Big Thief em Portugal: a vulnerabilidade ao serviço da música

por Tiago Mendes,    21 Fevereiro, 2020
Big Thief em Portugal: a vulnerabilidade ao serviço da música
James Krivchenia, Adrianne Lenker e Max Oleartchik. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA
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Quando, em meados de Agosto passado, os Big Thief anunciaram uma digressão europeia, com passagem por Lisboa e pelo Porto, decidi de imediato que iria estar presente nos dois concertos, se as circunstâncias da vida mo permitissem. A banda norte-americana é um fenómeno de popularidade crescente no meio da música alternativa, movimentando-se algures no terreno movediço entre o folk e o rock. Mas seria inglório e injusto descrevê-los como apenas mais um grupo envolto em hype: no coração da sua música, convivem um virtuosismo sensível ao colectivo, uma criatividade prolífica, uma desarmante vulnerabilidade e uma ambição artística com sabor a algo novo.

À cabeça deste movimento encontra-se Adrianne Lenker, que recusamos acreditar não ter pelo menos uma fracção de ADN alienígena. A compositora e letrista de todos os temas da banda cria a uma velocidade vertiginosa, é dona de uma voz emocionalmente carregada e explora com intencionalidade a guitarra de que se serve. É um furacão criativo, uma alma rara, um rio impetuoso sem barragem que o contenha. E está rodeada da melhor companhia: o guitarrista Buck Meek, com quem formou a primeira célula que motivou o nascimento do projecto; o baixista Max Oleartchik, o israelita que regressou aos Estados Unidos na data certa para ser pescado para o projecto; e James Krivchenia, o criativo baterista que poucas vezes tira os olhos de Adrianne durante os espectáculos ao vivo, pescador minucioso dos jogos rítmicos escondidos nas cordas de Lenker. Juntos parecem formar o mais profundo sentido do conceito banda: conectados a um nível humano e musical, encaixam uns nos outros com uma sensibilidade que parece ter poucos paralelos.

Adrianne Lenker. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA

O projecto formou-se há menos de cinco anos — acasos que os juntaram e uma devoção pelo fluxo artístico de Lenker — e conta já com quatro álbuns de estúdio lançados. Masterpiece, em 2016, foi o mote de partida; seguiu-se Capacity, no ano seguinte, álbum que angariou uma maior atenção da crítica e do público; e o ano passado presentearam o mundo com dois álbuns de vocações distintas — U.F.O.F. mais sonhador e processado, Two Hands mais directo e visceral. E, contudo, não se servem nos espectáculos ao vivo do imenso catálogo que já editaram. As setlists são frequentemente compostas de uma dezena de temas que decidem revisitar naquela noite, mas complementadas por temas novos ainda não editados, pintados de fresco ou inventados na semana anterior.

Em cima do palco, os Big Thief assumem-se como um work in progress. Esta foi a terceira vez que visitaram o nosso país (depois de Paredes de Coura, em 2018, e do Primavera Sound, em 2019) e os novos concertos de Lisboa e do Porto foram exemplos crus desta postura arriscada que os diferencia no panorama musical do indie. Tive o privilégio de poder assistir a todas as passagens dos Big Thief por Portugal: cada concerto tem uma história diferente para ser contada, numa montra diversificada de emoções, públicos, ambientes, alinhamentos e episódios únicos. Mas a experiência de ter estado no Lisboa ao Vivo na segunda-feira à noite e ter rumado a norte no dia seguinte para os ouvir novamente no Hard Club teve sabor a sonho e a arco narrativo improvável. Quando, no final do concerto do Porto, percebi que tinha uma história para contar, sorri.

Adrianne Lenker. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA

Segunda-feira à noite, 17 de Fevereiro, Lisboa. É o primeiro concerto dos Big Thief em quase três meses. Pausa rara para uma banda que passa mais de metade do ano na estrada; até há pouquíssimo tempo, Adrianne Lenker não tinha sequer uma casa sua, por não sentir necessidade disso. Mas apesar dos Big Thief terem interrompido as performances ao vivo durante uma dezena de semanas, não terão parado por tanto tempo o processo criativo — os boatos parecem indicar que há novo álbum na calha, para além de que a banda regressou artilhada de novos temas. É, aliás, com um deles que se quebra o hiato — a sala do Lisboa ao Vivo, esgotada, escuta a estreia da primeira canção da noite, com Adrianne a solo na guitarra acústica. “Two Reverse” é bonita, mas é só quando é interpretada por toda a banda no encore que se revela majestosa. Assim como “Time Escaping”, exercício ritmicamente envolvente e estimulante; e “Someone 2”, que se constrói em torno de um repetitivo e enigmático riff.

As novas canções revelam uma consistência de qualidade que não dá sinais de abrandar — o rio criativo de Lenker continua a fluir. O concerto do Porto abre com estes três temas, de rajada. Mas na véspera, em Lisboa, Adrianne foi mais criteriosa na forma como a banda os interpretou — tanto “Time Escaping” como “Someone 2” tiveram falsas partidas, com a vocalista a interromper a performance e a propor à banda formas alternativas de a tocar. “Mais lento, assim”, e exemplificava. Noutra ocasião partilha com o público ao microfone: “Ainda não sabemos bem o que é isto. Estamos a descobrir”. Alguém grita da plateia que somos uns privilegiados por podermos assistir ao parto destas canções. Adrianne responde: “Nós também”.

