normal Superior, em Lisboa, concluindo esse período com os habituais 20 valores. Mal voltou, dois anos depois, tornou-se profícuo colaborador na revista Seara Nova (revista com fins pedagógicos e críticos, onde conviveu com António Sérgio), para a qual escreveu até 1938, essencialmente como crítico literário, e como biógrafo; para além de ter escrito em “Princípio Publicação de Cultura e Política” (1930), cujo editorial se prontificava a redigir de forma democrática, justa, e com verdade.
Para além disso, tornou-se docente no Liceu José Estêvão, em Aveiro, de 1933 a 1935; e fundou o Centro de Estudos Filológicos da Universidade Clássica de Lisboa, agora Centro de Linguística. A sua demissão seria controversa, por não ter aceite assinado a Lei Cabral, que obrigava os funcionários públicos a declarar que não participavam em organizações clandestinas ou subversivas. Apesar de não estar envolvido em nenhuma, o portuense recusou a assinar tendo em conta a mesma ir contra os seus ideais. Nesse ano, consegue arrecadar outra bolsa, desta feita do Ministério das Relações Exteriores de Espanha, e passa a trabalhar no Centro de Estudos Históricos de Madrid, onde se centrou na mística do país. Contudo, seria um Sol de pouca dura, pois a Guerra Civil eclodiu em Espanha, e forçou a vinda de Agostinho para Portugal.
À chegada, passou a exercer ensino no Colégio Infante Sagres, em Lisboa, tendo introduzido o sistema cooperativo no mesmo. Tendo fundado a Escola Nova de São Domingos de Lisboa, não vira à cara a um trabalho legal e ilegal na vertente cultural, criando o Núcleo Pedagógico Antero de Quental (1939), e publicando “Iniciação: Cadernos de Informação Cultural” (1940), urgindo uma renovação daquilo que eram as instâncias educativas e culturais. A distribuição das 130 edições deste projeto chegou até 1943, onde, considerada instrução suficiente para ser considerado como uma ameaça à sustentabilidade do regime, é preso pela polícia política em julho desse ano. Ficando incomunicável durante 18 dias, foi liberto sob termo de residência, tendo vivido em Portimão. A sua sobrevivência foi-se salvaguardando com as explicações que ia dando, suficientes para as condições mínimas, mas não para o que seria a sua estabilização no país.
Tornando-se numa ameaça incontornável, para além de não estar imune de perigos à sua integridade, e de ser excomungado pela própria Igreja, decidiu emigrar logo de seguida para a América do Sul, fruto dessa oposição ao Estado Novo. Acompanhado da sua mulher, Berta David, e dos filhos Pedro Manuel e Maria Gabriela, não partiu sem deixar redigidos dois ensaios filosóficos, sendo eles “Considerações”, e “Conversação com Diotima”, este sobre essa figura da obra platónica, envolvida precisamente no conceito de amor platónico. Passando por países como Uruguai ou Argentina, e avaliando a sua estabilidade sociopolítica, é no país lusófono do Brasil, onde se depara com a novidade e a pluralidade, que se fixa, levando ao adensar e avolumar de um trabalho marcante tanto deste como desse lado do Atlântico. Tudo isto sem antes organizar, para a Escola de Estudos Superiores de Buenos Aires, no coração da Argentina, a disposição dos cursos de Pedagogia Moderna; e sem lecionar História e Filosofia em Montevideo, capital uruguaia.
No auge desta fase de grande ebulição sociopolítica e pessoal, Agostinho da Silva vê publicadas as “Sete Cartas a um Jovem Filósofo” (1945). Trata-se de uma obra de referência, na qual já grande parte da sua filosofia é plasmada, surgindo como uma linha de pensamento disruptiva em relação aos vários dogmas e formalismos existentes. Com uma base bastante socrática, lança-se numa deriva dialogante, procurando a verdade indiscutível como premissa fundamental de todo e qualquer juízo, no intuito de conhecer o novo e de se prender com questões exequíveis sobre a própria realidade. Para o filósofo, viver vai para além das molduras pré-concebidas, e trata de as colocar em equação, celebrando esse novo, e largando-se de associações íntimas com este ou aquele discurso artístico. A personalização é uma linha forte e afirmativa, que advém, precisamente, de uma tendência inclusiva, que alimenta a criatividade na interpretação e atuação na realidade.
No plano da atividade académica e científica propriamente dita, desenvolveu o Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, onde dava aulas de Filosofia do Teatro, e onde esteve com Eduardo Lourenço. Mesmo à distância, o luso não se desligou da realidade nacional, tendo redigido na publicação Movimento 57 (1957), destinada a fomentar o interesse e a intervenção cultural na sociedade. O seu papel tornou-se de tal forma proeminente, que se tornou assessor para a política externa na presidência de Jânio Quadros.
