Ciência vs. Religião, por Frei Bento Domingues e Carlos Fiolhais

por Mário Rufino,    15 Dezembro, 2017
Ciência vs. Religião, por Frei Bento Domingues e Carlos Fiolhais

A religião e a ciência estiveram lado a lado no “Tinto no Branco”, com Frei Bento Domingues e Carlos Fiolhais na conversa mais interessante do Festival Literário de Viseu.

De 01 a 03 de Dezembro, o “Tinto no Branco” teve no seu programa sete mesas de conversa, sessões infanto-juvenis, teatro de marionetas, uma entrevista de vida com Pedro Mexia, espectáculo de poesia, exposições, visita literária a “Viseu Misteriosa” e ao Museu Grão Vasco, e apresentação de Um olhar sobre a cidade (Edições Esgotadas).

Michael Palin e Ricardo Araújo Pereira foram os “ases de trunfo” numa edição, a terceira, que teve nas “Conversas” a participação de Afonso Cruz, Daniel Oliveira, Manuel Alberto Valente, Hélder Gomes (moderador), Carlos Fiolhais, Frei Bento Domingues, Jorge Sobrado (moderador), Fernando Dacosta, Raquel VarelaRodrigo Moita de Deus, Nuno Júdice, Filipa Melo, Francisco José Viegas, Tiago Salazar e Tito Couto (moderador). Devido ao elevado número de espectadores, as mesas previstas para a “Sala das Conversas” viriam a ser quase todas transferidas para a “Tenda Jardins de Inverno”.

O diálogo entre Carlos Fiolhais e Frei Bento Domingues, com moderação de Jorge Sobrado, viria a ser um dos momentos com mais conteúdo do Festival Literário de Viseu. Com o tema Ciência Vs. Religião, afinal quem tem (a) Razão?, os dois campos hipoteticamente opostos demonstraram, através dos dois intervenientes, serem perspectivas diferentes sobre o mistério da existência. E tal é perceptível logo na génese. Marcará o pecado original a divisão entre a ciência e a fé?

Em “Génesis”, Eva é tentada a comer o fruto proibido:

“Mas, quanto [a comer] do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: «Não deveis comer dele, não, nem deveis tocar nele, para que não morrais». A isso a serpente disse à mulher: «Positivamente não morrereis. Porque Deus sabe que, no mesmo dia em que comerdes dele, forçosamente se abrirão os vossos olhos e forçosamente sereis como Deus, sabendo o que é bom e o que é mau»” (Génesis 3:3 a 3:5)

A queda do homem aparece como associada à ânsia de conhecimento. Para Frei Bento Domingues, essa narrativa bíblica significa que não vale tudo. “Há, em tudo o que se produz, um problema ético.”, afirmou.

A Bíblia é, para Frei Bento Domingues, um “livro extremamente violento porque põe na boca de Deus os interesses de um povo contra [outros] povos. No dia dezoito do mês passado, o Papa Francisco, ao receber o grupo que agora se ocupa de todas as questões da Antropologia, uma das coisas que pôs foi logo o problema ético em tudo isto. [Disse] Não a um progresso científico e tecnológico em benefício de poucos e em desgraça de muitos”

Abordando a questão da religião, o autor de A Insurreição de Jesus (Temas e Debates) afirmou que

“chegamos ao Novo Testamento e o cristianismo quis também fazer uma religião no meio das religiões. Asneira grossa. Porquê? Porque Jesus não apresentou religião nenhuma. Jesus passou o tempo a fazer a crítica da religião. Ele tinha um critério: tudo o que há no mundo é para a alegria humana.”

O Sabat é para o ser humano e não o contrário, viria Jesus Cristo a defender. “O Sabat tinha-se transformado na cadeia, na prisão das pessoas”.

Carlos Fiolhais, doutorado em Física Teórica na Universidade Goethe, afirmou que Frei Bento Domingues era da ordem dos pregadores, enquanto ele era da ordem dos pecadores, que estava em maioria. Aliando o seu conhecimento ao bom humor, Carlos Fiolhais sublinhou que ciência e religião são actividades diferentes, mas com aspectos em comum.

O primeiro apresenta-se como óbvio, segundo o físico português: São ambas actividades do ser humano. Não há religião nem ciência fora do homem. O mesmo ser é capaz destas duas dimensões.

O segundo aspecto prende-se com serem tentativas de acesso ao que se pode chamar de mistérios. Não há um só mistério. A religião ordena o mundo de uma forma, enquanto a ciência ordena-o de outra.
Segundo Carlos Fiolhais, em Galileu há o pecado original da separação entre ciência e religião, que agora está mais mitigada. Hoje, há sacerdotes católicos que são cientistas. As duas áreas estão mais próximas, apesar de algumas facções radicais.

“Galileu escreveu uma carta muito bela a uma senhora da nobreza florentina em que explicava que na cabeça dele estava tudo bem arrumado. Ele não deixava de ser crente, de ter a fé, mas apesar disso achava que o espírito humano devia interrogar-se sobre a terra e sobre o céu. E disse que se o Espírito Santo nos ensina a ir para o céu, não nos ensina como é o céu. É possível estudar o céu e é possível acreditar no céu. Ele conseguia as duas coisas”

João Paulo II viria a classificar a relação da Igreja com Galileu como uma “incompreensão trágica”, reabilitando, desta forma, o astrónomo italiano. “Eu creio que o lugar do ser humano é a interrogação. O ser humano vive a interrogar-se e a buscar hipóteses de ver se verifica as suas coisas”, afirmou Frei Bento Domingues. Segundo a sua perspectiva, todos se devem questionar uns aos outros e a Religião nasceu com esse desígnio. O religioso era aquele que considerava e examinava.

“Uma coisa que me agradou muito no livro do [António] Damásio é quando diz que não há um princípio [ou teoria] de tudo. Eu não acredito no princípio de tudo. Não há ninguém que tenha o exclusivo. É gente à busca. (…) Acho que é o melhor clima. Por isso devo-lhe [a Carlos Fiolhais] dizer que lhe agradeço imenso esse trabalho enorme de divulgação científica.”

Carlos Fiolhais agradeceu a generosidade e afirmou que, quando estivesse diante de São Pedro, iria contar-lhe estas palavras para as portas serem abertas. “Sendo essencial, a ciência não é uma visão única no mundo”

Fazendo relembrar a conferência sobre Einstein, no “LeV – literatura em viagem”, Carlos Fiolhais afirmou que Einstein via o mundo como uma maravilha e defendia a existência de uma harmonia cósmica.

“Ele dizia que Deus é subtil, mas não malicioso (…) Harmonia é subtil, mas não é maliciosa no sentido de ser possível lá chegar e compreender. É possível usar a razão, o logos. A palavra razão, em grego, é logos. E logos é o verbo. Está no Evangelho de São João: «No princípio era o verbo». (seria “No princípio era a razão, e a razão estava com Deus, e Deus era a razão”) Há quem diga que era a “palavra”, mas a «palavra» em grego é muito mais do que «palavra»; é razão, entendimento, norma, essência.”

Mão esquerda e mão direita numa só acção. Fé e Ciência, lado a lado, num extraordinário momento de “Tinto no Branco – Festival Literário de Viseu”

PUB

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados