Daniel Oliveira: “A forma como ensinamos o nosso passado determina as ilusões que temos sobre nós próprios”
Daniel Oliveira é uma figura incontornável do espaço da política e do comentário político português. É colunista no Expresso, comentador nos programas Eixo do Mal, da SIC Notícias, e Sem Moderação, do Canal Q e da TSF. Foi fundador do Bloco de Esquerda, de onde saiu em 2013, tendo abandonado a vida política para se dedicar exclusivamente ao jornalismo. Desde Maio de 2018, produz com João Martins um podcast intitulado Perguntar Não Ofende, onde conduz entrevistas com políticos, jornalistas e outras personalidades.
Recebeu-nos na sua casa, no final de Janeiro, para uma entrevista longa conduzida por Marta Vicente e Miguel Fernandes Duarte, onde se abordaram temas como a Democracia, a União Europeia, a reinvenção da esquerda, o racismo em Portugal, o politicamente correcto, o ensino e o interesse político dos jovens, ou as touradas e o humanismo. Podem lê-la aqui ou ouvir em podcast no spotify ou no youtube:
Marta Vicente: Bem-vindo, Daniel, obrigado por ter aceitado o nosso convite. Começava por lhe perguntar qual a importância que atribui à Política e que justifica o peso que esta tem na sua vida, que, como sabemos, se rege pelo comentário político nos mais variados formatos.
Daniel Oliveira: Há sempre um lado privado que não depende da política, mas é pouco. A política é toda a forma de organização da sociedade, portanto, é totalmente transversal a todos os domínios da vida. Nunca consegui perceber, aliás, pessoas que dizem que não ligam à política: é uma coisa que acho sempre um bocadinho estranha. Porque uma pessoa que diz que não liga à sua vida, nem à vida dos seus filhos, nem à vida dos seus netos, nem ao planeta…. Outra coisa é as pessoas não gostarem da vida política, partidária ou institucional, isso acho normal.
Cresci numa família muito politizada, portanto, é uma coisa totalmente presente na minha vida. Todos nós temos bastante actividade política. Desde muito novos, todos, também. Não fui o que começou primeiro, porque tenho dois irmãos mais velhos, mas acho que fui o que começou mais cedo. Comecei aos 12, mas o meu irmão mais velho deve ter começado aos 13 ou 14, também. O mais tardio, que nós sempre estranhámos, começou muito tarde, aos 18. Mas sempre cresci numa família muito politizada. O meu padrasto, o marido da minha mãe, foi deputado à constituinte; a minha mãe foi sindicalista: foi a primeira mulher presidente de um sindicato que não fosse maioritariamente feminino. Nos bordados e nos correios já havia. Cresci numa família totalmente politizada e isso moldou, não a parte propriamente lúdica da política que também existe, moldou a maneira que eu tenho de agir. Fiz o serviço militar obrigatório, fui de uma comissão que tinha actividade nessa área. No liceu, tinha actividade associativa, estive na guerra da PGA, estive na guerra das propinas. Mesmo algumas disciplinas que fui fazer mais tarde, no liceu, porque tive um percurso académico atribulado, de repente já estava no movimento também porque fui puxado. Ou seja, ser agitador é praticamente uma segunda pele que eu tenho. Não concebo a minha vida sem actividade política e custa-me conceber a vida das pessoas sem, pelo menos, alguma preocupação com a vida política.
MV: E cada vez se vê mais o contrário…
DO: Não sei se é mais. Houve um momento em que Portugal teve muita intervenção política, que foi a seguir ao 25 de Abril, até final dos anos 80. Foram 12 ou 13 anos em que as pessoas [tiveram muita actividade] e foi reduzindo. Eu ainda apanhei a fase de queda, onde as eleições para as associações de estudantes tinham apoios de partidos e havia muitas listas em todos os liceus. Ainda apanhei a fase final disso. Mas é normal, foi num período revolucionário e, depois, demorou algum tempo a reduzir-se. Eu, por acaso, até acho que há mais interesse pela política hoje do que houve, por exemplo, nos anos 90. É, na realidade, a minha geração, porque foi quando eu tinha 20 e tal anos. Apesar de tudo, não é exactamente política da mesma maneira, não é a política partidária, mas vejo mais gente a falar de política do que havia nos anos 90. Também, nos anos 90, tudo parecia estar bem, as pessoas estavam a pensar na vida delas. (risos)
MV: Na leitura dos seus textos, sinto transparência e crueza. Vai direto ao assunto e demonstra uma vontade clara de consciencializar quem o lê, abarcando ideias-chave que, mais do que uma direção ideológica, ligada à cor partidária, têm uma direção humanística. O uso repetido da palavra e do conceito de “democracia” são disso exemplo. Poderá ser esta uma das razões, ou seja, o facto de pretender lutar por valores humanitários e por uma dimensão quase ideal de democracia, que o levou a deixar de ser parte ativa em partidos políticos?
DO: Não, não. Até porque eu acho que partidos políticos são, até ver, a melhor forma de ter intervenção política. Não sou nada anti partidos, não sou mesmo. Tenho, aliás, cada vez mais dificuldade em lidar com muitas pessoas que falam pessimamente dos partidos. E, então, penso “ele tem outro tipo de intervenção cívica e, por isso, prefere, é sindicalizado, tem uma intervenção local, tem uma intervenção ambiental…” e, geralmente, não tem nada disso e eu digo “então, desculpa lá, quem é que queres que trate do assunto?”.
Eu deixei de ter intervenção partidária, primeiro porque entrei aos 12 para a Juventude Comunista. Saí há seis anos do Bloco de Esquerda. Tive intervalos, no meio, mas eu tenho tantos anos de intervenção partidária…. Tenho pelos menos 10 anos na Juventude Comunista e 14 anos no Bloco de Esquerda. Por isso, são 24 anos, mais intervenções que tive em organizações mais pequenas: a política 21, apoiei o Livre. Tive tanta intervenção partidária que essa parte posso dizer “ok, já fiz”. E eu vivo sempre numa tensão enorme. Por um lado, eu tenho imenso respeito e admiração por aquilo que a maior parte das pessoas não tem respeito e admiração, que é pela capacidade das pessoas porem a sua liberdade individual ao serviço de um projecto colectivo e, às vezes, sacrificarem a sua liberdade individual em nome dele. Não tenho nenhuma admiração por aquelas pessoas [que dizem] “ah, eu sou completamente livre, completamente independente”. Geralmente, esquecem-se de dizer a terceira parte que é “e completamente inútil”. Admiro pessoas que conseguem sacrificar uma parte do seu ego em nome de um projecto colectivo. Isto é um lado meu. Depois, tem outro lado meu que é do meu temperamento. Sempre fui – os meus amigos sempre brincaram comigo com isso – um homem de partido sem ter a personalidade nem o temperamento de um homem de partido. Não é que não seja disciplinado – sempre fui disciplinado, activo, etc. –, mas percebi, a dada altura, que sou mais útil, do ponto de vista social e político, não estando limitado na intervenção partidária. Funciono melhor como franco atirador, não deixando de estar a combater em nome de projectos. Não em nome de projectos partidários, isso não estou, mas em nome de uma área política bastante abrangente. Não é propriamente a questão da democracia que me preocupa nos partidos, apesar de achar que têm bastantes deficiências democráticas e, quanto menos implantação social tiverem, mais vão ter. As pessoas adoram desculpabilizar-se com os partidos: olham e dizem “o problema da nossa democracia [são os partidos]”. O problema não são os partidos, esses limitam-se a ocupar o espaço que nós não ocupamos. O problema da democracia portuguesa é falta de sociedade civil, a falta de intervenção cívica, a falta de organizações de base para que as pessoas lutem pelos seus próprios [direitos]. Os partidos só ocupam esse espaço porque ele está vazio, não é porque o tenham ido roubar: está vazio, não está lá ninguém, está imensa gente a queixar-se dos partidos, basicamente. Isso, a mim, preocupa-me porque corresponde a uma cultura portuguesa muito forte. Quando nos sobrar só como espaço de intervenção política o Facebook e o Twitter, nós sabemos, exactamente, onde é que vai acabar. Olhamos para o Brasil e olhamos para outros países e sabemos, exactamente, onde é que vai acabar porque esse espaço é o ideal. O espaço da gritaria inorgânica é onde a extrema-direita sempre se safou muito bem, mesmo antes de haver redes sociais.