Simultaneamente, volta a ser influente na criação de uma Universidade, desta feita na recém-capital Brasília, onde foi responsável pelo Centro Brasileiro de Estudos Portugueses. No ano de 1964, já próximo de deixar o país, pensou o Museu do Atlântico Sul, na cidade de Salvador da Bahia, e origina a Casa Paulo Dias Adorno, em tributo a um dos primeiros a povoar o Brasil indígena. Um ano antes, havia viajado até ao Japão, onde lecionou português em Tóquio, tendo passando por Macau e Timor (onde fundou instituições de apoio ao desenvolvimento e investigação da língua portuguesa), e visitado os Estados Unidos e o Senegal. A sua literatura também cresceu neste período, redigindo “Um Fernando Pessoa” (1955), “Ensaio para uma Teoria do Brasil” (1956), e “Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa” (1957). Até lá, vinha repartindo o seu salário pelos mais necessitados, tanto estudantes como servidores de outrem, no Planalto, zona onde vivia num barracão de madeira.
Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminhoumas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracolquem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.
Pouco após a Primavera Marcelista ter chegado a Portugal, Agostinho da Silva vislumbrou a oportunidade de voltar, e de dar aulas em várias universidades em Portugal, para além de se tornar diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa, e consultor no atual Instituto Camões. Com o que recebeu, instituiu o Fundo e o Prémio D. Dinis, destinado a honrar uma obra de um autor ibérico por ano. No pós-Revolução de Abril, e considerado como reformado do ensino pelo governo brasileiro, o trabalho do luso tornou-se crescentemente divulgado, e culminou na sua participação no próprio meio audiovisual. Tudo isto sem antes dar voz a uma forte contestação daquilo que seria o pós-Verão Quente, marcado por grande agitação política, e sem uma presença da sua parte na própria Reforma Agrária.
Assim, e a partir de 1990, a RTP1 emitiu as entrevistas conhecidas por “Conversas Vadias”, onde Agostinho da Silva concedeu entrevistas a treze personalidades conhecidas do meio artístico, literário, e académico nacionais. Estas sessões seriam francamente populares, tornando-se ainda bastante atuais naquilo que é o estudo desta singular figura, do seu pensamento, e da própria sociedade. Agostinho da Silva viria a partir a 3 de abril de 1994, em Lisboa, no hospital de São Francisco Xavier, sem nunca pôr de lado o desencanto pela ordem das coisas de então, para além da companhia dos gatos que tanto estimava. Deixaria um legado com mais de seis dezenas de obras, incluindo ensaios e poesia, que dispunha indelevelmente toda essa crítica, lutando por uma rutura onde o trabalho, a solidariedade e o mérito individual e coletivo se consagrassem como a base de toda a organização social.
O homem não nasceu para trabalhar, mas para criar, para ser o tal poeta à solta.
Agostinho da Silva, in “Conversas Vadias” (1990)
O pensamento que foi construído tornou-se sustentado numa fusão única, mas experienciada e vivida. A liberdade tornou-se no primado da humanidade, fulcral para uma ativa e pertinente atividade social. Para que essa liberdade se consolidasse, importava, porém, assumir uma conduta de renúncia, livre de quaisquer constrangimentos, posses, e ligações a entes do mundo. Sustentado na investigação histórica que foi efetivando, muito do seu pensamento passou por essa união e harmonização entre os diferentes polos de língua portuguesa, visando a criação de uma unidade respeitada e articulada.
A imprevisibilidade que a sua vida conheceu permitiu-lhe assumir uma visão dinâmica e em constante mutação, apta e aberta a conceber o novo, e a renovar o previamente existente. Tornou-se, dessa forma, mais exceção que regra no caminho da descoberta e da expressão de uma filosofia desligada de preconceitos, de teorias, de ideologias, depurada dos males e dos pecados de nomes ancestrais, tanto ocidentais como orientais, e das suas readaptações nas décadas seguintes.
O eixo principal do seu trabalho prendia-se com a valorização do povo português, dando-lhe uma injeção de confiança nos seus instrumentos e nos suportes existentes para a sua manifestação e operacionalização. Este povo português inclui, como referenciado, todos aqueles que comunicam com o idioma, incluindo os mais remotos núcleos tribais e os resquícios de uma Índia colonial. Todas as iniciativas que lançou para o reforço da lusofonia desnudam o seu espírito empreendedor, capaz, e curioso, debruçando-se sobre várias temáticas por aflorar, e outras longe do conhecimento comum. Seria nessa plataforma combinatória e congregadora que a humanidade atingiria o seu maior estado de consumação, assumindo as contradições das partes envolvidas como algo a ser integrado e assimilado pela unidade.
