“Autismo”, “O da Joana” e “Cair para Dentro”: uma trilogia de Valério Romão que explora a condição e contradição humanas

por José Moreira,    27 Outubro, 2022
“Autismo”, “O da Joana” e “Cair para Dentro”: uma trilogia de Valério Romão que explora a condição e contradição humanas
Capas dos livros “Autismo” (2012), “O da Joana” (2013) e “Cair para Dentro” (2018)
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Este artigo contém spoilers.

Em 2022 assinalam-se 10 anos da publicação de “Autismo” do escritor Português Valério Romão (ler entrevista) na editora Abysmo, fundada por João Paulo Cotrim. Este livro deu início à trilogia “Paternidades Falhadas”, que corresponde a três temas ligados à família. Estes debruçam-se sobre diferentes fases da parentalidade e situações que a podem afligir. Os conceitos base que se estabelecem como espinha dorsal de cada história são: o Autismo na infância; a morte fetal; o diagnóstico precoce de Alzheimer. Estes temas delineados pelo autor, são explorados em vários contextos que vão da saúde mental e física, à crítica da sociedade, a momentos filosóficos que complementam a profundidade narrativa. As ilustrações dos três livros são da autoria do artista Alex Gozblau, que captura visualmente a emoção das narrativas.

Autismo” (2012)

A génese do “Autismo” provém da experiência pessoal e familiar de Valério Romão, portanto, este é o livro da trilogia com maior teor autobiográfico. O núcleo familiar da primeira história da trilogia é materializado em Marta, Rogério e Henrique (mãe, pai e filho respectivamente). 

O desespero assola este casal a partir do momento em que notam as diferenças comportamentais e de desenvolvimento do filho, comparado com crianças da mesma idade ou até mais novas. Nos primeiros meses de vida de Henrique, ficam presos à ansiedade do diagnóstico, que tornará reais os seus medos e suspeitas. O diagnóstico e consequente busca de tratamento e terapia, espoleta uma sequência surreal de tratamentos, que desembocam em positividade tóxica e charlatanices abundantes, com poucos ou nenhuns resultados. Todo este processo dá inicio à implosão emocional entre Marta e Rogério.

“Marta, que, como todas as mães, queria ser chamada de mãe, pela primeira e não única vez, porque essa evocação primeva exortaria definitivamente os fantasmas da culpa e do amor, aqueles que se originavam nela por ter passado a amar Henrique tão extraordinariamente sem que desse amor resultasse o milagre da palavra ou a retribuição apaixonada de um abraço.”

“Autismo” (2012)

Assistimos à erosão da relação do casal, devido à total e exaustiva dedicação de Marta ao acompanhamento do filho (ilustrada pelas conversas unilaterais com Henrique) e à incapacidade de Rogério aceitar o filho que não esperava (com queda no abismo depressivo). O desespero intensifica a quebra do amor entre eles, na busca desenfreada de resgatar alguns resquícios de normalidade para a vida de Henrique. O casal sente-se cada vez mais sozinho, tanto entre si, como pelo afastamento da sua vida social e das suas ligações familiares disfuncionais. 

É desarmante o sentimento de perda dos pais em relação a algo que nunca tiveram: a normalidade do filho. Como Henrique não comunica, vivem no constante tormento adicional de não saberem que efeitos podem estar a surtir os seus esforços. Toda esta fragmentação, emocionalmente pesada, leva à reflexão gradual sobre: não seria melhor para todos que Henrique simplesmente não existisse, inclusive para ele próprio? 

Esta é uma história carregada de dilemas existenciais e emocionais, cativante e assustadora, derivado do realismo mundano que a sustém. O autor opera a transformação de matéria profundamente íntima em matéria literária ficcionada, que fará o leitor imaginar onde se encontra a fronteira entre ambas, e mergulhar nos confrontos existenciais da narrativa como se fossem hipotéticamente seus ou de alguém que conheça.

Capa do livro “Autismo” (2012)

O da Joana” (2013)

A grávida Joana e o marido Jorge são arrancados do sono profundo para a realidade. O drama de Joana começa quando esta acorda numa poça húmida, antes de tempo e a meio da noite. Após a surpresa inicial da precocidade do parto, consegue acordar e mobilizar Jorge para se deslocarem ao hospital. Servindo-se de todo o seu extenso estudo preparatório da maternidade, atenua o pânico que a invade. Mas é à chegada às urgências, e posterior confirmação da perda do bebé, que entra em choque. Confrontada com esta dura realidade, constata que toda a informação que consumiu não a preparou para a possibilidade de este não ser o final feliz pelo qual esperaram oito anos.

