Ano Saramago. Primeiro foi “Terra do Pecado”, hoje é “A Viúva”

por Maria Pinto,    31 Janeiro, 2022
Ano Saramago. Primeiro foi “Terra do Pecado”, hoje é “A Viúva”
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Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago. Ao longo de 2022, e até Novembro, mês em que o escritor faria o seu 100.º aniversário, a Comunidade Cultura e Arte lançará um total de 11 artigos, um por cada mês, sobre 17 livros do escritor.

“Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de ‘A Viúva’”. Assim termina a nota de autor presente no início de “Terra do Pecado”, primeiro livro publicado de Saramago, em 1947, quando este tinha 24 anos. Na altura essa afirmação teria sido verdade, pois Saramago tinha editado o seu primeiro livro sem concordar inteiramente com o título (“Terra do Pecado” é na verdade “A Viúva”), e voltaria apenas a publicar a próxima obra 19 anos mais tarde.

“A Viúva” conta a história de Maria Leonor que, após a morte do marido, tem de assumir a liderança de uma propriedade rural no Ribatejo. Com esta nova posição, Maria Leonor debate-se com os preconceitos que a sociedade tem em relação ao seu novo estado civil, enquanto tenta não sucumbir às suas vontades mais primárias de desejo. Mais de perto observamos a relação que Maria Leonor mantém com os seus dois filhos pequenos, Júlia e Dionísio, com a criada Benedita, bastante conservadora, com o médico Pedro Viegas, vigoroso ateu, e o padre Cristiano.  

À primeira vista, este não parece ser um livro de José Saramago. A escrita tem uma pontuação genérica, habitual, a estrutura é limpa, a história simples. Nota-se um leitor no escritor, carregando o livro de referências literárias que podemos encontrar em autores como Eça de Queirós, Gustav Flaubert ou Tolstói, que em determinadas obras debatem os mesmos temas com que nos deparamos em “Terra do Pecado”. O próprio Saramago refere, na nota de autor, que “não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que do Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar”.  Mas, no entanto, começa a figurar um modo de ser que identificamos em obras futuras, em discussões que as personagens mantêm, debatendo religião e costumes.

É interessante pensar que Saramago escolheu para o seu primeiro romance duas personagens protagonistas femininas. Maria Leonor e Benedita são retratadas sem sentirmos que são observadas através de uma perspetiva masculina. Desta forma, sentimos uma familiaridade atual com Maria Leonor, uma mulher que deveria ser a única julgadora das suas ações, que se debate o romance inteiro com arrependimentos, na sua maioria criados por Maria Leonor na expectativa de como é que o mundo olharia para os seus atos, e não de como é que ela verdadeiramente se sente ao cometê-los. Por oposição, Benedita será uma das maiores críticas de Maria Leonor. Ao início assimilando as suas tomadas de atitude como antagónicas e mesquinhas, é importante pensar em Benedita como uma mulher que, tal como Maria Leonor, é colocada frente a frente perante uma sociedade que, ao mais ínfimo pormenor, fará de Benedita alvo de mexericos. A criada e a patroa, embora muito diferentes, viajam pelo livro em diversas dinâmicas, sendo cúmplices, por vezes inimigas, compreendendo-se mutuamente.

Temos também acesso a inúmeras passagens do dia-a-dia dos filhos de Maria Leonor, Dionísio e Júlia, que, ainda crianças, estão à vontade para sentir sem a preocupação de pecar. Observamos um molde específico tradicional na educação de Dionísio, o irmão mais velho, que, ao crescer, e ao contrário da irmã Júlia, tem de começar a ter cuidado com os sentimentos que decide exteriorizar, pois, tal como Maria Leonor diz a Dionísio “(…) a vida está feita assim, não podemos ter sempre onze anos”.

O final de “A Viúva”, tal como as restantes páginas que o antecedem, deixa-nos com diversas interpretações do que poderá ter levado ao desfecho demonstrado. Tal como na vida, Saramago não nos dá livre acesso aos pensamentos das personagens, abrindo a hipótese para múltiplas possibilidades de justificações das suas ações. E, se não tínhamos a certeza até então, é com o final que temos consciência da humanidade em Viegas, Padre Cristiano, Dionísio, Júlia, Benedita e Maria Leonor.

Na verdade, discordando com a nota de autor e conhecendo o que o futuro acabou por reservar para o autor d’”A Viúva”, “Terra do Pecado” deixa-nos com a vontade de ler o que se segue.

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