Chipre: uma ilha dividida pelo desejo de união
O Chipre. Ilha de clima mediterrânico, muitas horas de luz do Sol e belas praias de areia branca; reconhecida pelas suas potencialidades turísticas e vista como uma espécie de refúgio no Mediterrâneo. Faz parte da União Europeia, tem um elevado índice de desenvolvimento humano e pouco se ouve falar dela para além destes factos. No entanto, olhando mais de perto, é difícil ignorar a manta de retalhos em que o seu território actual se tornou. A ilha está dividida: uma larga zona-tampão administrada pelas Nações Unidas – a chamada Linha Verde – atribui cerca de dois terços aos greco-cipriotas e um terço aos turco-cipriotas, para além das bases militares pertencentes ao Reino Unido. A tensão entre as duas maiores partes está neste momento amenizada, mas a ilha continua dividida e há muitos milhares de refugiados que nunca regressaram às suas casas após a Invasão Turca do Chipre, que perfez 44 anos em 2018. Vale a pena conhecer melhor esta história.
O país tem uma excelente posição estratégica, funcionando como ponto de charneira entre África, Ásia e Europa; por isso, o território cipriota viu-se sob a alçada de uma miríade de povos desde o início da sua ocupação humana. Passou pelas mãos de Gregos, Assírios, Egípcios, Persas, Romanos, Bizantinos, Venezianos e Otomanos. Sob o jugo de cerca de 300 anos do Império Otomano, o Chipre sofreu imensas mudanças demográficas, com a chegada de grandes grupos de turcos vindos da Anatólia, que não só variaram a etnia da população, como também a religião. Em tempos maioritariamente islâmica, acabaram por prevalecer as raízes helénicas estabelecidas desde há mais de 2000 anos atrás e, hoje em dia, a maioria dos cipriotas é de origem grega e acólita do Cristianismo Ortodoxo.
O declínio do Império Otomano levou-o a estabelecer um acordo de cedência de controlo sobre o Chipre ao Reino Unido – a chamada Convenção do Chipre. Devido às posições antagónicas dos dois poderes durante a Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido acabou por anexar o território em 1914 – que continuou a ser populado pela maioria greco-cipriota e uma musculada minoria turco-cipriota, cada uma com as suas próprias reivindicações. O Reino Unido usou a táctica de dividir para reinar, fomentando orgulhos nacionalistas de cada lado e conflitos entre os mesmos, para que não se revoltassem contra o poder em vigor.
A esperança dos gregos era de enosis (união); à semelhança das Ilhas Jónicas – cedidas à Grécia pelos britânicos em 1864 – os gregos esperavam ter o Chipre de volta. A guerrilha EOKA foi formada pelo lado greco-cipriota para levar a cargo essa ideologia. Do lado turco-cipriota, a guerrilha TMT defendia a ideologia de taksim (divisão), resultando em facções da ilha para os dois lados da barricada, sabendo perfeitamente que a minoria turca não poderia anexar a ilha toda.
A independência e primeira Constituição do Chipre veio a 16 de Agosto de 1960, após o Acordo de Londres-Zurique, celebrado entre os vários poderes em vigor: cargos públicos dividiram-se entre gregos e turcos de acordo com quotas populacionais (nomeadamente, o Presidente seria sempre greco-cipriota e o Vice-Presidente turco-cipriota); o Reino Unido manteve duas bases militares e alguma influência nos assuntos do país. Os orgulhos nacionalistas sempre latentes dissiparam rapidamente a esperança de paz, resultando numa década de 60 altamente tumultuosa, em que os turcos foram consistentemente guetizados. Em 1964 surge a Linha Verde – traçada com uma caneta verde por um britânico -, dividindo a capital Nicósia até aos dias de hoje.
Estes eventos culminaram na grande invasão dos turcos em 1974, como resposta directa ao golpe de Estado organizado pelo lado grego, que depôs o presidente Makarios III e o substituiu pelo ditador irredentista Nikos Sampson, fervente apoiante do conceito de enosis – esta junta militar durou pouco mais de uma semana no poder. A invasão tinha o intuito de proteger os turco-cipriotas das tensões entre os dois lados, e era uma vontade manifesta dos turcos desde que os conflitos armados começaram – nomeadamente no Natal Sangrento de 1963 – mas a intervenção dos Estados Unidos da América impediu a sua consumação antes de 1974. Importa referir que parte dos turcos invasores foi obrigada pela Turquia a mudar-se para o Chipre – contra a sua vontade.
