“Consent”, de Vanessa Springora: uma reflexão sobre abuso e impunidade

por Luana Alves Farinha,    19 Fevereiro, 2023
“Consent”, de Vanessa Springora: uma reflexão sobre abuso e impunidade
Fotografia de Hailey Kean / Unsplash
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Cuidado: este artigo contém linguagem e descrições sensíveis e pode ser um gatilho.

“In the 1970s, in the name of free love and the sexual revolution, everyone was supposed to be in favor of the liberation of physical pleasure. Repressing juvenile sexuality was considered to be a form of social oppression, and limiting sexual relationships to those individuals between the same age constituted a form of segregation.”

Vanessa Springora, em “Consent”.

A obra literária “Consent”, espécie de memoir contado na primeira pessoa por Vanessa Springora, transporta-nos até Paris da 2.ª metade do século XX. Nas suas páginas, a autora relata em detalhe a relação amorosa vivida com o escritor francês Gabriel Matzneff, 36 anos mais velho; relação que começou quando Vanessa tinha apenas 14 anos. 

“Consent” é uma obra com o poder de nos tirar o chão, o fôlego e até o sono. Cada parágrafo provoca no leitor uma sensação de desconforto e de profunda indignação. Através da escrita — arte que durante tempos repudiou, por não conseguir separá-la do seu agressor — Vanessa Springora convida-nos a embarcar numa reflexão profunda em torno de temas como o poder, a impunidade e o abuso sexual de menores. Mais do que um relato, “Consent” é um manifesto. Um grito de revolta. Uma denúncia de uma elite corrompida e de uma sociedade conivente, cuja apatia perante o inarrável ajudou a contribuir para a sua normalização — e, mais grave ainda, a sua romantização. “Consent” é uma leitura obrigatória que convida a uma reflexão urgente.  

A publicação da obra, de título original “Consentement” (“Consentimento”, em português), no ano de 2020, provocou um verdadeiro terramoto na sociedade francesa, cujas réplicas se fizeram sentir particularmente no epicentro do seu universo literário.  

Capa do livro (versão portuguesa)

Gabriel Matzneff tem hoje 86 anos e inúmeras obras publicadas. Em 1974 publicava um ensaio, Les Moins de seize ans (em português: os menores de dezasseis anos), por meio da editora Julliard. No manuscrito, o autor relatava as suas “aventuras” amorosas com crianças e adolescentes. Não menos importante: Matzneff criticava severamente a ordem moral da sociedade ocidental, que condenava as relações entre adultos e menores, impedindo-os de exercer a sua liberdade de escolha. Nas suas palavras: “O que me cativa não é tanto um sexo determinado quanto a extrema juventude, aquela que se estende do décimo ao décimo-sexto ano e que na minha opinião é (…) o autêntico terceiro sexo.

Matzneff não esconde, em momento algum, o seu desvio comportamental. Não estamos perante uma confissão de um homem atormentado. Matnzeff escreve para os seus leitores como se de uma palestra se tratasse. Nas suas palavras não encontramos sinais de arrependimento ou de embaraço. Do alto do pedestal onde foi colocado, Matzneff acredita ser um homem iluminado e movido pelas melhores intenções. Acredita ser uma figura protetora, quase paternal, uma espécie de guia, que procura afastar as crianças e adolescentes com quem se relaciona de todos os perigos que espreitam durante a juventude. Acima de tudo, este acredita ser vítima de uma sociedade intolerante e intelectualmente limitada, sendo a sua cruzada a de abrir as mentes dos comuns mortais, que ainda não alcançaram o seu brilhantismo. 

Acredito que o principal sentimento do leitor perante os acontecimentos narrados seja o de indignação face ao que parece tratar-se de um estado de apatia coletiva. Uma apatia moral e social, que se traduz numa inércia por parte das instituições que deviam ocupar-se da proteção dos menores. Uma apatia intelectual por parte de uma elite parisiense, da qual faziam parte inúmeros filósofos, que, ao questionarem tudo e o seu contrário, se abstinham de questionar algo tão urgente como o abuso cometido contra crianças. 

Poderemos culpar a época? É certo que o espírito revolucionário dos anos 60 ainda fervilhava nas ruas. Na sequência das greves de maio de 1968, e sob o slogan “É proibido proibir“, a sociedade francesa procurava edificar uma nova ordem política e social, libertando-se de quaisquer sinais de opressão. Sendo a liberdade sexual uma das principais bandeiras do movimento, acredito que a sociedade se encontrasse num período de reflexão profunda sobre as mais diversas questões socioculturais. Porém, acredito também — e ainda mais — na existência de questões que, pelo seu teor, sobrevivem a quaisquer reflexões, independentemente do surgimento de novos prismas e novas conjeturas. As relações sexuais entre adultos e menores fazem parte deste núcleo. Não existe espaço para dúvida, nem pode existir. “Aos catorze anos, não devíamos ter um homem de cinquenta anos à nossa espera à saída do liceu, não devíamos viver com ele num hotel, nem estar na sua cama, com o sexo dele dentro da boca à hora do lanche. Tenho consciência de tudo isso, apesar dos meus catorze anos, não sou completamente desprovida de senso comum. Desta anormalidade, fiz, de certa forma, a minha nova identidade“, diz Vanessa, que denuncia a negligência dos adultos à sua volta, que assobiavam para o lado perante o comportamento predatório de Matzneff. 

