As sonoridades e as causas do afrobeat de Fela Kuti
Fela Kuti é uma das referências quando abordamos a música africana, sendo um dos seus protagonistas mais conhecidos nos “primeiros mundos”. Nascido na Nigéria a 15 de outubro de 1938, numa fase em que esta era uma colónia inglesa, viveu 58 anos, tendo falecido em Lagos, na já independente Nigéria, a 2 de agosto de 1997. A sua grande revelação para o mundo foi a criação de um autêntico e genuíno género musical: o afrobeat. Uma mescla inigualável entre o jazz, o funk, o rock psicadélico, os cânticos e ritmos tradicionais do ocidente africano e do highlife vindo do Gana, que não é mais do que uma reintepretação com instrumentos ocidentais da música das suas comunidades identitárias. Para essa revelação, não poderia dispensar a presença de Tony Allen, o baterista da sua banda e com quem colaborou durante duas décadas.
Criou, assim, um género em que, fazendo valer-se de um grupo extenso de músicos, colocou várias vozes e instrumentos em harmonia, em músicas normalmente extensas, com muito sopro (trompete, trombone e saxofone sempre presentes) e muito groove, complementado pela bateria e por instrumentos típicos africanos, como o xequeré (de percussão), a conga (também de percussão mas criado em Cuba, sendo importado) e a sua variante tradicional, o akuba. Entre 15 a 30 elementos conjugavam, assim, para lá do que já se mencionou, várias guitarras, desde a de ritmo, o baixo e o violão, que davam robustez à dupla de saxofones que também acompanhavam, por norma, as suas melodias reiteradas e mexidas, e à presença das teclas.
Nas letras, uma dinâmica dialogante, apelando sempre à resposta à letra, que se estendia para lá dos 15 minutos em diversas circunstâncias (alegadamente, é uma das razões pelas quais nunca se tornou verdadeiramente famoso para lá de África). A despoletar, um arranque instrumental, que, na casa de vários minutos, ligava ao refrão, entoado num inglês carregado com as heranças crioulas nigerianas (nomeadamente, o idioma yoruba). As performances ao vivo, por norma, não repetiam aquilo que se havia imortalizado em discos, com a necessidade de apresentar sempre algo novo e fresco, capaz de inovar e de se direcionar às suas causas sociais e civis.
Entre os discos que se tornaram mais relembrados na atualidade, estes são os que mais se destacam:
- “Gentleman” (1973, famoso pela capa com um macaco, que simboliza as comunidades africanas, com vestes, que simboliza a adesão cultural destas aos padrões de vida europeus e a mentalidade colonial que subsiste; sendo uma das muitas capas de álbuns que o artista Lemi Ghariokwu fez para Fela Kuti);
- “Confusion” (1975);
- “Expensive Shit” (1975, com somente duas faixas);
- “Zombie” (1977);
- “No Agreement” (1977, também ela só com duas canções, nas quais se ouve a presença do trompetista norte-americano Lester Bowie);
- “Unknown Soldier” (1981, a sua história está explicada abaixo)
Foi num país turbulento que nasceu Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, numa família de classe média-alta, embora aprofundada em causas políticas e sociais. Nasceu em Abeokuta, a capital do estado de Ogun, na então colónia britânica da Nigéria. A sua mãe era uma conhecida anti-colonialista e ativista feminista de seu nome Funmilayo Ransome-Kuti; enquanto o seu pai, o reverendo Israel Oludotun Ransome-Kuti, era padre na Igreja Anglicana, sendo também professor (seria o primeiro presidente do sindicato desta profissão no país). Os seus irmãos, Beko e Olikoye, tornar-se-iam médicos e o seu primo, Wole Soyinka, o primeiro africano a arrecadar um Nobel da Literatura. Fela estava destinado a seguir o caminho dos seus irmãos quando, já em Londres, para onde foi aos 20 anos, se voltou para a música.