MV: O poder da União Europeia é subvalorizado pelos cidadãos. É quase uma espécie de “mão invisível”: passa despercebida, mas tem, na realidade, um peso muito significativo na vida de todos os europeus, principalmente, e como sabemos, no que respeita à nossa política económica. Assim, se por um lado temos uma União caracterizada por uma intervenção excessiva em certas matérias, por outro temos vindo a conhecer uma Europa que fica cada vez mais aquém dos valores que se comprometeu defender – se por um lado frisa a dignidade humana, por outro deixa refugiados a morrer em campos pelo seu território. Considerando esta e outras realidades, como a ascensão da extrema-direita dentro das suas fronteiras, prevê que as eleições que se avizinham possam mudar o rumo deste projecto ou, apenas, agravar o momento de indecisão e incerteza que, na realidade, parece que a Europa nunca ultrapassou desde a sua formação?
DO: Eu, por acaso, acho que a Europa tem uma certeza, que nós atribuímos como incerteza porque queremos manter alguma esperança. A União Europeia tem, pelo menos desde o nascimento do euro, um projecto neoliberal, bastante agressivo, e que corresponde aos seus verdadeiros valores. Como os comunistas que se queixam muito que “o comunismo era bom, [mas] foi um bocadinho desvirtuado”, a dada altura já nem percebo o que estavam a desvirtuar porque foi muito tempo para desvirtuar uma coisa. É um bocadinho como o europeísmo. Como dizia o Gandhi sobre a sociedade ocidental: “seria uma excelente ideia”. O europeísmo seria uma excelente ideia, só que não existe. O que existe é um projecto neoliberal que encontrou nos instrumentos antidemocráticos da União Europeia uma excelente forma de se impor, sem ter de passar pelo escrutínio democrático. Isto é uma parte. Não é a razão para o crescimento da extrema-direita (a razão para o seu crescimento são muitas coisas e o seu cruzamento), mas contribuiu bastante pela sensação que as pessoas têm de frustração, ou seja, de que elas não conseguem, através do voto, mudar o seu destino. Não há um lado da economia, isso não existe na política. Se não controlas a economia não controlas a política, se não controlas a política não controlas nada. E o que prevejo é uma mudança de rumo. Veremos como é que acontece.
Não me vou pôr aqui a adivinhar, mas, se os resultados eleitorais forem os que espero na Europa, prevejo o acentuar de uma aliança que parecia contranatura e não é: uma aliança entre uma agenda neoliberal e uma agenda autoritária de perfil neofascista. É, aliás, ao que assistimos no Brasil e assistimos em muitos sítios. A elite económica nunca sofreu especialmente, a não ser que lhe chegue a si, com a violação dos direitos humanos. Por um lado, há a agenda de continuação da privatização das funções sociais do Estado, de continuação de desigualdade fiscal em que todo o fardo fica para o trabalho, de competição fiscal entre os Estados que tem, exactamente, esse efeito (as empresas, para não fugirem, têm o privilégio de não pagar impostos). Por outro lado, não faz mal se isso convencer os mais pobres a, em vez de estarem a lutar pelos seus direitos, estarem a combater os ainda mais pobres do que eles. Conseguiu-se a coisa extraordinária de o povo, em vez de lutar pela igualdade, lutar contra ela. Não [a igualdade] económica e financeira, mas a igualdade dos imigrantes, dos homossexuais. Convenceu-se que era esse o seu problema. Veja lá que conseguiu, até, convencer-se os brasileiros que o grande problema do Brasil é o politicamente correcto. E eu acho que isso tenderá a reforçar-se. Acho que a direita neoliberal está a romper o cordão sanitário que tinha com a extrema-direita e, à medida que a extrema-direita lhe vai roubando votos e vai crescendo, tenderá a romper cada vez mais esse cordão sanitário para se salvar. Isto é o que eu prevejo – como vêm com enorme otimismo – e, sobretudo, se a esquerda não se conseguir reinventar. Não estou tanto a falar da esquerda chamada radical – também terá de se reinventar – mas, sobretudo, da esquerda social democrata, o centro esquerda. Estou convencido que só com esse espaço a liderar um movimento de resistência, oposição e conquista a isto, com descaramento, ou seja, quando a palavra “nacionalizar uma empresa” deixar de ser um escândalo. Quando formos tão descarados como a direita e a extrema-direita são (em coisas diferentes) é que provavelmente isto muda.
O primeiro que está a tentar (vamos ver como lhe corre porque tem o Brexit no meio) é o Jeremy Corbyn, ou como o Bernie Sanders fez nos Estados Unidos, evidentemente num cenário muitíssimo diferente. Acho que essa é a única resistência. Neste momento, um dos maiores travões a essa renovação do espaço da esquerda é o projecto europeu porque está marcado ideologicamente. Por outro lado, o centro esquerda não consegue, até por razões históricas, afectivas e outras, libertar-se dessa sua pertença a um projecto europeísta, e eu compreendo que não consiga. O que significa que se apanha a defender um projecto que, em tudo, tem uma agenda que impede a sua própria regeneração e renovação. Ainda hoje, estava a ter um debate sobre a Caixa Geral de Depósitos e estava a defender o que achava que esta devia ser e, rapidamente, alguém me disse, “mas isso não pode ser que a Europa não deixa”. E a política, neste momento, é isto: “mas isso não pode que a Europa não deixa”. Podemos dizer que é o povo europeu que não deixa? Não, não é o povo europeu que não deixa, é uma entidade qualquer que paira no espaço e que diz que nós não podemos fazer não sei quantas coisas mesmo que as queiramos fazer.
Miguel Fernandes Duarte: Mas não é possível reinventar essa União Europeia por dentro?
