Ana Luísa Amaral: do mundano ao transcendente

por Cronista convidado,    8 Agosto, 2022
Ana Luísa Amaral: do mundano ao transcendente
Ana Luísa Amaral em 2013 / Fotografia de Mattias Blomgren – Wikimedia Commons
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A poesia não se compadece com velocidade. A arte não se compadece com velocidade — dizia Ana Luísa Amaral na Grande Entrevista da RTP. Podemos tirar esta lição da sua vasta obra: há uma beleza em ler devagar e em encarar a poesia como silêncio e contemplação. A poesia, de facto, não tem uma utilidade prática. Não se constrói uma casa com um poema. Mas ele constrói outras casas e, na sua essência, assiste-lhe o simbólico. Tal como afirma a própria: “nós somos criaturas do simbólico”. Precisamos da sua dimensão estética, que nos move e comove. E há pessoas para as quais o próprio poema se sobrepõe à vida, ou se confunde com ela, ou se imiscui (ou será a própria vida um breve/longo poema?), como no caso da professora Ana Luísa. É um poema que corre desalmadamente nas veias, um poema que mistura o sublime e o banal, um poema inevitável, urgente, que radica na dor, “um poema exultando na angústia, / um largo rododendro cor de sangue”.

Nesta absoluta necessidade fulgurosa de escrever, como pão para a boca, há uma transcendência da arte face à condição efémera que define o ser humano. É maravilhoso, após tantos séculos de literatura, ainda podermos ouvir novas vozes — uma “fonte de espanto polifónico” —, como escreveu Ana Luísa. O que muda, unicamente, são as combinações das palavras do nosso alfabeto. E a poeta tinha consciência de que o poema era, antes de tudo, um inutensílio (parafraseando o verso de Manoel de Barros).

Indissoluvelmente relacionada com esta conceção da arte e do poema, existe uma outra dimensão imprescindível no fazer poético de Ana Luísa Amaral e que a eterniza não só como uma das vozes poéticas mais marcantes da literatura portuguesa bem como investigadora e docente: o profundo envolvimento com a luta das mulheres e a consciência de que a escrita feminina constitui um ato de coragem e resistência face ao pensamento patriarcal dominante. Ana Luísa escreve para o teatro, o masculino e o feminino, e investiga a teoria queer. Nos vários testemunhos que nos deixa, a autora refere que a sua arma contra o apagamento das mulheres é justamente a sua criação poética. Porém, é importante compreender que quando fala na questão da invisibilidade feminina, a poeta não se limita à literatura. Prova disso, é o recente poema intitulado “Experiências e evidências” em que aborda o silenciamento das mulheres na ciência:

“Eu não sabia então que só há poucos anos
pôde a primeira mulher
usar um telescópio de excelência,
provar a existência da matéria negra
na beleza do movimento angular
das galáxias”

(Amaral, 2021)

Nesse sentido, Ana Luísa Amaral apela à importância da poesia como máxima responsável pela tomada de consciência da precariedade que nos caracteriza enquanto seres finitos e frágeis, unidos por um destino comum associada também à questão feminista. Por conseguinte, a arte deve encontrar-se no centro dessas “redes de solidariedade” criadas em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. É o que transmite em a “baleia: do coração e da beleza, perspectivas”:

No tecto, sustentado por grossos cabos de aço,
já não cópia fiel,
mas o esqueleto real (que um dia
o acolhera, ao coração)
de uma baleia azul
O nome herdara-o ela
da cor do oceano que nos fez comum,
nos embalou um dia, a nós ainda não humanos

Como professora, Amaral ressalva igualmente a utilidade do diálogo para estes temas patentes na sua poesia: “(…) tu podes perfeitamente (e deves), numa sala de aula, sensibilizar as estudantes e os estudantes para essas questões, porque eu acho que o feminismo (…) não favorece só as mulheres (…) acho que é benéfico também para os homens (…) somos feitos da mesma matéria que é perecível (…)” (Amaral, 2022, pp. 174-175).

E é o diálogo vulnerável com o Outro, numa rede aberta e intertextual de vozes, porque uma grande poeta também é sempre uma atenta leitora, que recordaremos na poesia de Ana Luísa Amaral, artista que elevou o gesto mundano ao transcendente e que, enquanto feminista empenhada em reinventar a tradição numa lógica subversiva, habilmente jogou com as formas, temas, mitos e ritmos da poesia contemporânea.

Somos feitos da matéria das estrelas, mas nem todos são capazes de transformar o átomo em verso. Ricardo Reis, na ânsia de fixar eternamente a matéria poética, queria “versos que sejam como joias / Para que durem no porvir extenso / E os não macule a morte”. Já Ana Luísa Amaral queria um poema que fosse “uma contra-reforma do silêncio”. Mas a escrita foi sempre um misto de prazer individual e de necessidade imperiosa — “música, música, música a preencher-lhe o corpo” — uma angústia solitária em busca do poema de “respiração tensa” e “sem pudor”.

Talvez seja o verso “diz toda a verdade, mas di-la oblíqua”, de Emily Dickinson, objeto de estudo da sua tese de doutoramento, que ironicamente encapsula melhor a tónica do seu trabalho com as palavras, que também revela fraturas e desvios, definindo-se pela pluralidade textual. Numa arte que se quer degustar devagar, fica o desejo de fruir a palavra certa e de que o excesso mais perfeito de Ana Luísa nos seja oferecido às colheradas.

Mulheres, Artes e Ditadura. Diálogos interartísticos e narrativas da memória. (2022). Ana Gabriela Macedo, et al. (coord.). Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus.

Crónica de Miguel M. Correia e Tânia Meireles (professores de Português).

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