Cansado à primeira vista

por Rui Cruz,    28 Outubro, 2018
Cansado à primeira vista
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Que a sociedade não anda propriamente saudável todos sabemos, mas que já estava nos cuidados paliativos foi para mim uma surpresa. E descobri-o no domingo passado, quando dei de caras com o programa Casados à Primeira Vista.

Sim, eu sei… pôr toda esta carga negativa num só programa de televisão quando, ao mesmo tempo, assistimos ao crescimento de movimentos extremistas na política, quando no Médio Oriente se ouvem mais bombas do que Minaretes ou quando o Benfica perde mais um jogo para a Champions, pode parecer exagerado, mas tal como o sinal que nos apareceu no ombro depois de passarmos 12 horas a torrar ao sol para apanharmos aquele bronze que nos dá passagem pela direita no Bliss é um sintoma de cancro e de mau gosto, também o crescimento massivo deste tipo de programas é um sintoma do quão doente estamos. E de mau gosto.

Love on Top, Casados à Primeira Vista, Naked Attraction, Adam Looking For Eve, The Bachelor e tantos outros programas do género pululam hoje nas grelhas televisivas um pouco por todo o “mundo ocidental”. Programas que vendem uma coisa simples: o amor como entretenimento. Atenção, nada disto é novo! Desde há muito tempo que se vende amor como entretenimento, basta folhear as páginas dos classificados do Correio da Manhã para constatarmos isso mesmo, mas raramente isso era televisionado e ainda mais raramente tinha honras de horário nobre.

“Cruz, isso é uma parvoíce… Estás a comparar prostituição com um programa de TV. Isso nem faz sentido”, diz o leitor desta crónica com um bafo a tabaco de cachimbo que não se justifica em 2018, mesmo tendo em conta que isto é uma Comunidade de Cultura e Arte. Vá… sejamos pedantes, mas não clichés.

Bom, talvez aqui tenha exagerado, dou isso tão de barato como os participantes deste tipo de programas dão a sua dignidade. No entanto, a culpa não é (totalmente) sua, mas sim do ponto a que chegámos enquanto sociedade. Numa era em que a maioria das relações sociais e interpessoais se resumem cada vez mais a mensagens trocadas pelas várias redes sociais disponíveis, a busca pelo amor, que sempre foi difícil, tornou-se uma missão quase tão impossível como as do Tom Cruise. E com tantas ou mais máscaras. Todavia, a necessidade de ser amado, tal como todas as necessidades básicas do ser humano, mantém-se. Ninguém quer morrer sozinho, ninguém quer ser o tipo ou a tipa de 55 anos que fica até o bar fechar na esperança de arranjar algo mais do que a almofada para agarrar à noite na cama e, acima de tudo, ninguém quer pagar Netflix por inteiro. Os canais de televisão perceberam isso mesmo. E se antes existiam programas como o The Dating Game (1965), a quantidade de formatos com o mesmo objectivo que foram criados desde 2000 é assombrosa e sintomática.

Podemos dizer que o amor pouco tem a ver com isto, que estes programas existem porque a obsessão pela fama (por parte dos concorrentes) e pelo voyeurismo (por parte dos espectadores) são o único motivo para o crescimento e audiências deste tipo de formato, mas se existem claramente pessoas que entram e vêem estes programas por isso, há quem o faça por desespero, principalmente concorrentes. E esse é o maior sintoma desta doença social.

Ao visionar o primeiro episódio de Casados À Primeira Vista podemos observar isso mesmo. Se há ali pessoas que vão “pela experiência”, constatamos que alguns (arrisco dizer muitos) dos participantes entraram no programa (e programas análogos) por necessidade, por não conseguirem de outra maneira encontrar o que procuram, e isso é que nos deve preocupar. Que raio de mundo estamos a criar em que casar sem conhecer o parceiro, em horário nobre na TV, ou sujeitares-te a seres avaliado e escolhido apenas pelo teu corpo nu, qual leilão de escravos voluntário (Naked Attraction), é a resposta para encontrares aquilo que devia ser natural? Que raio de mundo estamos a criar em que tanta gente acha preferível dar-se sem conhecer quem a recebe do que realmente perder (ganhar) tempo a conhecer o outro, a comparar vidas, a saborear cheiros, a amar defeitos? Que mundo estamos a criar em que abdicamos da melhor parte de qualquer relacionamento, daquela ânsia, daquela borboleta irrequieta no estômago, daquele primeiro encontro tão delicioso quanto assustador, daquela discussão e das pazes que vêm a seguir por meia dúzia de tostões e capas de revistas de segunda categoria? Que mundo estamos a criar em que o imediato, o desespero e a fama momentânea se sobrepõe à poesia do amor (bem… se com isto não saco uma citação com um pôr do sol num perfil de um adolescente ou no Amar Depois Dos 40, não estou cá a fazer nada)? Se isto não é um alarme, é pelo menos um daqueles alertas da Protecção Civil enviado depois da catástrofe.

E se a facilidade em encontrar concorrentes para este tipo de programas (só para o Casados À Primeira Vista foram mais de 3000 concorrentes em Portugal, 3000 mil pessoas que não se importavam de casar na TV sem conhecer o parceiro!) é preocupante, não deixa de o ser também a hipocrisia e exploração das TVs destes casos e até dos grupos que se ofendem com tudo o que respira. Numa altura em que os canais televisivos tremem com a possibilidade de chatear alguém com as suas obras de ficção, numa altura em que a criatividade está sob um escrutínio que só é habitual em algumas ditaduras, a forma como um programa em que uma instituição como o casamento (concordando ou não com o conceito, é inegável o peso que o casamento tem enquanto instituição social) é tratada como entretenimento disfarçado de experiência social e passa pelos pingos da chuva enquanto é exibido sem qualquer pudor ou polémica, só demonstra o quão desfasados do que é realmente importante estamos. E é por isso que, quando domingo liguei a TV, me senti cansado à primeira vista. Cansado de sentir que isto não tem remédio, que estamos numa espiral descendente e que estamos cada vez mais perto de uma distopia. Divertida, com muitas cores, muito movimento e coisas giras, mas ainda assim uma distopia.

Bom, e como sou comediante e este texto pouca ou nenhuma graça tem, aqui fica uma piada a fechar o escrito e para não se sentirem enganados:

Sobre aquela polémica dos beijos aos avós: será que os netos do Josef Fritzl devem ser obrigados a beijá-lo? É que a filha foi e a vida não lhe correu particularmente bem…

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