DO: Eu estou à espera que alguém me explique como. Os tratados estão todos bloqueados, todos. Só podem ser alterados por unanimidade. A Europa está a virar à direita, não está a virar à esquerda. O Gorbachev também achava que o comunismo se mudava por dentro e, afinal, acho que não foi possível. Não estou, evidentemente, a comparar a União Europeia à União Soviética, estou a dizer que as coisas têm um percurso e têm um caminho. Até Maastricht, até final dos anos 90, ainda era possível. O euro, a sua arquitetura e o que ela implica (como por exemplo, implica que em vez de as economias desvalorizarem a moeda têm de desvalorizar a economia quando têm problemas, [o que] na realidade impede as transferências internas) torna praticamente impossível ter políticas de esquerda e políticas sociais que não redundem num enorme fracasso. Portanto, se eu vir em algum lado que, sim, é possível mudar a União Europeia, estarei na primeira linha para o fazer porque eu não sou um nacionalista – sou um soberanista, acredito que o poder deve estar onde está o povo. E aí sou um soberanista e não me importo nada que digam “estás aliado, defendes a nação”: se é na nação que a democracia repousa, então é na nação que a democracia deve estar, se é lá que está o povo, é lá que deve estar a democracia. Não estou disponível a sacrificar a democracia pelo projecto europeu e o que está a acontecer neste momento é que temos órgãos não eleitos a vetar Orçamentos de Estado aprovados pelo Parlamento. Isto é uma perversão do mais básico que existe na democracia liberal. Foi para isto que nasceu o Parlamento, aprovar orçamentos. Nós vamos aceitando perversão atrás de perversão, esperando que um dia a União Europeia mude, e eu temo que, um dia, já não haja democracias nacionais, sequer, para a mudar. A União Europeia vive bem com isso: vive bem com a Hungria. Temos, basicamente, um regime que se não é uma ditadura anda muitíssimo [lá perto], e desde que cumpram o défice está tudo bem. Não vejo propriamente nenhum sinal de esperança. Não sou dogmático nesta matéria, se de repente isso começar a acontecer…, mas não fico a combater dentro da União Europeia e desisto da democracia que existe: que é a nacional. Não há nenhuma democracia europeia – não existe, é uma fábula. Portanto, não estou disponível para sair do campo onde ela existe mesmo, para ir lutar por uma coisa que, hoje, já é uma fantasia. Não sou europeísta, sou internacionalista, portanto, o que gostaria mesmo é de uma democracia global (parece que não é possível). Não tem nenhum valor específico dizer que se é europeísta. Acho que se pode defender o projecto europeu, mas europeísmo não é uma ideologia, e eu não sou eurocêntrico, portanto, também, não sou europeísta. Não acho, ao contrário de outras pessoas, que repousem na europa os valores da tolerância e da liberdade. Acho que o século XX, 500 anos de colonialismo, escravatura, etc., demonstram que se calhar essa é uma forma muito particular de contar a história, que a maioria dos povos do resto do mundo não subscreve. Outra coisa é dizer que, aqui, a democracia liberal liderou e se instalou por um curto espaço de tempo. É bom lembrar que só tivemos 70 anos de democracia na Europa, e se olharmos para a Europa de Leste são para aí uns 30.
MV: Lincoln, em 1863, descrevia a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. No século que se seguiu, em muitos países, foi esse mesmo povo que deixou que ela morresse e que, após cometidas todas as atrocidades por nós conhecidas, voltou a lutar pela sua implementação. De que forma pode a Democracia, no século XXI, reinventar-se? Como poderá arranjar mecanismos que permitam a superação dos desafios que a teimam em derrubar de novo?
DO: A democracia não é um estado natural da humanidade. Nós gostamos de acreditar que as pessoas lutaram pela democracia. Eu acho que a democracia só vingou quando garantiu bem-estar, e morreu sempre que deixou de garantir bem-estar. Bem-estar, segurança, alguma previsibilidade na vida das pessoas, aquilo que elas no quotidiano precisam para viver. Quando as pessoas dizem que cada geração viverá pior que as anteriores, estão a dizer que a democracia está condenada. Acredito que a melhor forma de defender a democracia é garantir Estado Social, o mínimo de estabilidade na vida das pessoas e continuar a lutar pelo pleno emprego. Se isto é uma causa perdida, então é bom habituarmo-nos à ideia de que a democracia é uma causa perdida. Muitas vezes as pessoas pensam em democracias andando mais para trás do que os 70 anos que eu falei, mas estão a falar de democracias de elite, não estão a falar de sistemas verdadeiramente democráticos, com voto censitário, etc. Ou seja, estamos a falar de democracias de massas. E essas só sobrevivem quando as pessoas se sentem minimamente protegidas e, se não se sentem, vão procurar proteção à ditadura.
MV: Mas não sente que as pessoas também podem lutar por isso?
DO: Com certeza, as pessoas lutam, perdem e ganham. No Brasil, as pessoas lutaram, como as pessoas que saíram da miséria – isso resultou da sua luta, não de alguém que lhes ofereceu. Os sem-terra, no Brasil, lutam, os negros que se foram manifestar esta semana lutam. As pessoas continuam a lutar. Sempre houve uma pequena parte da população que lutou e sempre houve uma esmagadora maioria da população que lutou ou não lutou conforme os momentos, conforme a coisa empurra. Eu até acho que as pessoas que estão a votar na extrema-direita, não sabendo, julgam que estão a lutar. Eu acho que o estão a fazer da forma errada. O incómodo existe e isto é a única parte boa que a gente pode tirar deste momento, é evidente que as pessoas estão a começar a ficar irritadas com as coisas. Depende, e sempre dependeu, dos actores políticos mais activos conseguirem canalizar essa luta para uma coisa ou para outra. Eu, como sou de esquerda, acho que cabe à esquerda conseguir canalizar [essa luta]. Por isso é que eu me recuso a desistir das pessoas que votam na extrema-direita, porque acredito que elas não são de extrema-direita. Têm lá valores, sempre tiveram, aliás. Os operários, que lutavam por essa Europa fora pelo Estado Social, muitos deles eram xenófobos e, provavelmente, quase todos homofóbicos. Todos carregamos em nós todas as contradições do mundo. Trata-se sempre de saber para que lado é que se canaliza a energia, a frustração e a vontade de mudança. Isso depende de condições, que são muito adversas, mas também dos actores políticos, das pessoas que têm o dever de se dirigir a essas pessoas. E há uma escolha que as pessoas têm de fazer e eu tenho falado muito nisso. Temos de saber, nós pessoas de esquerda, se nos contentamos em ser uma federação de minorias ou se lutamos por ter uma maioria social. E não há maiorias sociais sem ter a questão socioeconómica como questão central no combate político. E isto não é dizer que a questão socioeconómica é mais importante do que a questão dos imigrantes, ou da questão dos direitos LGBT ou da questão étnica, é dizer que é nela que se ganha, que é nela que se conquistam as maiorias sociais que permitem vencer essa e todas as outras batalhas. A esquerda [tem de] voltar a falar com essas pessoas – e com clareza – em vez de passar o tempo todo a queixar-se do populismo, em vez de dizer “a direita tem um discurso muito simples, nós temos um discurso muito complicado”. A direita liberal tem um discurso complicadíssimo: quer dizer às pessoas que se deixarem de ter Sistema Nacional de Saúde vão ter melhor saúde. Querem coisa mais complexa de explicar às pessoas que a desigualdade é boa para elas? E, no entanto, conseguem. O problema da esquerda não é ter coisas muito complicadas para dizer, é ter deixado de dizer coisas, incluindo as simples. E ter medo e vergonha de as dizer, e ter medo que digam que é radical. Uma parte razoável da esquerda vive em pânico que [lhe] digam que é radical. O Corbyn, quando começou a defender a nacionalização de empresas, descobriu que a maioria dos ingleses concordava. Aquilo que o mainstream político do Labour e da comunicação social dizia que ia fazer o Labour perder tudo quanto era o voto moderado. De repente, descobriu que o que era o voto moderado não estava assim tão concentrado nos pormenores ideológicos da nacionalização, por exemplo, dos caminhos-de-ferro. Queria caminhos-de-ferro que funcionassem, e eles não funcionavam, e queria caminhos-de-ferro que pudessem ser utilizados por todos. Ou seja, defende o Sistema Nacional de Saúde (SNS). Aqui, andamos com um debate com pinças a ver se não se é muito radical na relação do SNS com o privado e, se for falar com a esmagadora maioria dos portugueses, estes defendem com unhas e dentes o SNS público. Como se viu na questão dos contratos de associação dos colégios, a esmagadora maioria da população defende a escola pública do Estado. O problema da esquerda não é o povo não a querer ouvir, é ela não querer ouvir o povo, esse é que é o problema. Ou não querer falar com as pessoas sobre estes temas e permitir que o tema, em vez de ser os imigrantes que vão roubar o nosso trabalho, seja sobre o pleno emprego, seja sobre o SNS, sobre a escola pública… Esse é que é o problema da esquerda, não é ter um discurso muito complicado, é estar a complicá-lo o mais possível para não o ter.