Ingressou, assim, no Trinity College of Music e afeiçoou-se ao trompete. Com alguns dos seus companheiros, formou uma banda que anteciparia o seu afrobeat: os Koola Lobitos, que dava cartas com um misto de jazz e da tal highlife do Gana. Dois anos depois, casar-se-ia com Remi Taylor e, nos três filhos que teria com ela, dois seriam músicos: Femi, que acompanharia o seu pai na sua futura banda em vários instrumentos, e Yeni, uma dançarina e cantora. Os Koola Lobitos acompanhariam Fela no regresso à Nigéria, agora independente, e estagiaria na companhia de rádio do país. Porém, seria uma viagem ao Gana, em 1967, que assentaria o percurso musical de Kuti, que, para lá do jazz, do funk e da highlife, convocou as heranças indígenas yorubas e, a elas, acrescentou um toque de salsa, com um perfume cubano e porto-riquenho, e de calypso, vindo do Caribe e das distintas vozes dos ritmos que, em Trindade e Tobago e outras ilhas, despontavam.
Levou a banda aos Estados Unidos em plena contracultura, no ano de 1969, onde esteve dez meses. Conheceria o movimento Black Power, que defendia a autodeterminação das pessoas com ascendência africana nos Estados Unidos. Dá, igualmente, de caras com os escritos de Malcolm X e com o líder do então Black Panther Party, Eldridge Cleaver. Seria uma nuance crucial na sua experiência, que se tornaria constante no seu percurso musical. Agora chamada Nigeria ’70, a banda continuaria a fintar os obstáculos sociais e raciais que perduravam e chegaria a lançar as “The ’69 Los Angeles Sessions”, depois de algumas performances em plena Sunset Boulevard. Pouco tempo depois, estavam de volta à Nigéria para ficar e com o nome que perduraria pelo tempo: Afrika ’70. Das temáticas passionais e conjugais, os motivos das canções tornaram-se bem mais centrados nas vicissitudes sociais, económicas, culturais e civis. Este instinto levá-lo-ia a formar uma autêntica comuna, a República de Kalakuta, perto da capital, Lagos, onde viveu com a sua família e onde montou o seu estúdio de gravação, que considerou independente em relação ao regime militar que governava o país. “Kalakuta” por recordar o “buraco negro de Calcutá”, na Índia, uma masmorra na qual estiveram detidos os prisioneiros de guerra britânicos depois das insurreições dos populares hindus.
De igual modo, montaria o seu Afrika Shrine, um autêntico santuário, onde, para lá dos seus concertos, organizava e conduzia as celebrações tradicionais para as comunidades Yoruba, uma religião sincrética, que, para além das ancestralidades indígenas, invocava os orixás e realizava os rituais que conduziriam à fundação de outras, como o candomblé e o umbandá; para além da centralidade no “olodumare”, a manifestação do supremo omnipresente e responsável pela criação de toda a vida. Os orixás seriam os seus filhos e a sua adoração reconhecia uma vida que se pretendia calma e serena, para além de auxiliar os seus crentes na resolução dos problemas mundanos a partir dos seus poderes, desde a possessão (daí o voodoo), ao sacrifício e à adivinhação. Fela Kuti mudaria o seu nome para Anikulapo (aquele que carrega a morte no seu bolso, assumindo a responsabilidade do seu destino e da sua morte), abdicando do nome de escravo Ransome.
Perante a diversidade de idiomas no continente africano, Fela Kuti assumiu o inglês crioulo, tornando a sua música disponível e percetível para todo ele. A sua fama chegaria a Ginger Baker, o célebre baterista dos Cream, que o convidaria para colaborar no seu disco “Stratavarious” (1972), onde Kuti cantou, tocou órgão, piano e os típicos instrumentos de percussão africanos. Porém, essa não lhe trazia proveitos no seu próprio país, já que o governo faria raides constantes à sua comuna. Isso não o impediu de prosseguir na sua carreira discográfica, gravando “Confusion” (1975). Kuti fez os arranjos, compôs-lo e produziu-o, numa autêntica ode às linhagens e às heranças africanas, fazendo uma crítica ao estado sociopolítico do seu país, denunciando a sua carência estrutural pós-colonial. A sua aversão às forças do Ocidente tornou-se nítida e pungente, enaltecendo uma vocação nacionalista e menos global e frenética.
