As conquistas do capitão de abril Salgueiro Maia

por Lucas Brandão,    3 Abril, 2022
As conquistas do capitão de abril Salgueiro Maia
Salgueiro Maia / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)
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Castelo de Vide, uma pequena vila no distrito alentejano de Portalegre, foi a mesma que, na sua Rua de Santo Amaro, no nº 15, viu nascer Fernando José Salgueiro Maia, no remoto dia 1 de julho de 1944. Mal sabia a vila e os seus próprios pais que estaria ali o rosto da Revolução dos Cravos, que destronou e fez desmoronar o Estado Novo, regime ditatorial vigente em Portugal desde 1926, ainda antes do seu nascimento. A sua vida foi fugaz, tendo falecido aos 47 anos, no dia 3 de abril de 1992, na cidade de Lisboa. Lisboa, que seria a cidade-palco de uma das datas mais significativas do calendário português: o 25 de abril. No caso, o de 1974.

Salgueiro Maia cresceria um pouco longe desse Castelo de Vide, nomeadamente nas cidades de Coruche, de Tomar e de Pombal, todas elas bem a centro do país, embora tenha deixado amigos nessa vila que o viu nascer. Órfão de mãe desde os 4 anos — tinha falecido aos 29 anos de idade, num passeio por Lisboa, depois de ter sido atropelada por um autocarro, à imagem do marido e do filho, embora sobrevivessem —, viveria com o seu pai, Francisco, que foi ferroviário durante a sua vida e que forçou estas várias mudanças de residência. Seria criado por ele e pela sua companheira, Maria Augusta, que era modista e a quem chamaria de “madrinha”. O avô, pai de Francisco, ficaria por Castelo de Vide, vivendo perto da sua estação, levando a que o pequeno Salgueiro Maia não perdesse a sua ligação às raízes.

Foi em Leiria que finalizou o ensino secundário e, aos 20, ingressou na Academia Militar, sendo colocado na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, nas proximidades das cidades por onde cresceu e viveu, para o tirocínio (a prática de serviços militares). Isto mesmo apesar da disposição de o pai de o colocar a estudar em Coimbra, mas com Salgueiro Maia a querer, para si, o serviço militar e a defesa dos valores do Estado e do país. Para isso, e não obstante a sua estatura pequena, compensava com trabalho obstinado e empenhando, usando a farda como se fosse parte de si, mesmo nos fins-de-semana de repouso.

Assim, materializou uma paixão que já tinha pela segurança e salvaguarda dos outros, já que, quando era mais novo, gostava de brincar às guerras ou assumindo o papel de xerife, mostrando, de igual forma, o seu jeito a comandar pelos campos das cidades onde viveu e abdicando da bola nos pés. Brincadeiras que, embora mostrassem um jovem ativo e reboliço, não escondiam a tristeza interior de ter perdido a mãe tão cedo. De igual modo, na figura de comandante de instrução, chegou a fazer parte dos corpos militares portugueses na Guerra Colonial, nomeadamente da 9.ª companhia dos Comandos.

Era, então, alferes-coronel, tendo sido mobilizado para Moçambique no ano de 1967, perdurando até 1969. Com a promoção a capitão, em 1970, seguiu para a Guiné um ano depois, onde ficou até 1973. Lá, pôde vivenciar, na primeira pessoa, as grandes preocupações e perturbações que camaradas seus nutriam, numa guerra que não era a sua e que queriam que deixasse, definitivamente, de que acontecesse. Tanto que, no regresso a África, pelas portas da Guiné, encabeçou a companhia que designaria de “Os Progressistas”, levantando algumas sobrancelhas internamente. A isso, juntavam-se as adaptações que iam fazendo das músicas de Zeca Afonso, conotado com a contestação ao regime.

Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite
Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à apalavra dada à ideia tida»
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse

Sophia de Mello Breyner Andersen em “Musa / O Búzio de Cós e Outros Poemas” (publicado em 2016)

No entretanto, e na crescente contestação no seio do exército em relação à política colonial e à própria política repressiva interna do Estado Novo, Salgueiro Maia apareceu na figura de delegado de cavalaria e fez parte da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA). Havia sentido na pele a sobranceria das altas patentes e também a forma subserviente como olhavam os colonizados, empregando-os em trabalhos que não ficavam longe da escravatura. De igual modo, ia integrando os primeiros ventos de conspiração e de contestação ao regime, ainda em solo africano, por entre os membros do exército, que pensavam numa solução política ao invés do confronto de armas. Nesse papel, esteve envolvido na intentona do Levantamento das Caldas, a 16 de março de 1974, em representação daqueles que tinha visto serem detidos por causas que consideravam legítimas, materializando o sentido de camaradagem do exército. Não obstante, os receios de se desferir fogo e de haver derramamento de sangue, para além de falta de unanimidade na adesão a estas iniciativas, não fizeram lograr os seus intentos.