MFD: É um falhanço da esquerda, a ascensão da extrema-direita? É inevitável?
DO: Não há nada inevitável na história, zero. A única coisa inevitável é que nós vamos todos morrer e sucedem outros e, se não fizermos nada, o fim do planeta também. Acho que é uma responsabilidade do centro direita, é este que está a ser esvaziado pela extrema-direita – não é a esquerda, essa fase já passou. Nós olhamos para França, vemos como os republicanos se esvaziaram, os socialistas também, mas a France Insoumise sobreviveu ali. Nós olhamos para o Brasil e o discurso que se faz é de que o PT implodiu e a extrema-direita cresceu. Não, se olharmos para os resultados eleitorais não foi isso que aconteceu. O PT caiu, mas onde o Bolsonaro vai buscar toda a gente é ao voto de centro direita, porque aí existe um discurso antipopular. Por isso é que está sempre a tentar escondê-lo com outra coisa qualquer. Se se apresentar aos votos sem outra capa, apenas pelo que defende, não tem apoio praticamente de lado nenhum. E, portanto, esse esvaziou-se. A esquerda é a principal responsável porque, como em muitos sítios (o Brasil é um pouco diferente), o voto da extrema-direita vem das classes populares que se sentem frustradas e alienadas do seu poder. Não estou a dizer que o voto da extrema-direita é um voto que veio da esquerda, não é isso, mas quem tem o dever de falar com esse povo é a esquerda. Quem tem de fazer com que um homem branco trabalhador se sinta trabalhador e, só depois, homem branco, ou [que] homem branco nem seja uma coisa relevante na sua identidade, é a esquerda. Se esta deixou de falar com os trabalhadores, deixou a extrema-direita a falar com os homens brancos. Porque as pessoas não têm esse quadro ideológico assim tão claro. As pessoas que se sentem diminuídas no seu papel social identificam para si próprias um papel e um papel do opressor em algum lado. No momento em que a esquerda desistiu de ter um discurso de classe, sobrou o resto.
MFD: E em Portugal estamos só atrasados no processo? Atrasados no sentido em que a extrema-direita chegou primeiro a outros sítios.
DO: Não estamos nada atrasados. Já cá chegou, não tem é partido. Isso é algo que escapa mesmo às pessoas. A extrema-direita já cá está, só não frequenta os mesmos sítios que nós. Está nos programas da manhã (não estou a falar do Mário Machado, essa é a parte explícita que, até, permitiu dizê-lo), está nas redes sociais, está no fórum TSF, está em todo o lado, aliás, basta ouvir as conversas. Só, ainda, não tem partido. Bastou ver o que foi esta semana para perceber que está e de uma forma muito mais agressiva do que as pessoas pensam, de racismo totalmente explícito e, sobretudo, dizendo “não me venham cá com o politicamente correcto, agora não sou livre para dizer aos parasitas para irem para a terra deles? E nós andamos, aqui, cheios de medo: “Ah, a liberdade de expressão”. Estou-me nas tintas para a liberdade de expressão! Eles têm a liberdade de expressão e eu tenho a liberdade para os combater até ao último minuto sem ter nenhum problema de dizer que um fascista é um fascista e não ter medo. É engraçado, nós fomos para um combate de boxe e metemos todos luvas de pelica e dissemos “vamos combater com estes senhores, que têm direito à liberdade de expressão”, enquanto eles nos vão esmurrando e nós somos uns cavalheiros. Em relação à extrema-direita sou claro: a democracia defende-se a si própria, não tolera quem, de alguma forma, tente destruí-la. E quando estiver quase a conseguir, se estiver quase a conseguir, a democracia tem o dever de ser bastante determinada por uma simples razão: quando eles vencerem vão ser bastante determinados em relação aos democratas. Desse ponto de vista, acho que está chegado o tempo de nos deixarmos de grandes “rodriguinhos”. Não é deixar de ser democratas para combater o fascismo, mas é, em nome da democracia, dizer que há uma fronteira e um limite. E que quem quiser combatê-la não usará elementos democráticos porque a democracia não lhos dá. Terá de usar outros.
MFD: Como é que se pode considerar que a extrema-direita está implantada nas bases da sociedade portuguesa se, ao mesmo tempo, temos um governo de esquerda?
DO: Temos. Em muitos poucos sítios a extrema-direita é maioritária realmente. Conseguiu foi ganhar uma força suficiente para determinar as políticas dos governos, mas não é maioritária, há muito poucos sítios onde seja, através do voto. A questão é que eu acho que a extrema-direita está lá. A primeira coisa que vai fazer, está a fazer na Europa toda e vai fazer em Portugal também, é influenciar o discurso do próprio centro direita, que, com medo de perder o voto, se vai aproximando desse discurso. Foi o que aconteceu em França com os republicanos e vai acontecer aqui. Depois, tem de haver um actor político e um clique. Em Portugal não é preciso. A extrema-direita não costuma crescer em momentos de melhoria económica, mas nós sabemos que a nossa melhoria económica é uma coisa muitíssimo precária. A qualquer momento vai mudar. É preciso haver depois alguns outros cliques, sei lá, o Sócrates ter uma pena muito baixa, porque o discurso em Portugal vai ser em torno da corrupção. Nós não temos muitos imigrantes, mesmo que o discurso da criminalidade se vá alimentando a si próprio, não deixamos de ser o quinto país mais seguro do mundo. Temos o milagre de ter uma televisão, que é a CMTV, que se dedica exclusivamente a crime no quinto país mais seguro do mundo. É mais ou menos um canal de surf no deserto. E provavelmente se uma pessoa quiser fazer muito um canal de surf no Burkina Faso, se calhar corre bem. A corrupção funcionou historicamente sempre. A corrupção sempre existiu e depois houve momento em que funcionou bem do ponto de vista do discurso político e outros menos bem. Normalmente funciona menos bem quando a situação económica é melhor, e funciona melhor quando a situação económica é pior. Quando as pessoas deixam de confiar, também, nas instituições, etc. Porque a corrupção sempre lá esteve. Aliás, a corrupção vive desta caraterística especial, que é quanto mais se combate, mais visível é, e, quanto mais visível é, mais as pessoas têm a sensação que ela existe. E, portanto, os únicos Estados que não sofrem muito com a corrupção são aqueles que não a combatem politicamente, que a escondem completamente. As pessoas vivem melhor com ela.