Convém relembrar que tudo isto se passa na década de 80. Quarenta anos antes, em 1948, era promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como é possível que, em 1985, no ensaio “Un Galop d’Enfer”, publicado, como tantos outros, por editoras francesas de renome, Matzneff proferisse frases como: “Às vezes tenho até quatro rapazes — dos 8 aos 14 anos — na minha cama ao mesmo tempo, e envolvo-me a fazer amor da forma mais requintada com eles“.  Poderia pensar-se que com a mudança de século, estivéssemos mais perto de uma tomada de consciência coletiva sobre aquilo que em tempos se permitiu. Porém, em 2013, o autor volta a receber um prémio literário de renome. Perdoem-me a expressão, mas que raio se passa?  

Ao folhear o manuscrito perguntamo-nos constantemente: Onde andavam os tribunais? Onde andavam os media? Onde andava o senso comum? É complicado resistir à tentativa de achar que a sociedade se encontrava sob uma espécie de delírio coletivo. Que outra justificação haverá? Sobretudo quando nos apercebemos da quantidade de personalidades conhecidas ainda hoje pelo seu brilhante intelecto que assinaram a Petição de 1977 — entre elas, a ilustre Simone de Beauvoir. Este documento, dirigido ao Parlamento francês, solicitava a derrogação de vários artigos sobre a idade de consentimento, assim como a despenalização de relações sexuais consentidas entre adultos e menores de 15 anos. Muito poderia ser dito sobre esta Petição, sobre os seus assinantes e sobre os motivos por detrás da sua assinatura. Porém, tenho a convicção de que existe um certo número de questões cujas respostas devem ser procuradas e apenas podem ser encontradas naqueles que as vivenciaram. E como tal, cito as sábias palavras de Vanessa: “Algumas diferenças são simplesmente insolúveis. Com toda a boa vontade do mundo, um adulto é um adulto. E o desejo de um adulto será sempre uma armadilha para um adolescente. Como podem ambos ter o mesmo nível de conhecimento dos seus corpos, dos seus desejos? Ainda mais, um adolescente vulnerável irá sempre procurar amor antes de satisfação sexual. (…) Um adolescente concordará em tornar-se um objeto de prazer, renunciando assim, durante muito tempo, ao direito de ser o sujeito, o autor, e o dono da sua própria sexualidade.

Em 1990, o autor recebia ainda inúmeros convites para participar em programas televisivos e saraus literários, onde falava abertamente da sua pederastia. Numa época onde ainda poucas vozes ousavam levantar-se contra este “génio” da literatura, a jornalista canadiana Denise Bombarier ficou conhecida por ter sido das poucas a fazê-lo. Com um discurso coeso, esta confronta Matzneff diretamente, não se deixando abalar pelas tentativas de interrupção e intimidação por parte deste: “Acho que vivo noutro planeta”, começou por dizer. “Para mim, o senhor Matnzeff é lamentável. Aquilo que não compreendo é como é que neste país a literatura, entre aspas, serve de álibi a este tipo de confidências”. 

Apesar das vozes que contra si se vão insurgindo, Matzneff não baixa as armas. Em 2002, profere as seguintes declarações: “Quando as pessoas falam de “pedofilia”, elas metem no mesmo saco o bastardo que viola uma criança de oito anos e aquele que vive uma bonita história de amor com uma adolescente ou um adolescente de quinze anos”. Lamento, mas terei de discordar, Sr. Matzneff. Enquanto adolescente que viveu semelhante situação, lamento dizer-lhe que é bastante complicado encontrar beleza numa situação de total desigualdade. 

O testemunho literário de Vanessa despertou noutras vítimas a coragem de se chegarem à frente contra os seus agressores. Ainda que a grande parte dos crimes tivessem já prescrito, a sua coragem veio pôr termo a décadas de impunidade. 

Springora convida-nos a refletir não apenas sobre o escudo literário concedido a Matzneff pela sua posição social e dotes artísticos, mas também — como não surpreende — sobre a própria ideia de consentimento. Nomeadamente aquele que é dado por uma criança ou por um adolescente. Vanessa convida-nos a refletir sobre as várias particularidades do abuso sexual, e o porquê de ser urgente alertar para as várias formas que este pode tomar. 

Após décadas de impunidade, em 2020, Matnzeff viu alguns dos seus principais manuscritos serem retirados do mercado. Este assistiu à abertura de processos judiciais contra si e contra as editoras que publicavam as suas obras. Foi-lhe retirado o subsídio outrora atribuído pelo Ministério da Cultura. As suas vítimas ganharam voz. E o mundo parece ter ganho algum senso comum. Os relatos abjetos das relações sexuais que mantinha com menores iriam finalmente deixar de ver a luz do dia. Mas a questão permanece: como puderam chegar a vê-la?  

Para denunciar ou pedir apoio em caso de violação, pode contactar os seguintes números telefónicos:

112 (Número Europeu de Emergência)  

114 (Linha Nacional de Emergência Social; caso não seja seguro regressar a casa e não tenha onde ficar)

116 006 (Linha de Apoio à Vítima)

910846589 (Linha de apoio da Associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual)

Pode ainda dirigir-se à esquadra da PSP, posto da GNR ou piquete da PJ mais próximo. É recomendada a procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica.

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