A invasão foi feita em duas partes; a segunda delas resultou numa tomada de 38% do território pelos turcos da região da Anatólia, ocupando a parte norte da ilha. Cerca de 170.000 (o número certo é ainda disputado) greco-cipriotas viram-se forçados a abandonar as suas casas do dia para a noite, para fugir dos territórios ocupados e da hostilidade dos invasores. Ao longo dos meses seguintes, houve ainda a deslocação de cerca de 50.000 turco-cipriotas para o lado norte, somando-se ao já enorme número de refugiados cipriotas. A maioria deles nunca pôde regressar.
O rescaldo da invasão resultou na formação da República Turca do Chipre do Norte, que declarou a sua independência em 1983, logicamente apenas reconhecida pela Turquia, sendo então apenas um estado de facto (existe na prática, mas não é reconhecido legal ou diplomaticamente). No lado sul, há então a República do Chipre, controlada pelos greco-cipriotas. Entre 1974 e 2002, era proibido atravessar a Linha Verde entre os dois estados, mas um tratado permitiu viagens de um dia aos lesados da invasão, para que pudessem regressar e ver as suas casas. O tempo vai sarando lentamente as feridas, relaxando-se mais os procedimentos de cruzamento da linha, mas a separação permanece, assim como a proibição do regresso.
O exemplo mais impressionante do conflito latente é o quarteirão de Varosha, na cidade de Famagusta (do lado turco-cipriota, que a controla). As pessoas que aí viviam fugiram das suas casas devido à invasão. Outrora uma vibrante e moderna zona turística, está agora abandonada e fechada desde 1974. É impossível entrar lá e o controlo é rígido (a ver o episódio 5 da série Turismo Macabro, que aborda parcialmente a situação do Chipre). Esta cidade fantasma é usada como um trunfo do lado turco e é uma cruel lembrança de que, apesar da amenização das tensões, este ainda é um problema bem real e sem solução à vista. As conversas e a intenção de uma resolução vão-se arrastando, com manifestações de ambos os lados. O que reivindica cada um deles?
Os greco-cipriotas querem voltar ao período antes da invasão, com uma divisão justa de quotas populacionais e uma convivência equilibrada com aqueles que, apesar das origens diferentes, são também cipriotas. Aliás, as maiores quezílias dos gregos vieram sempre do facto da massa invasora ser totalmente turca, com a vil intenção de aumentar a sua representação na ilha de forma a tentar controlá-la. A prova da posição dos gregos está patente no cumprimento da Constituição de 1960 após tantos anos: o país não tem um vice-presidente, pois o documento definiu que essa posição deve apenas ser ocupada por um turco-cipriota. À semelhança disso, os 24 lugares do Parlamento destinados aos turco-cipriotas encontram-se também vazios. Os índices mais elevados de educação e riqueza (devido à contribuição do Reino Unido) ajudam a ultrapassar a situação, mas as pessoas continuam a conviver com um sentimento de inquietude, fomentado pelas manifestações militares e pelo serviço militar obrigatório, pelo muro que divide Nicósia e pelas memórias que não desaparecem assim.
Os turco-cipriotas estão mais confortáveis com a situação actual, pois agora o seu status de minoria já não está tão demarcado. Um regresso à situação pré-invasão traz memórias dos guetos e da insegurança sentida na altura. No entanto, nesse lado há um desejo de união: ao referendar o plano Annan, proposta das Nações Unidas para unificar o Chipre (permitiria o regresso de cerca de 10% da população greco-cipriota às suas casas e incluía cláusulas de divisão de poderes), 65% do lado turco apoiava o plano, versus 24% do lado grego, que considerou o plano injusto. A discórdia reina, e há inclusivamente turco-cipriotas que desaprovam a posição da Turquia.
É estranho pensar numa situação assim numa Europa tão próxima, nos milhares que compõem a diáspora cipriota e em cidades fechadas ou divididas por muros e checkpoints. Se pensarmos bem no assunto, é ainda algo revoltante ser confrontado com esta passagem de um território de mão em mão, com esta subjugação de populações a poderes fora da sua esfera, sem consideração pela condição humana. Urge-se o desenvolvimento de uma solução justa e eficaz, que permita a restituição dos direitos às pessoas que se viram despojadas dos mesmos e a dissolução de um conflito que já há muito que deveria ter terminado.
Agradeço à Nayia e ao Yiannis pela ajuda na compreensão desta história impressionante e espero que o texto faça jus à dura realidade do conflito cipriota.