Neste disco, Kuti apresenta a percussão dos paus de James Abayomi, a bateria de Tony Allen (que tanto interage em improvisação constante com o piano elétrico do nigeriano), o saxofone barítono de Lekan Animashaun, o baixo de George Mark Bruce, a guitarra tenor de Segun Edo, as congas de Henry Kofi e Daniel Koranteg, o trompete de Tony Njoku, as maracas de Isaac Olaleye e a guitarra rítmica de Tutu Shoronmu. Dois anos depois, chegaria o reputado “Zombie”, um disco que visa ainda mais diretamente as milícias militares nigerianas (zombie é, na verdade, uma metáfora sobre os métodos repressivos e agressivos destas). Foi um dos catalisadores para um raide ainda mais violento na sua comuna, protagonizado por uma centena de soldados, o que resultaria na morte da sua mãe, que vivia na casa oposta, ao ser arremessada por uma janela. Fela seria brutalmente agredido e a sua comuna, tal como o Afrika Shrine, seria incendiada, acabando todo o estúdio e os seus instrumentos e gravações por serem destruídos. No entanto, este levaria o caixão da sua mãe à residência do general Olusegun Obasanjo, o então líder do exército do país, e redigiu “Coffin for Head of State” e “Unknown Soldier” como tributo em relação a essa turbulenta experiência da sua vida.
O seu grupo passou, assim, a viver num hotel, e a vida pessoal de Kuti tornou-se cada vez mais agitada. Casou-se com 27 mulheres que faziam parte da sua república, de forma a evitar que as autoridades o acusassem de as sequestrar. Nesse ano de 1978, Kuti continuaria a causar polémica, depois de, num concerto na capital do Gana, Accra, despoletar um motim que o levou a nunca mais poder entrar no país. Depois de atuar em Berlim, no seu festival de jazz, onde, alegadamente, o fez para recolher fundos para a sua campanha presidencial, criou o seu Movement of the People, um partido destinado a sanear a sociedade e a muni-la de um espírito africanista e nkrumahnista (referente ao pan-africano e marxista-leninista Kwame Nkrumah, o primeiro a governar Gana como um país independente, sempre com um sentido profundamente socialista e de unidade africana; um pouco à imagem das ideias de Thomas Sankara no Burkina-Faso, embora este fosse ainda mais progressista). Depois de ver a sua candidatura rejeitada, decidiu regressar ao seu percurso musical e criou a banda Egypt ’80, onde defendeu a africanidade da civilização egípcia e de todos os seus sistemas civilizacionais e científicos. De igual forma, visou, nas suas letras, o sistema político que ainda vigorava na Nigéria, o que, em 1984, viria a causar a sua detenção e prisão por contrabandear. A Amnistia Internacional seria uma das instituições que sairia em apoio de Kuti, denunciando essa prisão como algo político.
O músico só seria libertado vinte meses depois, conduzindo-se, depois, a uma ampla tournée pelos Estados Unidos e pela Europa, tendo até participado no concerto “A Conspiracy of Hope”, organizado pela Amnistia, em celebração dos seus vinte e cinco anos. Ronald Reagan, Margaret Thatcher, a CIA, as multinacionais aeroespaciais, e o presidente sul-africano à data, Pieter Willem Botha, em pleno regime do apartheid, seriam os alvos desta nova senda musical de Kuti, até ao momento em que, nos anos 1990, dava ares de desgaste e até de doença. A sua morte foi controversa, embora se suspeite que tenha sido contaminado com SIDA, conforme a informação dada pelo seu irmão Olikoye, que era um grande ativista em relação à sensibilização para esta doença e um ex-ministro da Saúde. O seu funeral seria acompanhado por mais de um milhão de pessoas e a sua devoção tornou-se tão perene que deu origem a um novo Afrika Shrine, que seria, daí em diante, orientada pelo seu filho, Femi, onde, ao lado do seu irmão mais novo, Seun, continua a dar concertos. Aliás, foi este que deu seguimento aos Egypt ’80, que continuaram a tocar com a liderança dos vocais e do saxofone de Seun.
