Ano Saramago. “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”: perguntar não ofende

por Maria Pinto,    11 Agosto, 2022
Ano Saramago. “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”: perguntar não ofende
Capa do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago
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Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor.

Em 1991, José Saramago publica “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que viria a ser um dos seus livros mais polémicos, sendo excluído em 1992 do Prémio Literário Europeu. Este livro, que tanto ofende, surge a Saramago através de uma ilusão de ótica: é ao passar por um quiosque com jornais, que Saramago pensa ver a frase “evangelho segundo Jesus Cristo”. Continuando a andar, mas questionando essa impossibilidade, Saramago volta atrás para se certificar de que não, nenhuma daquelas palavras constava de nenhum jornal, e daí surge outra ideia.

Como consta no título, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” conta a estória de Jesus. No entanto, e como já estamos habituados, a estória chega-nos através da perspetiva típica de Saramago de ver por trás das coisas que, tal como fez ao questionar a ilusão ótica fabricada pela sua mente, decide questionar aquilo que sempre esteve definido, perguntando-se “aquilo aconteceu porquê?” e “o que teria acontecido em vez de isto?”.

É assim que podemos ler um Jesus que também se questiona, e é movido por circunstâncias concretas, atormentado por sentimentos de culpa e responsabilidade. É engraçado como a maior parte do livro é passada durante a infância de Jesus, mostrando assim mais das vidas de Maria e José, de que nada ou quase nada tivemos direito a saber. É através deste ponto de partida que a adolescência de Jesus, e consequente vida até à sua morte, será marcada pela conduta dos pais, nomeadamente pela de José que, após o nascimento de Jesus, condena os bebés de Belém ao omitir aos outros habitantes a ordenação da morte de todos com menos de 3 anos, decretada por Herodes. Movido pela tentativa da absolvição dessa culpa que carrega, um bebé sobrevivente em nome de milhares, observamos Jesus, um adolescente que, no fundo, não quer outra coisa além de conhecer a sua origem, o passado e as razões das ações dos seus pais, tentando fugir ou não ao futuro que, irreparavelmente, poderá ser igual ao de José. É através deste início e da sua continuação, onde Jesus corta relações com sua mãe Maria por ela não acreditar que Deus o visitou, que nos familiarizamos com Jesus Cristo (como é possível?), esta visão dele tão humanizada, que irá também questionar pela primeira vez o seu destino e as palavras proferidas por Deus. 

Capa do livro “Caim”, de José Saramago

Em 2009, Saramago continua a questionar e, como seu último livro publicado, surge “Caim”, uma estória sobre as ações de Deus nos episódios do Antigo Testamento. Seguimos Caim que, após assassinar o seu irmão Abel, é condenado a continuar a viver, movido entre viagens no tempo para o futuro e o passado, testemunhando assim diversas estórias como a de Abraão e Isaac, da Torre de Babel, da cidade de Sodoma, da Arca de Noé, entre outras.

Tal como em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, o questionamento em relação a tudo continua, e, perante isso, fará todo o sentido pegar em Caim para recontar as estórias do Antigo Testamento. Caim, filho mais velho de Adão e Eva, deu, tal como Abel seu irmão, tudo o que tinha a Deus. É com a rejeição de Deus que nasce o ciúme, a incompreensão de tal ato que leva a uma consequência, criando em Caim o primeiro assassino.

Ao longo da observação das restantes estórias, vemos Caim a olhar para Deus através de uma outra perspetiva, um deus que na verdade pode ser cruel, arbitrário, injusto, precipitado, que queima Sodoma mesmo condenando à morte bebés e crianças, que pede a um pai que sacrifique o próprio filho em nome da sua fé.

“Deus é medonho”, diz Blimunda algures durante as páginas de “Memorial do Convento”. Não é um facto universal, mas sendo dito, dá lugar a milhares de questionamentos. Ao contrário da expressão, parece que perguntar ofende mesmo, o que será normal, já vem explicado em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” quando o Pastor diz a Jesus: “Acontece muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas.”

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