Ausência de pai em “O Festival dos Trovadores”, filme de Özcan Alper

por Sandra Pires,    19 Setembro, 2022
Ausência de pai em “O Festival dos Trovadores”, filme de Özcan Alper
“O Festival dos Trovadores”, filme de Özcan Alper
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Este artigo pode conter spoilers.

Que fundura de vazio pode deixar a ausência de um pai? Tema sensivelmente tratado no recém estreado filme turco O festival dos trovadores de Özcan Alper (Netflix). Yusuf, protagonista da história, confronta-se com o reencontro do pai, após 25 anos de ausência deste. Dando conta que o pai se encontra gravemente doente percebe que a viagem de carro para levar o pai ao festival de trovadores ao qual se dirige se afigura como derradeira oportunidade de encontrar algum sentido para o abandono do pai desde a adolescência e apaziguar a ferida aberta que o dilacera e compromete a sua vida emocional adulta. É um filme belíssimo sobre as marcas psicológicas que a ausência de um pai pode deixar na vida psíquica adulta e da tentativa de resgate do sentimento, edificante no humano, de ter habitado afetivamente o pai.

Incapaz de responder às questões do filho, Ali Caprichoso, o músico itinerante, mostra-se impenetrável, amputado da capacidade de se adensar na relação com o filho. Ausenta-se no olhar e nas trovas que canta para um lugar de melancolia ao qual parece estar preso. O aparente desencontro da linguagem dos dois, com Yusuf a indagar-se, apesar do tempo, existiu no pensamento do pai e o pai a falar-lhe das perdas dos pais na sua própria infância veicula as perdas traumáticas infantis que mantém o pai emocionalmente refém e estrangulam a sua capacidade de investir afetivamente o filho. Desta forma, Alper permite-se abordar a possibilidade de transmissão transgeracional do trauma psíquico, de como este se pode repetir nas gerações se não houver possibilidade de ser pensado, transformado. É deste agueiro que Yusuf pretende escapar. Percebe que tornar o lugar vazio do pai um lugar habitável, um lugar onde a sua libido não se afogue no desespero e no ressentimento é o único caminho que pode percorrer para se salvar e fazer os seus próprios investimentos libidinais.

Um filme belíssimo também do ponto de vista estético percorrendo paisagens geográficas que acompanham a intensidade e tonalidade dos afetos em cena, da aridez e vastidão da distância silenciosa entre ambos à beleza ímpar da peregrinação de Yusuf de procura do lugar sagrado que é existir no mundo interior de um pai. 

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