Agustina Bessa-Luís, a romântica do Tâmega

por Lucas Brandão,    14 Outubro, 2016
Agustina Bessa-Luís, a romântica do Tâmega
Agustina Bessa-Luís / Facebook.

Agustina Bessa-Luís afirmou-se como uma das principais autoras lusas do século XX. Com um repertório extenso e vário, a escritora catapultou todas as suas memórias e questões para uma plataforma lírica e literária. Foi com base nos ternos e regionais tempos de infância que Bessa-Luís deu amplitude a um imaginário rico de beleza e de criatividade. Foi em quantidade e em qualidade que se expressou não só para o tão seu Portugal mas também para todo o mundo, vendo grande parte das suas obras serem traduzidas para múltiplos idiomas. No escalar de quase um centenário, banha-se com alegria a obra de uma romântica por essência mas alicerçada pela razão em existência.

Só se pode sentir a evidência das coisas até um certo ponto: além disso, ou nos rebaixamos ou nos aproximamos do sentimento superior que nos liberta. De facto, o verdadeiro estado de liberdade é o de ultrapassar a imaginação.

Agustina Bessa-Luís sobre a imaginação.

Maria Agustina Teixeira Bessa nasceu a 15 de outubro de 1922 em Vilã Meã, Amarante, no seio de uma família cosmopolita, sendo o seu pai ex-emigrante no Brasil e a sua mãe espanhola. Com raízes transmontanas, foi desde cedo que a pequena Agustina se interessou por livros, entregando-se à biblioteca que o seu avô materno possuía e conhecendo alguns dos maiores autores franceses (entre estes, Marcel Proust e Henri Bergson) e ingleses de então. Este amor pela literatura acompanhá-la-ia para a adolescência vivida no Porto e para a sua maturação em Coimbra. Em 1950, e já tendo contraído matrimónio com o estudante de Direito Alberto Luís, fixar-se-ia na cidade portuense e daria à luz Laura Mónica Bessa-Luís. Para além da carreira que assumiu na escrita, Agustina fez parte do Conselho Diretivo da Comunità Europea degli Scrittori, de Roma, durante 1961 e 1962; dirigiu o Teatro Nacional de D. Maria II (1990-1993) e foi parte integrante de diversas academias nacionais e internacionais de Letras e de Ciências e esteve na Alta Autoridade para a Comunicação Social. Esta experiência só se tornou viável com as funções diretivas que desempenhou no jornal “O Primeiro de Janeiro” durante dois anos (1986-87). No corolário de toda a obra profissional e passional, recebeu o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada em 1981, sendo elevada a Grã-Cruz em 2006.

A sua criação literária começou a traduzir-se em romances e iniciou-se aos 26 anos com “Mundo Fechado” (1948), uma obra que acabou por profetizar o trabalho que a viria a colocar como uma das caras da literatura portuguesa de então. Em 1954, veio a público A Sibila“, que veio expor o processo singular de Bessa-Luís no seu desenvolvimento artístico. A obra circunda a sibila (em linguagem mais corrente, a bruxa) Quina e desvenda toda sua infância, os antecedentes e as relações estabelecidas com os seus familiares até ao momento em que se apercebe dos seus dotes. Para consolidar esta descoberta, surge a personagem de Germa, sua sobrinha, que a vê como “possuidora de todo o puro enigma do ser humano”. Na tentativa de desmistificar e de redescobrir as personagens, saltam à vista aforismos que visitam a sabedoria popular e que ganham sustento e sentido a partir da infância da autora; para além de uma firme defesa da personagem feminina como protagonista dos acontecimentos das suas narrativas. A inspiração na figura de Teresa de Ávila, santa católica, é permanente e transversal à sua vida e obra.

Atravessando os séculos XIX e XX, a obra é marcada por uma quantidade inusitada de personagens e pautada por um ritmo alucinante que se recheia de elipses e de viagens entre diversas narrativas intercruzadas. Para além disso, esta constante recordação faz-se acompanhar de várias pontes de referências culturais que se desenvolvem durante a narração e que reforçam a vocação ambivalente mas atuante da narradora, embora não participante. Assim, trata-se de um romance intuitivo e simbólico que viaja pelos prós e contras da dimensão humana mas sem nunca perder o rumo do plano da obra, prolongando-se num caminho pouco frequentado por outros autores. Num plano mais teórico e posicional, as referências que assume passam por uma fusão de modernismo mais recente (com influências presencistas) com um romantismo mais ido mas não esquecido.

Eu acho que não há inteligência sem coração. A inteligência é um dom, é-nos concedida, mas o coração tem que a suportar humildemente, senão é perfeitamente votado às trevas.

Agustina Bessa-Luís sobre a inteligência.

Na base da sua admiração romantista, traz um outro escritor com afeições nortenhas, sendo este Camilo Castelo Branco. Os paralelismos entre ambos fazem-se sentir nas abordagens à sociedade do Entre Douro e Minho e nas técnicas de navegação pelas personagens como forma de conduzir a narrativa. Aliás, também este autor foi ficcionado por Bessa-Luís, que nunca desprimorou os seus romances de uma base biográfica. Várias das suas obras tornaram-se referências na cultura lusa, com algumas delas a ganharem extensão na sétima arte por intermédio do seu amigo e cineasta Manoel de Oliveira. Desta forma, “Fanny Owen” tornou-se “Francisca” (1981), assim como “As Terras do Risco” (1994) se tornou “O Convento” (1995) e “A Mãe de um Rio” (1998) “Inquietude” (do mesmo ano). Só Vale Abraão” (1991) manteve a sua denominação na sua adaptação, chegando ao cinema em 1993. Também no teatro e na televisão a sua obra ganhou ainda mais movimento e ação, contando com a alçada de Filipe La Feria para encenar “As Fúrias” (obra datada de 1977) no Teatro Nacional D. Maria II.

A infância vive a realidade da única forma honesta, que é tomando-a como uma fantasia

Agustina Bessa-Luís sobre a infância.

Foi de forma natural e normal que conquistou em 2004, e já com 81 anos, o Prémio Camões, a maior honra da literatura lusófona. Com mais cinco dezenas de obras, também o teatro, o conto, a crónica de viagem e o ensaio conheceram o engenho criativo de Bessa-Luís. Esta flexibilidade literária exibida pela autora demonstrou a importância de transmitir às mais diversas faixas etárias as suas opiniões e considerações sobre a condição social e cultural dos portugueses. Para isso, não abdicou de navegar em tempos idos para detetar e analisar eventuais pontos de debate, usando a ficção para efetuar esse pensamento intros e retrospetivo sobre o conhecimento obtido através da memória individual e coletiva. Foi desta forma particular mas eficaz que conseguiu extrair pontos válidos e pertinentes no alcance das suas visões.

Agustina Bessa-Luís trouxe as extensões do Tâmega e do Douro para as linhas dos seus escritos, dando em si um contexto sólido e paisagístico para biografias críticas mas imaginadas. Cruzando a dimensão pensada e meditada com as infusões mais criativas e rarefeitas da emoção, deu colorido a um sem número de ideias que equivalem ao número de obras que vieram a público nos últimos anos. Mesmo tendo parado em 2006, a influência que deteve na cultura portuguesa tornou-se indelével, tal e qual como os rios não se apagam da geografia. Assim como o Tâmega e o Douro se assinalam no Norte, Agustina Bessa-Luís assinala-se na literatura e na cultura de todos aqueles que sentiram Portugal em pensamento e em sentimento.

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