MFD: Mas, ao mesmo tempo, não é um pouco contraditório que, as mesmas pessoas que usam a corrupção como argumento para não votar em alguém, são as que votam no Isaltino e dizem que “ele rouba mas faz”?
DO: Acabei de dizer isso. Quando as pessoas sentem que está tudo bem, a corrupção não é uma coisa assim tão importante. Quando as coisas estão a correr mal, é uma explicação fácil para as coisas estarem a correr mal. Não há nada mais fácil. “Porque é que isto corre mal? Porque eles roubam”.
Até sou bastante severo com a questão da corrupção. Não faço é um discurso político que se baseie na questão da corrupção, porque esse é um discurso que tem de ser apolítico. Acho, por exemplo, como escrevi sobre o Brasil, que a corrupção é o estado natural da desigualdade por uma simples razão: um Estado com uma sociedade muito desigual, além de ser uma sociedade que distribui o poder de forma muito desigual e com isso favorece a corrupção, porque há menos formas de controlo, é uma sociedade que tem um curto circuito. Por um lado, o poder é muito desigualmente dividido, mas há um único momento em que ele é igualmente divido, que é no voto. Escusado será dizer que a própria sociedade resolve esse desencontro de uma forma que é comprando o voto. E a corrupção não é outra coisa, em relação com o Estado e com os políticos, do que comprar o voto. É usar o poder económico que se tem para voltar a desnivelar o único poder que é igualmente distribuído. Desse ponto de vista, eu não faço um discurso apolítico sobre a corrupção. Faço um discurso político da corrupção que é em torno da igualdade e da desigualdade. Por isso, apesar de achar que é fundamental combater a corrupção pelos meios judiciais, policiais, etc., recuso-me a fazer esse debate sem discutir a sua base, que é discutir a questão da desigualdade – da desigualdade de acesso ao poder, de acesso ao bem-estar, etc. Aliás, é a mesma opinião que tenho sobre a criminalidade. O que não impede que não defenda que tem de existir polícia, políticas de segurança, evidentemente. Agora, todos sabemos que numa sociedade brutalmente desigual não se combate a criminalidade sem resolver esse problema. Diminui-se, atenua-se, mas ela vai lá estar sempre.
MFD: É possível uma esquerda nos dias de hoje que não se enquadre no capitalismo, nas suas mais diversas vertentes?
DO: É, a prova de que é possível é que existe. Os partidos sociais democratas, as pessoas talvez não se lembrem, eram partidos anticapitalistas, de origem marxista, aliás, muitos deles. Eu acredito que uma das funções da social democracia, que é o espaço político onde eu me enquadro, não é só de moderar o capitalismo, é de ter lógicas que são contrárias à logica do capitalismo. O Estado Social é contrário à lógica do capitalismo e foi assumido porque o capitalismo estava em risco. As políticas fiscais redistributivas são contrárias à lógica do capitalismo. Eu tenho uma posição reformista de combate, não é “o capitalismo é excelente, a gente precisa de dar ali um tempero”. Eu não me considero um defensor do capitalismo. Não tenho uma alternativa, por isso, quando não se tem alternativa, é melhor não se destruir o que existe. Mas sou um reformista (é uma expressão quase impossível) radical, no sentido em que eu defendo reformas sociais e políticas que, basicamente, reduzam ao mínimo os efeitos nefastos do capitalismo. Distingo-me de um neoliberal por achar que a desigualdade é má. Um neoliberal pode pintar e dar as cambalhotas que quiser que acha que ela é boa, que é construtiva, que cria nas pessoas ambição e que acredita, aliás, que a riqueza resulta do mérito. E eu não acredito que a riqueza resulte do mérito. Acredito que há reformas sociais e económicas, como aquelas que construímos no pós-guerra, que tornaram sociedades decentes, sobretudo no norte da Europa, onde o capitalismo não era totalmente destrutivo, ou sobretudo destrutivo. Agora, há uma coisa em que eu não acredito, não acredito numa esquerda reformista forte, que resista, que tenha esta agenda, se não tiver à sua esquerda uma esquerda anticapitalista forte, porque não terá a motivação para o fazer.
MFD: Mas o sistema não vai sempre defender-se a si próprio?
DO: Sempre se defendeu, e então? Mudou na mesma. Não houve um momento em que o sistema dissesse “se faz favor, passe”. O problema do sistema é que quer dizer tudo e não quer dizer nada. Apesar de não ser um comunista e não ser um marxista, acho que existem classe sociais e acho que existe, se quisermos, uma luta de classes. Não acho que a luta de classes seja o único motor da história, não tenho uma visão tão linear, mas acho que existem interesses de classe contraditórios. Desse ponto de vista, não houve nunca um momento em que quem está melhor dissesse a quem está pior “vamos tornar isto um bocadinho melhor”. Houve um momento em que tiveram medo e que perceberam que mais valia ceder um bocado do que perder tudo. Na realidade, eu acho que é isso que falta. É, na redistribuição, quem tem mais sentir que pode correr o risco de perder tudo e, portanto, assim, resolver. Se não sentir esse risco, não vale a pena. “Não, eu não me vou meter numa offshore porque isso está errado”, isto não existe, não é assim que a sociedade funciona, nunca foi.
MFD: E como é que é possível mostrar às pessoas que, num mundo onde parece quase mais realista chegarmos a Marte do que propriamente as pessoas não viverem de maneira desigual, não é inevitável vivermos como vivemos sem a única solução ser voltarmos ao tempo que passou?