Adrianne Lenker. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA

Em Lisboa, assistimos a um concerto com sabor a arranque. Adrianne Lenker parecia algo tensa e ansiosa — notava-se não só nas interacções (não completamente distante da sua personalidade meio reclusa e enigmática), mas também ao nível da performance. As letras de “Shark Smile” escapavam-lhe, interrompia alguns temas antes de se atirar novamente a eles, e, a certa altura, protagonizou o momento mais insólito da noite. Não o partilhamos com qualquer desdém ou desconsideração pelo talento de Lenker, mas sim por ter sido o pretexto inicial do arco narrativo que encontrámos no conjunto dos dois concertos. Adrianne começa a afinar a guitarra de doze cordas que dava o mote de “Cattails”, uma das canções mais airosas de U.F.O.F.; parece procurar uma afinação alternativa, mas o processo estende-se por mais tempo que o devido, sem que a tonalidade das notas a agrade por completo. Ao fim de três a quatro embaraçosos minutos — em que a banda aguardava serenamente, a sorrir para Adrianne — a cantora anunciou que não ia tocar a canção.

Foi o calcanhar de Aquiles de um concerto marcado por uma postura vulnerável, mas com marca de integridade artística. Os Big Thief valorizam a verdade do processo e não parecem ter grande interesse em fazer dos seus concertos um espectáculo. Nesse sentido, seria benéfico comutarmos as nossas expectativas no momento em que decidimos participar na experiência que é um concerto dos Big Thief. Mais do que fogo-de-artifício, trata-se de um momento partilhado e com sabor a comunidade — uma aproximação despretensiosa e imperfeita à criatividade que os move a eles enquanto músicos, e a nós enquanto ouvintes.

Buck Meek. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA

Fomos encontrar uma outra banda completamente diferente no Porto. O Hard Club não estava esgotado, embora muito bem composto. Adrianne Lenker sobe ao palco com a cara pintada com duas riscas tribais, traçadas dois centímetros abaixo dos olhos. Vem com outra atitude e pujança, e a banda acompanha-a. A vulnerabilidade da véspera parece passar para segundo plano — em evidência fica a força e a propulsão do lado mais rock do grupo. “Not”, uma das faixas que melhor encarna essa energia, já tinha tido direito em Lisboa a uma interpretação inspirada, mas no Porto subiu de nível, trepou as escadas e saltou para o telhado. O solo rasgado da guitarra de Lenker, distorcido, não deu tréguas. Momento de suspensão no tempo e de autêntica parede de som.

Um dos segredos deste segundo concerto: a vocalista estreou um novo microfone headset, fenómeno inédito em toda a sua carreira, que a permitiu movimentar-se pelo palco e usar mais expressividade corporal. Não foram raros os momentos em que Lenker se posicionou no centro, a dar as costas ao público, voltada para os seus colegas de banda. Esta é, aliás, a forma como os Big Thief gravam todos os seus discos — em círculo. Esta dinâmica parecia estar a contribuir para a mudança de atitude ao longo de toda a noite, embora a artista tenha admitido que não sabia se ia prolongar esta experiência ou se o público do Porto seria o único a ter tido a oportunidade de a presenciar.

Adrianne Lenker. Fotografia de Pedro B. Maia / CCA

Três ou quatro músicas alteradas no alinhamento e uma reorganização da ordem pela qual foram apresentadas — o guião da segunda noite era diferente. Os públicos, esses, foram igualmente bons e envolvidos — os Big Thief são muito amados pelas suas plateias e isso foi evidente de sul a norte. Mas o Porto teve talvez mais sorte na energia e na urgência com que os temas foram apresentados — concertos com diferentes vocações, como U.F.O.F. e Two Hands mostram duas faces distintas de uma mesma banda.

Mas não podia deixar de contar esta história sem o remate com que ela se me apresentou. A poucos minutos do término da actuação no Porto, depois de quase hora e meia de intensidade emocional e frequente manifestação de garra, a vocalista e guitarrista recebe nas mãos a viola de doze cordas que na véspera a enfrentara. Experimenta-a e, descontente com a afinação de uma das cordas, insiste em regular-lhe as cavilhas. Estou a cinco metros da frente do palco, silenciosamente a torcer por ela. Por momentos penso que vai voltar a encalhar na mesma praia, vai bloquear no mesmo sítio. Alguém na plateia grita, como forma de encorajamento: “It’s ok!”.

Adrianne olha para a banda, que lhe devolve sorrisos de paciência e compreensão, e partilha o seu descontentamento com a afinação da rebelde guitarra. Sem afastar o microfone da frente da boca, diz: “Parece que vai ter de ser só ok. Acho que temos de aprender a abraçar as nossas imperfeições”. Começa então a tocar os acordes de “Cattails”. Como poderão certamente imaginar, não foi só ok. Foi perfeito, como só uma banda-mestra da vulnerabilidade consegue fazer. E os Big Thief são gigantes nessa transparência e generosidade musical. Longa vida a estes talentos em bruto, que desabrocham tão perto dos nossos ouvidos.

Fotografias de Pedro B. Maia / CCA, no concerto do Lisboa ao Vivo

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