Aquelas coisas desinteressantes onde todavia começam as resoluções dos problemas
São cada vez mais os autores que dão conta do complexo de problemas que a Inteligência Artificial, as biotecnologias, etc., colocam não só à organização social, laboral… mas ao ser humano tal como este se constitui desde o advento do Homo sapiens, e à natureza em geral. Foi aliás por aí que comecei esta série de crónicas. Mas veja-se antes, aqui, a “pandemia electrónica” ainda agora muito bem reconhecida por José Malta. Ou o artigo de Paulo Jorge Falcão Alves (Omnia, 2018, 8 (1)), com as pistas bibliográficas que abre. Ou a crónica de Maria de Sousa Pereira Coutinho (Observador, 19/06/2018), até por abrir antes uma objeção à proposta que aqui deixarei.
Passos em frente na resolução desses problemas com certeza se requerem, e urgentemente. No entanto, qualquer caminhada que nasça torta tarde ou nunca se endireita. Pelo que nestas linhas infletirei antes duas notas atrás.
Uma cartilha da resolução de problemas
“Problema”, etimologicamente, significa um obstáculo posto à frente de um qualquer movimento ou intenção. O termo sugere que uma situação assim designada é experimentada mediante o embaraço, a não resolubilidade de um processo que se assumiria em curso. A vivência de um problema será então radicalmente negativa.
Em conformidade, qualquer “formulação” positiva do problema – que o identifica dando-lhe forma – constitui já um segundo passo problematológico. E como tal implica uma interpretação daquela negação – arriscando, como qualquer tradução, alguma traição ao sentido original. É neste momento já derivado que se situam expressões de um atual problema como “pandemia”, “o preço da imortalidade”, “progresso ou retrocesso civilizacional?”….
Um passo consequente possível é o “equacionamento” do problema antes formulado – analisa-se este último, decompondo-o nuns elementos que o componham mediante certas operações, e igualiza-se (lat. aequare) o respetivo comportamento a algum valor (no sentido de instância de uma variável), em algum parâmetro, cuja obtenção resolva assim o conjunto. Outra possibilidade é, em consequência direta da formulação assumida do problema, apontar intuitivamente um objetivo resolutivo. Mais os critérios da ulterior verificação desta resolução.
A quarta etapa, normalmente constituída por diversos momentos, será constituída pela obtenção do valor em falta para a resolução da equação. Ou pelo cumprimento do objetivo estabelecido.
No entanto, aquilo que urge alcançar não é esse último ou o valor da variável isolada na equação, mas sim a resolução do problema vivido! Se a equação não traduzir adequadamente o problema, até pode ser solucionada, mas continuamos embaraçados nele. E o mesmo vale para o cumprimento de um objetivo proposto como solução do problema. Cabe assim avaliar quão este último é resolvido mediante o produto da quarta etapa, segundo os dois passos anteriores.
No caso vertente, como Falcão Alves reconhece explicitamente, e Malta e Sousa Pereira Coutinho me parecem assumir, não devemos esperar que a resolução advenha de uma suspensão das tecnologias agora emergentes. Antes, da implementação destas, diremos metaforicamente que terá de se não pôr à frente dos processos do “homem” e da “natureza”, nem estes se constituírem como obstáculos de uma “tecnologia” que carateriza o género Homo desde a espécie Habilis. O que assentará na implementação de significados tais dessas palavras entre aspas que faculte uma resolução às respetivas referências – as velhíssimas questões que recordei na anterior crónica inicialmente mencionada.
Enfim, dispondo-se o processo problematológico em vista do quinto passo, logo nos primeiros se deve optar pela pista que se afigure facultar uma melhor resolução do problema. Isto é, se uma pista representar na perfeição o problema reconhecido, mas sendo a sua resolução de tamanha dificuldade, ou custos, que os procedimentos resolutórios consequentes não pareçam poder levar-nos a bom porto, mais valerá uma formulação imperfeita, mas cuja mais fácil resolução ao menos alivie o problema.
Pela racionalidade tecnológica na resolução dos problemas abertos pela tecnologia atual
A anterior formalização problematológica, e em particular o juízo de valor com que a concluí, constitui um apelo à implementação da chamada “racionalidade tecnológica” (ainda que não apenas desta). Caraterizada, grosso modo, por distinguir os meios e os fins de uma ação, dispondo os primeiros em ordem ao cumprimento mais eficiente possível dos segundos.
Os critérios de sucesso desta racionalidade (v. Mario Bunge, “Toward a philosophy of technology”, 1972) reportam-se a valores como a fiabilidade, a rapidez e economia das soluções, a estandardização destas, etc. Um sucesso que frequentemente requer o emprego de teorias científicas. Mas podendo admitir algumas que os cientistas denunciem como falsas – designadamente, quando a falsidade se jogue num nível de precisão superior àquele em que se obtenha a solução prática; quando a parte falsa da teoria não tenha consequências na aplicação pontual desta última; quando a urgência do problema não permita uma explicitação exaustiva das variáveis e seus valores.
Adiando uma abordagem a diversas questões relativas a este pragmatismo tecnológico, anotarei aqui antes uma objeção aberta pela menção da autora acima citada a Martin Heidegger: tenho ideia que, na linha deste filósofo, uma terapia dos nossos tempos mediante a racionalidade tecnológica equivalerá a (tentar) curar um doente dando-lhe mais da causa da doença.
Talvez. Terei de me demorar além da leitura apenas na diagonal que fiz de algumas passagens de Ser e Tempo e de A Questão da Técnica, a ver se ultrapasso a ideia de que constituem jogos como o bridge ou o xadrez: belos entretenimentos, para quem gostar mais de se entreter associando palavras do que combinando cartas ou bonecos de torres e de cavalos.
Mas, ainda que não passem de jogos, tal como no tatami talvez alguém possa treinar a esquiva em irimi sob sugestão de dois movimentos simétricos do cavalo no tabuleiro aos quadrados – apenas lhe convirá muito (!) que não pense nem se mova ali exatamente como o jogador de xadrez e a sua peça – talvez alguns dos agentes que enfrentam o atual problema civilizacional e antropológico, mas sob os valores da eficácia e da eficiência, encontrem no jogo heideggeriano uma ou outra sugestão pontual que possam, eles então, desenvolver frutuosamente. Inclusive para que os heideggerianos continuem a ter bibliotecas e congressos e biscoitos nos coffee breaks… e assim possam prosseguir no seu entretenimento.
A revisitá-los aqui, pois.