Bombardeados por conteúdo

por Mariano Alejandro Ribeiro,    6 Março, 2020
Bombardeados por conteúdo
Ilustração de Inês Viegas Oliveira
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Já sei olhar para as nuvens que passam
Também sei ficar parado
E quase aprendi a calar-me.

Jules Renard, Histoires Naturelles

O grande consolo para alguém interessado nas coisas do mundo é elas serem, sem exageros, infinitas. E são infinitas desde a pré-história, quando saíamos da caverna e procurávamos, através de explicações místicas, encontrar o significado da paisagem e da nossa existência.

Hoje, o método mudou ligeiramente, mas o propósito continua o mesmo: o desígnio humano continua a ser procurar significado. Porém, em vez de sair da caverna para o encontrar, decidimos enfiar-nos ainda mais fundo nela, e esperar que nessa escuridão a humanidade descubra tudo o que deseja.

No seu célebre ensaio “Against interpretation”, Susan Sontag fala de uma hipertrofia intelectual na apreciação das artes, uma hipertrofia que visa definir e esmiuçar o significado de uma peça para descrevê-lo ao público. Esta tendência afectou de tal maneira as artes que, aquelas que não estão perdidas no seu completo abstraccionismo, sentem o dever de ser literais até à medula.

A literalidade, quando não é usada como ferramenta criadora, elimina de vez qualquer poder encantatório que uma obra de arte possa ter. Cria pequenos filisteus que preferem a escuridão da caverna às inconsoláveis incertezas do exterior (roubo esta alegoria ao homem que quis expulsar poetas e artistas da sua cidade por não serem, enfim, literais).

O ensaio de Sontag foi escrito há mais de meio século, e apelava a uma arte que em vez de dizer o que significava, simplesmente fosse. E apelava a uma atenção por parte do espectador que a indústria do entretenimento, nestes singelos cinquenta anos, se encarregou de colapsar.

A faceta reconfortante e indolor do entretenimento é talvez o maior perigo para a nossa atenção, para a nossa capacidade de concentração e o nosso natural desígnio de compreender melhor a humanidade. Os vídeos de gatinhos, os programas televisivos da manhã, as inúmeras séries nos serviços de streaming, saturam a nossa capacidade de absorver experiências. Há uma sobreprodução lúdica que nos sufoca. A atenção, no século dos ecrãs, é um luxo.

Essa sobreprodução lúdica, por sua vez, retroalimenta o processo criativo do entretenimento, que quer ser cada vez mais imediato, cada vez mais simplório, cada vez mais vazio, para poder chegar a uma maior quantidade de pessoas. O valor de uma obra de arte está agora associado à sua qualidade de nos fazer passar o tempo, e não à sua capacidade de nos interrogar/desafiar. Aliás, não se querem cá desafios! O entretenimento veio para nos embalar, para obliterar o pensamento, para recordar a beleza da infância, repleta de super-heróis e fantasia. O entretenimento corporativo ganha quando nos rouba a atenção e sossega o nosso espírito. Nisso, não é diferente da propaganda populista dos regimes nos anos 30 e 40.

Mas o título desta crónica não é “Contra o entretenimento”. Não gosto de prosas condescendentes que nos alertam, com o indicador erguido de professor primário, para os males que vivemos. O entretenimento é necessário, como muitas outras experiências humanas são necessárias. Esta crónica não é “Contra o entretenimento”. É, ainda assim, uma crónica a favor da intelectualidade, do pensamento. Uma crónica a favor da atenção virada para o conhecimento. Estar atento (ser cuidadosos ao quê e a quem damos a nossa atenção) não é apenas um dever social, é um acto de rebeldia contra um sistema que nos quer distraídos, burros e pobres.

Um desafio para este século: partir a casca da hiper-realidade e contemplar o céu, com esmero.

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