Capitão Fausto com a Orquestra das Beiras: regabofe de partitura e casaca
Se há coisa transversal à carreira em constante evolução dos Capitão Fausto é a capacidade que o quinteto tem de fazer música que recompensa audições sucessivas. Parece que há sempre algo novo para descobrir: seja uma harmonia discreta escondida na mistura do som, uma conjunção melódica que só reconhecemos passado algum tempo de maturação ou um riff fenomenal que passou despercebido nas primeiras 30 vezes de apreciação musical. Foi essa característica da sua música que levou os cinco rapazes a embarcar na aventura de tocar com uma orquestra. No passado dia 7 de Março, essa ideia passou a realidade: acompanhados pela Orquestra Filarmonia das Beiras, composta por 48 músicos de cordas, sopros e percussão, e conduzida pelo amigo da banda — o maestro Martim Sousa Tavares — os Capitão Fausto acrescentaram requinte ao seu espólio musical de alto gabarito, num espectáculo que, apesar de ter deixado a desejar a nível da qualidade do som, encheu o coração de todos os fãs presentes.
O concerto era dos Capitão Fausto, mas foi a orquestra quem deu o mote para começar. Depois do tradicional ritual de afinação inerente a qualquer performance com instrumentos clássicos, foram esses que iniciaram o espectáculo. Mas, ao olhar com atenção, podíamos ver os Capitão Fausto no meio da orquestra, ocupados com instrumentos de percussão e vestidos de fatiotas espampanantes que pareciam ter sido surripiadas do set de Once Upon a Time… in Hollywood. Passearam-se até ao seu lugar central no palco, a absorver calmamente a energia daquela sala cheia para os ver. Foi “Lentamente” que iniciaram o espectáculo (piadinha), mas a actuação foi sempre fluida e com boas transições entre temas. “Faço as Vontades” teve no guitarrista Manuel Palha o catalisador da acção, despoletando os primeiros versos da noite entoados pelo público. “Sintam-se em casa, estamos em família. Espero que gostem do concerto que preparámos para vocês”, saudou assim o diplomata de serviço da banda, o baixista Domingos Coimbra.
Não foi só A Invenção do Dia Claro que teve direito ao tratamento orquestral: “Corazón” e “Semana em Semana” beneficiaram desta vasta gama de timbres para enaltecer o seu já acutilante instrumental, enquanto que “Os Dias Contados” teve direito a uma introdução reboliça da orquestra, antes de ouvirmos a sedutora definição de carpe diem para os Capitão Fausto. De álbuns anteriores, foram poucos os temas que marcaram presença na parte com orquestra, sendo “Santa Ana”, sem dúvida, o ponto alto. Esta música mostrou uma prestação desenfreada do baterista Salvador Seabra, que protagonizou um solo fenomenal de bateria à Whiplash que arrancou assobios de apreço da parte do público. No entanto, este não foi o único momento que mostrou a habilidade musical do quinteto. Antes de “Certeza” ser perfumada pela fragrância encantadora da orquestra ao vivo, foi a vez de testemunharmos uma intermissão psicadélica e espacial a lembrar The Doors, liderada pelo teclista Francisco Ferreira, e que desaguou em “Maneiras Más”.
É compreensível que o espectáculo com orquestra tenha incidido mais sobre os dois últimos álbuns da banda. Ambos têm arranjos mais ricos que os trabalhos anteriores e uma formosura que beneficiou do acompanhamento da Orquestra Filarmonia das Beiras. “Amor, a Nossa Vida” foi magistral e, depois de um “vocês são lindos!” de boa sorte, “Outro Lado” foi um momento sedutor, já com o vocalista Tomás Wallenstein ao leme do piano. O letrista passou a actuação dividido entre a guitarra e as teclas, mas não descurou os deveres de frontman. Ordenou beijos e danças ao público, embora reconhecesse que “não seja aconselhável nos dias que correm”. Mas não há vírus que sobreviva ao calor emocional que se sentiu naquela noite. Antes de se despedirem, “Boa Memória” pressagiou o final do espectáculo e vimos Wallenstein preterir o piano em função da guitarra, para tocar a malha jocosa do solo final da música.
Após as despedidas, todos os presentes sabiam que ainda não tinha acabado a noite, não tardando muito até que o quinteto de Alvalade voltasse a subir para o palco. A parte final foi sem orquestra e dedicada especialmente aos fãs de longa data, com temas como “Verdade” ou “Teresa” a ser recebidos calorosamente, clássicos de Gazela, trabalho que foi relembrado por Domingos Coimbra com nostalgia: “para o ano este álbum faz dez anos”. É um marco importante de uma carreira de músicos por opção e artistas por vocação que não pára de dar frutos. No final, a fantástica redundância de “Final” levou a que o Campo Pequeno se enchesse de pirilampos de dados móveis a atingir o limite, uma chuva de estrelas para alumiar aquelas cinco que já se encontram nos céus da música portuguesa. Foi um serão bem passado e cheio de ginga, em que as músicas do costume vestiram uma roupagem nova e clássica, num autêntico regabofe de partitura e casaca.