Não foi, assim, só a música que fez Fela Kuti perdurar no tempo. Foi também a sua presença ativista, que se agigantou com o passar dos tempos, com o aumentar das suas crónicas políticas em jornais que fintavam a censura e a estatização dos órgãos de comunicação (usou o pseudónimo “Chief Priest Say”). As constantes denúncias que fez à corrupção nigeriana ganharam destaque internacional, assim como as dificuldades e as vulnerabilidades dos africanos no pós-colonialismo, experienciando problemas de ordem política e económica que são herança desse colonialismo. O desemprego, a iniquidade, a pobreza e a instabilidade política permaneceram presentes e a corrupção foi algo que incapacitou a resolução destas questões. A voz de Kuti pretendia, assim, confrontar de frente esta máquina burocrática e militarizada, o que o conduziu, por mais de uma centena de vezes, à prisão e a raides à sua propriedade e à sua família.
Não deixou, ainda assim, de reunir autênticos saraus (Yabi Sessions), onde procurava, a partir de rituais que ele orientava, alertar para os problemas correntes do dia-a-dia dos diferentes povos africanos e de valorizar o legado e o presente da negritude. De igual modo, criticava veementemente a religião cristã e a islâmica, pela sua natureza exploradora, as grandes corporações multinacionais e a própria medicina ocidental, assim como refletia sobre questões ecológicas. A sua música não era diferente e canalizava todas as suas perspetivas e as suas perceções da realidade para um discurso pan-africano, de confronto e de combate à herança imperialista deixada pelos europeus e pelos norte-americanos, de forma a preservar e a valorizar as religiões e as culturas típicas e tradicionais. Como grande meta política e social, ambicionava ver uma república africana unida, sustentada por valores socialistas, orientada pelos direitos humanos convencionados e anti-ditatoriais. Como a sua própria vida pessoal indica, acreditava na poligamia e levava tanto a sério as suas origens e as suas experiências que procurava que os seus concertos se tornassem reproduções desses momentos vividos. Tornando a arte política, imprimia fielmente aquilo que desejava partilhar.
A música tinha, assim, uma motivação política, mas também uma motivação quase existencial, com uma missão de importar dinamismo e de agitação, capaz de derrubar o que está mal em prol de uma vida melhor e mais humana. Uma agitação que, claro está, é social, mas que permanece presente ainda hoje, com a celebração da vida, da música e das ideias de Kuti na anual “Felabration” que é feita no novo santuário musical da família Kuti. No século XXI, mais de quarenta álbuns foram lançados um pouco por todo o mundo e a sua figura deu origem a peças de teatro, a filmes e a numerosas reintepretações musicais que o tornaram valorizado nas indústrias nas quais não se revia, mas que o permitiram ser amplificado e mais relembrado.
Fela Kuti permanece como uma viva memória de um ativismo que, ainda hoje, perdura. O orgulho de ser africano, dando-lhe ares e graças de um futuro sustentado na sua diversidade cultural e de identidades. A sua música representa isso mesmo, na sonoridade e na letra, na pujança e na energia. Mais do que a música por si mesma, o seu papel multifuncional, dando vozes a outras tantas, colocando-as em diálogo com os poderes internos e externos, sendo, muitas vezes, um diálogo de confronto e de colisão. Kuti é, assim, um exemplo concreto de uma música que assenta em raízes indígenas e ancestrais com um sentido de presente e de futuro, orientado pelo ser africano e, acima de tudo, pelo ser da música. Em suma, o ser do afrobeat.