“Beja-me, Beja-me Mucho”

por Rui Cruz,    12 Novembro, 2018
“Beja-me, Beja-me Mucho”
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Bom, na verdade, o texto que planeei escrever hoje nada tinha a ver com isto. Era um texto profundo, de análise a coisas da cultura e da sociedade, mas estamos em Portugal, um país cheio de acontecimentos fantásticos e imprevisíveis como chover em Novembro. Quem é que ia adivinhar que no Outono íamos ter água a cair do céu? Ninguém, como se pode comprovar pelas cheias que tomaram conta da capital do império. Por isso, tal como a protecção civil ou a secção de urbanismo e obras foram apanhados de surpresa pela chuva hoje, o governo pelos incêndios no verão ou o Bruno de Carvalho pela polícia quando abriu a porta de casa a pensar que era o estafeta com uma pizza familiar, também eu fui surpreendido com um dia carregado de peripécias e boa cobertura jornalística.

Pois é, hoje foi um dia em grande para os nossos jornais e canais noticiosos. Primeiro foram árvores a cair em carros com directos do local, como o da CMTV que durou mais de 15 minutos junto a um carro estacionado na Lapa que levou com um tronco em cima. Jornalismo sério, de investigação, onde nem uma tentativa frustrada de levantar o tronco inteiro da árvore por parte da jornalista, que muito admirada ainda atira um “eu sozinha não consigo levantar este tronco, por isso imaginem o que ele pesa”, faltou. No entanto, foi quando na redação já estavam a pegar num tabuleiro Ouija para pedirem a colaboração do Eng. Sousa Veloso na classificação botânica do meliante folhoso que destrói carros e vidas que se deu o mais importante acontecimento do dia a seguir ao meu gato ter finalmente aprendido a beber água sem a entornar pela chão da cozinha: um avião desgovernado entra no nosso espaço aéreo! Pronto, eis aqui finalmente uma hipótese para a nossa imprensa brilhar. E, meus amigos, se brilhou… se brilhou…

Numa altura em que se tanto se fala de “fake news”, foi bonito verificar que os nossos jornalistas continuam a primar pela objectividade e pelo profissionalismo, logo a começar pela certeza com que anunciaram o número de passageiros no voo. Em menos de 20 minutos, 4 orgãos de comunicação tinham a informação fidedigna de que na aeronave se encontravam 6, 8, 60 e 4 passageiros. Faltou-me o 24 para fazer linha. Aliás, o Correio da Manhã, indo mais longe do que os seus concorrentes, anunciava 6 passageiros na TV e 60 no site, para salvaguardar erros, criando assim o jornalismo à empreiteiro, do tipo “pá, manda aí uns números por cima e outros por baixo que se houver uma derrapagem um gajo diz que o valor certo estava no meio e ninguém nos arranja chatices”. Ainda dizem que já está tudo inventado. Confesso que, com tanta acerto por parte dos nossos meios de comunicação, cheguei a pensar que no final se descobrisse que afinal o avião não tinha passageiros… Aliás, que o avião nem sequer era um avião, mas sim um bando de gansos que se tinha desviado da rota migratória! É neste nível que está o meu grau de confiança no jornalismo.

Mas se a nossa imprensa brilhou, alguns dos nossos ilustres também deram um ar da sua graça. E porquê? Porque o avião (afinal era mesmo um avião) conseguiu aterrar. E onde? No descampado… desculpem, no aeroporto de Beja. Sim, esse aeroporto que custou para cima de 33 milhões de euros e que tão útil tem sido para… para… hum… Isso. Mas claro que, depois de hoje, esse valor já está justificado, como reconhece por exemplo Carlos Zorrinho com um esperançoso “Beja a ser solução de emergência. Pode ser isso e muito mais”. E pode sim, senhor! Pode ser um óptimo sítio para filmar o Aeroplane 3 ou para um museu sobre a péssima gestão dos recursos do estado. Vamos, eu acredito! Aliás, para mim, isto dos aeroportos é como o Salazar, um em cada esquina, para nos lembrarmos do quão idiotas podemos ser e também porque nunca se sabe onde é que o Dino vai poisar o balão.

E é por isso que, depois de um dia recheado de coisas boas, não consegui levar avante o plano que tinha de publicar aquele texto mesmo interessante que escrevi. Talvez na próxima semana, se entretanto não tiverem de usar aqueles submarinos que foram comprados para encontrar o Zé do Pipo, porque o Tridente e Arpão são a solução de emergência e podem ser isso e muito mais.

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