DO: Eu não tenho uma visão de que o mundo caminha para melhor ou para pior. Os grandes combates políticos fizeram-se baseados em tradições. Os grandes combates do princípio do século XX tinham a comuna de Paris, muitos deles, como uma memória da sua tradição. Não acho que a ideia de luta progressista tenha de dizer “é tudo novo”. Não, isso não existe, nós estamos sempre a reinventar o passado – não é repeti-lo, é reinventá-lo. As pessoas só querem voltar para trás porque não vêm nada para a frente. Mas isso não acontece por milagre. Não há alguém que, um dia, chega e diz “eu tenho aqui…”, não é assim que acontece. Por exemplo, o movimento operário, para ser mais abrangente, não apresentou de repente um projecto e “Ah! Que excelente ideia, é mesmo para aqui que a gente quer ir”. Não, houve condições sociais e económicas que levaram a que as pessoas tivessem predispostas a fazer esse combate e houve lideranças. E houve um discurso aspiracional, mas esse discurso só existe quando há algum sinal de que essa aspiração é possível. Não é agora ainda, mas vai ser. Aliás, nós já acreditámos em muitas derrotas que depois não aconteceram. Não está escrito em lado nenhum. Se eu soubesse como é que isso se fazia, não estava aqui a falar com vocês e estava a preparar a coisa. [risos] Depende muito, e nisto se calhar, também, sou um bocadinho marxista na análise que faço. Depende muito das próprias condições de trabalho, e sociais e de vida, que as pessoas tiverem. Uma das razões pelas quais os trabalhadores se revoltaram é porque tinham condições para se revoltarem por trabalharem no mesmo sítio, no mesmo chão, na fábrica. Aquilo criou uma lógica de cooperação que correspondia à própria lógica com que as pessoas produziam. E um dos grandes dramas do nosso tempo é a atomização das pessoas. Ou seja, é muito difícil que o tipo que faz as entregas do UberEattenha uma grande consciência de classe porque é ele e a mota dele. Agora, as lutas reinventam-se. Houve uma greve, em Londres, conjunta, ainda pequena, entre os funcionários do McDonald’s e os tipos que fazem entrega tipo UberEatporque eles perceberam que precisavam de um espaço comum, um sítio comum de combate. Perceberam que o maior fornecedor com quem tinham relação era o McDonald’s; os seus trabalhadores também estavam numa luta e juntaram essas lutas. Nós estamos sempre a reinventar. Não houve um momento em que as pessoas desanimaram e deixaram de lutar, houve momentos, mas volta sempre. A aspiração de liberdade e de melhores condições de vida volta sempre. Não sei, exactamente, quando, mas vai voltando. Aliás, ela, acontecendo, vai explodindo, até que há um momento em que a coisa ganha uma dimensão. Há uma geração que cresceu num mundo completamente diferente. Há pouco tempo, estava com velho comunista que eu conheço há muitas anos, que foi dirigente comunista, mais velho do que eu, é de outra geração diferente da minha, e dizia “Sabes, Daniel, nós não conseguimos compreender isto, porque isto já é um quadro de raciocínio completamente diferente do nosso”. E eu acho que uma parte é verdade, outra não será tanto, mas há, nesta realidade atomizada, que funciona em rede, que destruiu formas de pertença e de intermediação que são indispensáveis à democracia, esta forma de trabalho totalmente atomizada e cada vez mais escravizada. Há sempre momentos de rutura. E esses momentos de rutura não é com o capitalismo que vão acabar porque quando o capitalismo se viu obrigado a recuar foi quando aconteceram esses momentos de rutura. E eles vão acontecer. Não estou a dizer que vem aí a redenção e a revolução, mas eles vão acontecer. O resultado pode ser para pior, mas eu estou a dizer, não só que eles vão acontecer, como estão a acontecer nas nossas barbas. As vitórias da extrema-direita são momentos de rutura do sistema, não são para o lado que eu quero, mas são.
MFD: Como é que a esquerda pode aproveitar isso para o seu próprio lado?
DO: Se nós olharmos com atenção, por exemplo, a esquerda chamada radical, desde o princípio deste século até hoje, cresceu. Na passagem do século, a Esquerda Unida, em França, era uma inexistência quase. O partido comunista francês era uma inexistência, estava a desparecer. Até em Portugal, era o PCP a lutar pelos 7, 8%. Hoje, nós olhamos e temos o Podemos– está a cair agora, mas não tem comparação –, temos a FranceInsoumise, temos o Bloco e o PCP juntos. Na Itália não, foi uma desgraça absoluta. Temos Bernie Sanders com resultados que eram totalmente impensáveis há vinte anos. Ou seja, o fenómeno não surge só pela extrema-direita. Nós estamos a concentrarmo-nos muito no que aconteceu nos últimos três anos, isto tem espaços um bocadinho mais longos. E não acho que a resposta seja a FranceInsuomisee o Podemos, não é isso que eu estou a dizer. Há momentos mais conturbados na história, que são momentos de transição rápida, em que nós não estamos no tempo que era, nem estamos bem no tempo que vai ser – pode ser que a gente viva muito tempo neste tempo – e em que temos sinais muito contraditórios. O que a esquerda tem de fazer é aproveitar os sinais contraditórios que são positivos para si. Incluindo aproveitar instrumentos que, supostamente, não são confortáveis para si. Não sei os pormenores desta história porque soube ontem e não fui ler, mas a Ocasio-Cortez parece que no outro dia entrou num grupo de gamerse esteve a falar com eles, fez ali quase uma sessão de esclarecimento. Ou seja, nós estamos sempre à procura das brechas. Falo da Ocasio-Cortez porque eu sou um fã, a todos os níveis.
MFD: Mas uma dessas brechas não pode ser, por exemplo, o movimento dos coletes amarelos francês?
DO: Podia, não sei se é. Pode ser, mas eu nisso sou “ou lideras ou não lideras”. Não lideras com a extrema direta, não partilhas. Ou consegues enquadrar esse combate e dirigi-lo para determinado tipo de valores e, portanto, estás em disputa com a extrema-direita, ou não estás ali paredes-meias com a extrema-direita a fazer um combate porque dá jeito aos dois. Não!
MFD: Mas houve, até, confrontos entre ambas as partes…
DO: Ainda bem. Salvo seja, ainda bem [mas] não fisicamente. Tu disputas a rua à extrema-direita, com certeza, tens de disputar a rua. O maior crime que o PT cometeu – cometeu alguns, mas aí acho que não foi o PT, foram pessoas específicas do PT –, ter dito à rua para descansar. “Agora não, agora acalmem que nós estamos a governar”: ficou sem rua. Pouco tempo depois, estava a extrema-direita na rua e o PT não tinha ninguém para o defender. Quando estou a dizer “a rua” é metafórico, pode ser a rua, podem ser as redes, pode ser o que for. O que eu estou a dizer é que a esquerda disputa com a extrema-direita e não tem medo de disputar com a extrema-direita. Quando percebe que esse movimento domina um determinado momento, não fica quieta porque quer dizer que não é o movimento que quer. Os coletes amarelos em Portugal nasceram, e só podiam nascer como nasceram, e, portanto, ainda bem que não aconteceram porque, se não, neste momento, teríamos que estar a disputar a extrema-direita na rua e, se pudermos não disputar nada com a extrema-direita, melhor. Enquanto ela não aparecer, ou não tiver capacidade de mobilização, [melhor].
MFD: Em França, por exemplo, é discutível, ainda, para que lado as águas viraram depois disso, mas não será bom, no mínimo, que as pessoas se revoltem contra Macron?