Tudo isto sem descartar o papel da ciência na progressão individual e plural, embora não a colocando num sistema com pendor lucrativo, mas sim como um serviço numa sociedade simples e prática, e com a envolvência coletiva como principal preocupação do seu pensamento. Apoiando-a na meditação interior, e na convivência com o exterior, descredibiliza as instituições de regulação, e refuta aquilo que é supérfluo, focando-se essencialmente naquilo que são os valores da comunidade, tanto os singulares, como os coletivos. O serviço público, um pouco à imagem da atuação dos Templários, ou da Ordem de Cristo, surgiria como consequência do voluntarismo, devidamente integrados e especializados, substituindo as figuras de ordem da típica sociedade por outros servidores públicos, desligados da imposição de responsabilidades nos homens propriamente ditos.
No Político distingo dois momentos, o do presente e do futuro. Principiando pelo segundo, desejo o desaparecimento do Estado, da Economia, da Educação, da Sociedade e da Metafísica; quero que cada indivíduo se governe por si próprio, sendo sempre o melhor do que é, que tudo seja de todos, repousando toda a produção, por uma lado, no , por outro lado, na fábrica automática; que a criança cresça naturalmente segundo as suas apetências, sem as várias formas de cópia e do ditado que têm sido nas escolas, publicas e de casa; que o social com as suas regras, entraves e objetivos dê lugar ao grupo humano que tenha por meta fundamental viver na liberdade, e que todos em vez de terem metafísica, religiosa ou não, sejam metafísica.
Agostinho da Silva, in “Reflexos, Aforismos e Paradoxos” (1999)
A sua fé, embora não professada, foi-se matizando numa lide panteísta, em que uma entidade superior se expressaria em todas as existências e essências mundiais, com o plural a formar um só, singular, uno. Apesar disso, não perspetivava a revelação messiânica no foro meramente religioso, apontando-a para algo interno e intrínseco a cada um. Essa derivação seria fomentada, também, pelas próprias peripécias nacionais, para além de outras com origens várias, e com origens mais ou menos conhecidas. De cariz revolucionário ou herético, também se fez muito daquilo que é a fundamentação desse instinto de descoberta, de despertar perante a necessidade de restaurar a jovialidade da alma e a sua glória. No entanto, todo este alcance descritivo acaba por soar as campainhas dos mais céticos, encaminhando o desvendar do luso para uma rota subversiva, embora nunca o tenha incentivando efetivamente.
O próprio milenarismo conhece substância no seu pensamento, alimentando a esperança de um novo milénio (neste caso, aquele que começaria em 2000) em que essa conceção muito própria e vincada se firmasse e transformasse o mundo. Acima de tudo, o espírito e a liberdade eram os dois pilares capazes de professar o mundo como um palco diferente e ciente da obra diversa e diversificada de Agostinho; um mundo constituído por gente autónoma desvinculada de um Estado, e assente na reiterada unidade entre os vários entes, onde cada criança cresceria segundo as suas vocações e aptidões. Embora entenda a grande dificuldade de tudo isto se colocar em prática, perante uma sociedade bastante burocrata, a plenitude do ser chega no mais harmonizado entender, embrenhada no mundo de todos para todos.
Agostinho da Silva desdobrou-se no universal e no humano para justificar e louvar o ser português. Toda a sua obra acabou por revelar, mais do que um conjunto de ideias, um espírito com instintos (r)evolucionários. O mistério com o qual viveu sentia-se através da sua experiência, que se traduziu para aquilo que propôs e que redigiu. Um homem de causas, embora de controvérsias no seu ideário, e que o levou a gerar algumas polémicas políticas, para além de outras escaramuças com a Igreja e até com jornalistas. Os rótulos dominaram aquilo que seria a sua imagem pública, embora não se possa, na verdade, rotular muito aquilo que é o pensamento de Agostinho da Silva. Pode-se destacar, sim, por ser algo diferente, proveniente de uma experiência sem igual, e de uma atividade com grande paixão e justificação no seu íntimo. A unidade lusófona, para além de uma sociedade mais espontânea e simultânea com a felicidade individual, seria o seu principal objetivo, numa carreira rica em feitos e feitios. A personalidade de Agostinho da Silva eterniza-se, assim, com muito realizado, quase tanto como o projetado, e de um idealizado que embeleza e intriga a filosofia de um país cronicamente prometido.