Isso mudaria passado um mês, a 25 de abril. O então capitão Salgueiro Maia, com somente 29 anos, seria o rosto dessa mobilização, já que foi ele, naquela madrugada de 24 para 25, que viria a cercar os edifícios dos ministérios em pleno Terreiro do Paço, dando um passo importante naquele que era a planificação gizada pelo MFA. Com a sua farda habitual, sem lugar para grandes luxos, levaria dez carros blindados (apesar de obsoletos, embora em velocidades inapropriadas para ligeiros), todos eles — com uma média de idades de 23 anos — provenientes da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, que o acompanhariam na marcha até à capital do país, marcha essa que havia começado às três horas e meia. Muito improviso foi o que se ia mostrando consoante as horas passavam, embora esforços tenham sido feitos para mostrar que o número dos revoltosos era bem abaixo do que aquele que, de facto, se reunia. Exemplo disso é a simbólica passagem de um sinal vermelho num cruzamento na Cidade Vermelha, para impulsionar esse momento que se queria como revolucionário.

O sucesso matinal naquela praça, não obstante o confronto com forças leais ao governo, que viriam a condescender — apesar de um blindado, liderado pelo brigadeiro Junqueira Reis, ter chegado a ordenar que disparassem sobre Salgueiro Maia — e outras até a desertar, conduziria, por ordem do comandante Otelo de Saraiva Carvalho, um dos cabecilhas desta Operação Fim-Regime, recolher a rendição do então presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, que cede o poder ao General António de Spínola no célebre Quartel do Carmo, no largo homónimo lisboeta. Perante a tensão existente, mas salvaguardado com a lealdade dos seus camaradas, chegou a ordenar, com o célebre megafone, que fossem desferidos tiros sobre a parede exterior, depois de montado o cerco sobre o quartel. Salgueiro Maia, que salvaguardaria a segurança deste na viagem até ao avião que o levaria para a Madeira, ponto intermédio para o exílio no Brasil. Seria, assim, um vulto heróico numa cidade à qual nunca guardou muita estima, especialmente dada a morte da sua mãe décadas antes.

As turbulências que se seguiram no ano e meio posterior, culminando no 25 de novembro de 1975, fizeram com que o desgaste se fizesse notar cada vez mais, levando-o a sair da Escola Prática de Cavalaria. O estatuto de herói era um com o qual não se sentia confortável, tornando-se até rude com quem o elogiava, limitando-se a assumir que tinha cumprido com o que tinha de ser feito. No entanto, muitos debatem-se com a humilhação e o desprezo sofridos por Salgueiro Maia neste período, vindos das mais altas patentes militares, que o colocariam em funções secundárias.

Só regressaria a esta quase dez anos depois, depois de estar em serviço nos Açores — na 3.ª Repartição do seu Quartel General — e, de novo, em Santarém, já em 1979, gerindo o setor prisional do Presídio Militar, para além de ter passado pelos serviços administrativos da Direção de Arma de Cavalaria, em Lisboa. Enquanto isso, prosseguiu os seus estudos, conseguindo uma licenciatura em Ciências Políticas e Sociais e uma pós-graduação em Ciências Antropológicas e Etnológicas, ambas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Retomava, assim, o seu objetivo académico, que havia sido frustrado no regresso de Moçambique, por força da Crise Académica de 1969. Dava, com isto, forma e conteúdo às suas paixões de vida, viajando pelo estrangeiro ao lado da sua esposa e fazendo parte da Associação dos Amigos dos Castelos, destinada à salvaguarda dos monumentos militares em Portugal.

No percurso profissional, recusaria fazer parte do Conselho da Revolução, para além de declinar um convite para assumir o cargo de governador civil do seu distrito de Santarém, ser adido militar — oficial com funções diplomáticas com as autoridades de um dado país — na embaixada que pretendesse ou até fazer parte da Casa Militar da Presidência da República, o gabinete de suporte ao também Comandante Supremo das Forças Armadas. Em 1983, já no grau de major, ao qual subira dois anos antes, receberia a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, sendo condecorado, de igual modo, com o grau de Grande-Oficial da Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito no ano da sua morte, 1992, e, quinze anos depois, com a Medalha de Ouro da cidade de Santarém. Em 2016, também seria condecorado com a Grã-Cruz do Infante D. Henrique.

A sua vida terminaria em abril de 1992, no Hospital Militar de Belém, depois de lhe ser diagnosticado um cancro intestinal, pese embora várias cirurgias. Deixara a sua esposa e amor da sua vida, Maria Natércia Santos, professora que havia conhecido pouco tempo depois de voltar de Moçambique, com quem casou em 1970, para além de Catarina e de Filipe, os filhos que foram adotados pelo casal nos anos de 1985 e de 1988. A sua última patente seria a de tenente-coronel, à qual ascendeu em 1988, embora sempre fosse contra grandes promoções e o exercício de funções de vulto.

Fernando José Salgueiro Maia seria, não só, homenageado por todo o país, mas também na sua própria terra-natal, Castelo de Vide, que o vê, ainda hoje, como seu filho pródigo e que o acolhe no seu solo. Numa campa rasa, num ataúde barato, sem honras de Estado, ao som da Grândola, Vila Morena, limitando a sua última viagem à presença de amigos. Foi assim a sua partida, ao jeito de um homem de jeitos simples, que apelava à capacidade de “desenrascanço” do português e que na qual mostrou ser mestre. Salgueiro Maia foi vulto e figura maior de um Abril que continua pendente de se cumprir por inteiro. Porém, o seu exemplo não esmorece com a passagem do tempo, nem com a mudança dos espaços onde foi protagonista. Assim, continua ao serviço, pelos lados da mente e da alma daqueles que fazem subsistir o legado de Abril, nas suas crenças, nos seus comportamentos e, claro está, nas suas vidas.

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