DO: Claro que é. Eu, aliás, defendi que a esquerda devia votar no Macron e, no dia a seguir às eleições, estar na rua a combater o Macron. Deixar claro que o Macron não venceu, foi a Le Pen que perdeu. Que a esquerda não votou em Macron, votou contra Le Pen, e que não se verga aos projectos, do meu ponto de vista, neoliberais do Macron. Portanto, é bom. Eu não acredito na tese da aliança democrática contra a extrema-direita, não por não apreciar a ideia, [mas] porque eu acho que ela é um projecto para uma derrota. Para já, porque como se viu no Brasil, a direita neoliberal, na hora da verdade, vai pender para outro lado. Se os privilégios estiverem em causa, vai pender para outro lado. A direita liberal prefere a extrema-direita à esquerda e já o provou várias vezes. [A esquerda] tem de combater a extrema-direita, mas, ao mesmo tempo, não se esquecer porque é que a extrema-direita está a crescer. Portanto, não é combater o seu povo, é roubar-lhe o povo.
MFD: No momento em que os coletes amarelos combatem o governo do Macron, e se há uma espécie de perceção de que, se calhar, é a Le Pen que está a tirar mais benefícios disso…
DO: Claro, a Le Pen é mais forte.
MFD: Mas o que é que há a fazer?
DO: É fazer, aliás, o que eu acho que eles tentaram fazer. Não sei se conseguiram porque depois não acompanhei em pormenor, mas é fazer o que tentaram fazer. É disputar a Le Pen àquele povo. Não é uma questão de quem manda, é mesmo a agenda política contra as reformas laborais de Macron e ir conseguindo vencer até ao ponto de conseguir retirar as políticas anti-imigração daquela agenda. Eu defendo que este combate não é uma forma de cumplicidade com a extrema-direita. Pelo contrário, é uma disputa com a extrema-direita, o que implica vencê-la. Em alguns momentos, há escolhas essenciais e a esquerda fez quando votou no Macron. Neste momento, estou convencido de que há três espaços políticos em confronto, sendo que um deles está em bastante perda. Um é um confronto, se quisermos, de uma agenda neoliberal mais forte, mais leve ou mais carregada, que assume que o caminho é liberalizar as leis de trabalho, ir tornando o Estado Social mais pequeno e, portanto, isso pode ser os neoliberais explícitos ou pode ser, apenas, o que foi a Terceira Via, que é a mera desistência, “estou aqui para fazer o mesmo, mas mais devagarinho e com menos dor”. Depois, temos a extrema-direita de perfis vários, não é toda igual, e, depois, temos o espaço da esquerda, que é esse que está em maior perda, que recusa a agenda neoliberal, em questões económicas e sociais, e a agenda de perfil autoritário ou neofascista, dependendo dos países. E este combate a três é bastante difícil. Portanto, o que a esquerda tem de fazer não é aliar-se à extrema-direita contra o Macron, nem é aliar-se ao Macron contra a extrema-direita. Em momentos essenciais, que é em momentos em que se decide o chão que se pisa, eu acho que o centro direita brasileiro tinha o dever de ter votado em Haddad contra Bolsonaro. E acho que a esquerda francesa cumpriu, ao contrário da direita brasileira. A esquerda tinha o dever de votar em Macron. E não era para apoiar Macron, era porque, no momento em que se perder o combate com a extrema-direita, estão os dois perdidos. Isto é um confronto muito difícil que, em Portugal, nós ainda não vivemos; facilita a vida à esquerda porque o combate ainda é dual, com muito espaço intermédio pouco claro. Quando a extrema-direita aparecer as coisas vão ficar mais difíceis. Por isso, é que temos de fazer para que ela não apareça do ponto de vista partidário.
MFD: Que papel é que deve continuar a ter a esquerda num cenário onde, como na última semana, vemos o racismo a proliferar por todo o lado?
DO: O papel dos direitos humanos, da defesa dos direitos humanos. Não acho que haja uma agenda da igualdade económica e social e, depois, outra LGBT [ou anti-racista]. Eu quando digo que tem de se vencer a outra é porque ela é que constrói maiorias sociais, mas a agenda é a mesma, é a da igualdade. A esquerda tem que ser, por natureza, o combate ao privilégio; e é o combate ao privilégio dos ricos, dos brancos, dos homens, dos heterossexuais, e não é o combate aos heterossexuais, aos brancos e aos homens, nem sequer aos ricos, sendo que nos ricos é uma condição. É um pouco diferente, a própria existência do rico resulta do privilégio. A agenda é sempre a mesma, portanto tem de estar sempre do mesmo lado, sem medo. Não é como o Carlos César que veio dizer que a esquerda, ao dizer o que disse, pôs em causa as forças de segurança e a autoridade do Estado. A ver se ganha um voto, para dizer “assim “Bolsonaros” não nascem”. “Bolsonaros” nascem quando a gente começa a dizer o mesmo que eles. Esta ideia que se instalou de que a maneira de combater os “Bolsonaros” é não contrariar os “Bolsonaros” … Não, é contrariar. Depois, há formas inteligentes e estúpidas de o fazer, mas é contrariar e ser muito claro.
MFD: Porque é que não vemos a direita a falar de politicamente correcto quando se pretende silenciar o Mamadou Ba, do SOS Racismo, por ter dito “bosta da bófia”? No fundo, o argumentário atirado contra a esquerda, do politicamente correcto pretender silenciar tudo e mais alguma coisa, não é, na verdade, um escape para fugir a todas as outras discussões?
DO: O politicamente correcto é o outro. Ao contrário do que dizem, a expressão “politicamente correcto” passou a dizer “eu tenho direito a dizer o que quiser e tu tens o dever de não responder porque, se não, estás-me a oprimir”. Eu escrevi, há pouco tempo, “a tua dignidade oprime-me”. A gente chegou a este ponto, que é eu ter que pedir desculpa, e ir com pezinhos de lã, para dizer que as pessoas não devem ser humilhadas pela sua orientação sexual. Tenho de pedir desculpa: “desculpe lá, eu não quero maçá-lo, não quero oprimi-lo”.
