“Aniquilação”, de Michel Houellebecq, ou o último não-cavaleiro do Apocalipse

por Augusto António Cabrita,    27 Maio, 2022
“Aniquilação”, de Michel Houellebecq, ou o último não-cavaleiro do Apocalipse
Capa do livro
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Michel Houellebecq tenta misteriosamente inaugurar a ideia de esperança em “Aniquilação”, o seu último livro. E só em parte o consegue fazer. Avesso a uma ideia de sensível per si, o autor entrega a esperança à metafísica e a algumas relações humanas.

Bem ao estilo do autor francês, as personagens conservam-se inicialmente numa arca frigorífica. São concebidas para um desinteressado consumo. Desde há muito que Houellebecq as explora, que delas se apropria para radiografar a sua visão do mundo. Nisso, “Aniquilação” não é um livro estrangeiro.

“A doxa liberal persistia em ignorar o problema, toda cheia da sua crença ingénua de que o incentivo do lucro poderia substituir-se a qualquer outra motivação humana, e poderia por si só fornecer a energia mental necessária à manutenção de uma organização social complexa. Tudo levava a crer que tal premissa era falsa, e a Paul parecia evidente que o conjunto do sistema iria desmoronar-se num gigantesco colapso, sem que se pudesse prever neste momento em que data, nem por que modos — mas a data poderia ser antecipada, e os modos revelarem-se violentos. Ele encontrava-se assim nessa situação estranha de trabalhar com perseverança, e até com um certo afinco, para a manutenção de um sistema social que sabia estar irremediavelmente condenado (…)”

“Aniquilação”, de Michel Houellebecq, editado em Portugal pela Alfaguara e com tradução de José Mário Silva

Há, contudo, algumas deviações. O erotismo outrora hiper explorado é reduzido a quantidades pré-farta brutos. Dá-se um frenar, ainda que parcial. De um consolidado ecossistema em crise, em implosão, passamos para uma constelação que liga a família ao sujeito. Nunca o autor tinha dado tanta relevância a esta questão. É por isso que só em parte aniquila; quando derruba a descartabilidade de estruturas do presente e do futuro. Ao contrário doutras paragens, as personagens principais deste romance vão-se deixando subjetivizar pelas forças de relação sanguíneas que o autor tanto nos habituou a secundarizar. É que para o escritor francês a contemporaneidade é o estarmos aqui sem estarmos aqui. Há uma recente crise do enraizamento. Daí que em “Aniquilação” encontremos crateras de exótico.

“Seria ele responsável por este mundo? Num certo sentido, sim, porque pertencia ao aparelho do Estado, mas ele não gostava deste mundo. E sabia que Bruno também se sentiria pouco à vontade com aqueles hambúrgueres exclusivos, com os espaços zen onde era possível receber uma massagem às cervicais durante o tempo do trajeto, a ouvir gravações do canto dos passarinhos, (…) enfim, com o aspeto geral que as coisas foram ganhando, com o ambiente pseudolúdico, a esconder uma normalidade quase fascista, que aos poucos foi infetando todos os recantos da vida quotidiana.”

“Aniquilação”, de Michel Houellebecq

Michel Houellebecq frena para regressar aos séculos. E como no caso de “O Mapa e o Território”, livro de 2010 que o levou ao Goncourt, há um quadrante de thriller em “Aniquilação”. É ele que a par da humanização de (algumas) dinâmicas relacionais, vai alimentando um leitor que dele se habituou a consumir pessimismo. Para quem é um habitué de Michel, pode dar-se a perceção de estarmos perante uma encenação. “Será que é um esquema”? Mas não. Ou pelo menos não aparenta. Talvez por provavelmente se encontrar no epílogo da sua vida literária, este é um romance para lá do epileticamente crítico e mordaz. De resto, as suas referências ao quotidiano são quase sempre verídicas; para quem ama a francofonia, é um exercício muito prazeroso. E aos interessados pelo atual, enfim, muitos dos que por cá andam, encontrarão neste texto uma poderosa reflexão. Ao longo de mais de 600 páginas, assuntos políticos, sociológicos, morais e até tecnológicos, revelam-se a partir de uma escrita acessível.

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