“…Joana começava a impacientar-se, andando de um lado para outro no gabinete, que se estava a tornar esconso para tanta tensão acumulada, eu sei que Jorge não tem estofo para ouvir uma notícia destas, e que de certeza que para além de um bebé morto no final de tudo vamos ter também um casal morto…”

“O da Joana” (2013)

O colapso psicológico de Joana embate contra um meio hospitalar que, por vezes, a desumaniza. A organização “fabril” da maternidade, quase que passa despercebida no meio do seu desespero agonizante. Diversas situações de falta de empatia e tratamento abusivo, revelam aqui a profundidade da normalização da violência obstétrica, com que algumas grávidas se deparam diariamente.

Lançada para uma situação quase impossível de digerir, Joana torna-se gradualmente agressiva e até manipuladora, completamente subjugada pela violência emocional do momento. Isto é consequência do desespero de retomar o controlo de uma situação de pesadelo, que foge a todas as suas expectativas prévias.

Joana passa da proximidade da maternidade, do final feliz, para uma tentativa desesperada de um final “menos mau”. É um exemplo comovente de como o ser humano relativiza o trauma, na tentativa de se proteger das suas sequelas. Fiquei com a sensação de que “assistimos” à morte de diversos elementos da vida de Joana, nesta sequência narrativa que a acompanha e nos afunila em direcção ao seu desespero. 

Capa do livro “O da Joana” (2013

Cair para Dentro” (2018)

A última parte da trilogia retrata a história de Virgínia e Eugénia, mãe e filha, uma é a  antiga Presidente da Junta de Freguesia e a outra é Professora Universitária. Numa espiral descendente rumo à demência e à perda da identidade de Virgínia devido ao Alzheimer, fica evidente que, em paralelo à degeneração neurológica, existe a degeneração da relação familiar e afetiva. Este processo geralmente ocorre numa fase mais avançada da vida, a situação clínica atípica que assola Virgínia, castiga principalmente a sua filha, como fica evidente ao longo da história.

Esta relação, marcada desde cedo pelo abandono do lar por parte do pai/marido, divide-se constantemente entre a co dependência e saturação. O sufoco do controlo de mãe sobre a filha, não preparou Eugénia para assumir o controlo da sua relação com a mãe e de se tornar responsável por ela. Esta família monoparental e disfuncional depara-se, precocemente, com uma aceleração do processo de inversão do papel de parentalidade. Na sua frustração e impotência em lidar com a decadência progressiva de Virgínia, Eugénia contrata Joana para ajudar a cuidar da mãe, sim, a Joana.

“…se ao início tudo se regia pelo compasso da paciência infinita, eu repetindo-me e repetindo-me até as palavras perderem o esqueleto do sentido, a minha mãe fazendo as mesmas perguntas de dois em dois minutos, a gata, o curso, uma nespereira que tínhamos no quintal da casa antiga à qual ela nunca deu atenção e eu que sim, que não, que a gata isto e o curso aquilo, paciente como as dobras do tempo, e cada vez que perdia o tino por um minuto e respondia torto acabava invariavelmente a chorar…”

“Cair para Dentro” (2018)

Os dilemas profundamente pessoais de Eugénia, empurram-na para uma bolha de solidão  desesperante. A sua existência transitou progressivamente de estar sob controlo da mãe, para ser ela a controlar os destinos de uma Virgínia cada vez mais incapacitada e disfuncional. Isto afectou as suas relações fora de portas e tornou-a também, à sua maneira, numa incapacitada. A narrativa encadeada intensifica essa percepção, esse peso do abismo, e quase que nos deixa numa incapacidade induzida, que nos envolve no mundo caótico de Virgínia e Eugénia.

Nesta trilogia de “Paternidades Falhadas” usufruímos, através da apurada escrita criativa, de três interessantes narrativas, sem medo ou pudor do experimentalismo. A sua coesão é obtida através das diversas ramificações da estrutura narrativa, que se entrecruzam e acrescentam profundidade, humana e emocional, ao longo da trilogia. Apesar destas histórias facilmente se susterem, de forma isolada e por si (constituem três exercícios criativos distintos), fica evidente que o autor as consegue cerzir em si e entre si, incorporando personagens, locais e emoções com precisão. Estabelece assim uma sólida percepção de continuidade numa prosa que, por vezes, assume uma forma complexa ou dissonante. Destaco a não submissão a temáticas “expectáveis” por parte de Valério Romão, e considero que, mais do que um mero artifício ou exercício de estética literária, serve para impedir a sua diluição criativa no mar de literatura avulsa, que subjuga as prateleiras das livrarias. Esta trilogia é uma obra diferenciada, que explora a condição e contradição humanas. Não será obra ou autor para todos os gostos e, após a leitura, talvez se fique com a sensação de que isso seja propositado (ou não) e, de facto, só há uma maneira de o descobrir: lendo os livros. 

Capa do livro “Cair para Dentro” (2018)

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