Há o que é, verdadeiramente, o politicamente correcto, que é, simplificando, a ideia de que a linguagem transporta poder – relações de poder –, que é uma verdade indesmentível. Depois, a forma como a gente lida com esta verdade indesmentível é outra coisa. Aquilo em que se transformou o politicamente correcto é “eu tenho o direito de ser boçal” e eu, a única coisa que tenho a dizer, é “não, não tens, e se o queres ser vais ter de bater-te por ele porque eu vou fazer tudo para que não o tenhas, e não é calar-te, é fazer com que tenhas vergonha de falar”. Chama-se a isso controlo social, que sempre existiu, e que é base da vida em sociedade. Instalou-se a ideia de que temos direito de dizer tudo. Não se trata de uma questão de direito. A vida em sociedade implica, mesmo, que nós não digamos tudo o que pensamos, sempre implicou. Desde o momento em que nascemos que nos é ensinado a não dizer tudo o que pensamos. É uma surpresa que as pessoas, não sei, querem, agora destruir, mas não é, é mentira. Na realidade, como se vê, eu sou livre de dizer o que quiser, mas o Mamadou Ba não é livre de dizer o que quiser – ainda por cima não disse bem aquilo que eles dizem que disse, mas é indiferente. E eu acho que o Mamadou fez mal porque facilitou a vida. Percebi o que ele queria dizer e, sobretudo, acho extraordinário que, no meio das barbaridades que foram ditas esta semana em todo o lado, a grande preocupação seja com a frase do Mamadou. Acho extraordinário. Na verdade, não acho extraordinário, é um combate, é mesmo assim. E isto, vamos resumir, não é cá de politicamente correcto, nem meio politicamente correcto. Houve uma senhora, no outro dia, na TVI, que disse, num programa daqueles da manhã, que é onde realmente se está a fazer a arregimentação, uma senhora loira – não sei se conhecem, eu não conhecia – que disse uma coisa do género “Eu não quero Bolsonaros cá” – como o Bolsonaro não é muito popular cá, começa-se, logo, por dizer isso, e, depois, disse o mesmo que o Bolsonaro diria – o que faz o Bolsonaro é tu não aceitares o discurso do Bolsonaro, é isso que faz o Bolsonaro – “Eu não quero Bolsonaros aqui mas Portugal é um pais democrático, Estado de Direito, etc.” e acaba a dizer “os parasitas para irem para a terra deles”. E, depois, claro, fala do politicamente correcto; mal a pessoa percebe que o que disse pode parecer inaceitável defende-se com o politicamente correcto, “eu tenho todo o direito a dizer barbaridades”. Pois, e eu tenho todo o direito a combater as barbaridades e é disso que se trata. Não se trata de censura, nem de politicamente correcto, trata-se de um combate civilizacional entre quem promove a desigualdade e o ódio e entre quem a combate. As pessoas que dizem “por favor respeita o meu direito a combater os direitos humanos”, claro, com certeza, eu sou a favor do que está na lei. Agora, não esperes que fique quieto enquanto tu crias um clima de ódio que torna a vida de milhões de pessoas insuportável, não ficarei e não direi “são só palavras, não faz mal nenhum”. Portanto, eu já não tenho muita paciência para a conversa da censura porque, na realidade, nunca tentei censurar ninguém. Aliás, acho curioso, nunca meti um processo a ninguém por nada do que tivesse dito e passei 10 anos com termo de identidade e residência por coisas que escrevi e que disse, portanto, nem aceito grandes lições sobre liberdade de expressão. Agora, não esperem que eu não reaja. Custa? Custa quando dizem barbaridades ter milhares de pessoas a reagiram? Então não as digam.
MFD: Então, alguém que se diga de esquerda e faça do seu combate a oposição ao politicamente correcto não está a fazer um desfavor às outras agendas todas da esquerda?
DO: Depende do que as pessoas consideram o politicamente correcto. Eu fiz críticas, por exemplo, ao MeToo. Não sou um defensor de que há aqui uma trincheira e uns dum lado, outros do outro, e ninguém abre a boca. Acho que devemos ir discutindo os excessos, os exageros, os erros tácticos, os erros estratégicos, os erros de princípio. Eu tenho divergências com pessoas que até acho que estão na minha linha, mas acho que, em relação a propostas que fazem em relação à liberdade de expressão, não só não é eficaz, como não é politicamente defensável. Não tenho nenhum problema com isso. Tenho uma certa dificuldade em perceber pessoas que dizem que são de esquerda, mas, por uma qualquer razão, talvez um bocadinho egocêntrica, passaram a fazer do combate ao politicamente correcto a sua grande bandeira. Se isso é o centro da sua actividade, acho que estão dessintonizadas com a história. E acabarão, inevitavelmente, a dizer, o tempo todo, que a culpa do Bolsonaro é do politicamente correcto. Depois, no caminho, esquecem-se de combater o Bolsonaro – no sentido mais metafórico do termo.
Para já, não tenho um “esquerdómetro”, não digo quem é que é de esquerda e quem não é. Há pessoas que eu sei que estão do meu lado político e, aliás, já fui muito crítico em relação a muitas coisas do chamado politicamente correcto propriamente dito. Acho que há coisas, até, patéticas, ridículas, inúteis, irrelevantes. Não sou um purista da linguagem, portanto, acho que as coisas têm de ser exequíveis, tem de haver bom senso. Não podemos transformar, aliás, escrevi um texto longo sobre esse assunto, todos os nossos possíveis aliados em nossos possíveis opressores. Ou seja, mais uma vez, se estou com um homem branco trabalhador, não passo o tempo todo a dizer que ele é um homem branco, tento que ele se lembre que é trabalhador, apesar de eu próprio ser um homem branco trabalhador. O meu problema do idiota útil não é ele defender as coisas em que acredita – acho bem que o faça e eu nunca calei as críticas à esquerda, eu próprio as faço –, é quando ele se concentra de tal forma numa agenda em que, de repente, já está do lado em que ele próprio já não quereria estar, é esse o problema. Tem a ver com pessoas muito reativas às suas próprias circunstâncias. Uma das coisas importantes de se ter consciência política, é que a consciência política reduz a nossa reactividade às nossas circunstâncias, retira-nos das nossas circunstâncias. É o que faz, por exemplo, que uma pessoa de esquerda de classe media alta, porque paga muitos impostos, não começa a fazer da sua bandeira, mesmo que até ache que paga impostos de mais, por exemplo, o excesso de imposto para a classe média alta, porque percebe que é capaz de não ser essa a sua agenda, do ponto de vista político, mais importante. Mesmo que, do ponto de vista pessoal, até seja. Fazer essa destrinça, muitas vezes, é difícil e, no politicamente correcto, tenho visto muita gente que, pela sua actividade profissional, é muito afectado por isso. Entretanto, como é ou pouco politizada ou se esquece da sua politização, isso perde relevância.
MFD: Pegando na questão do politicamente correcto e, também da liberdade de expressão, tendo em conta os acontecimentos do início do ano. Considera que é legítimo existir esse diálogo com pessoas de extrema-direita, ainda que não nas condições que a TVI o fez e que continua a fazer nos programas da manhã? Ou este debate poderá, em contrapartida, constituir uma abertura a que essa mesma direita cresça?
DO: Eu entrevistei o Jaime Nogueira Pinto no meu podcast. Eu considero-o uma pessoa de extrema-direita e fui muito criticado por isso, até porque o entrevistei sobre o mesmo assunto de que ele, supostamente, ia falar à faculdade e não falou. Aquilo teve um lado que é de posição política. Acho que os debates não são todos iguais, não são todos da mesma maneira e as pessoas não são todas as mesmas. Mais uma vez, acho que o bom senso nestas coisas funciona. Não há nada para falar com o Mário Machado, ele é um criminoso, ponto. Não há nada para discutir com Mário Machado. Nem para discutir, nem para ouvir. Não vamos trocar aqui umas ideias sobre espancar negros, se isso é bom ou mau. As pessoas não têm um lugar estanque, depende do lugar em que estão e o lugar em que se põem, mesmo que não seja, exactamente, aquele em que estão.
Outra coisa é o jornalismo. O jornalismo pode entrevistar o Mário Machado, desde que faça o que um jornalista tem de fazer. Portanto, não tenho uma visão de que devemos retirar do espaço público. Achei, por exemplo, um disparate a reação à vinda da Le Pen a Portugal por uma razão: tem 30% em França. Quando se deixou que chegasse aos 30%, não dá para não dar palco, já lá está no palco. Depende, um, do papel que cada um tem, dois, da força que tem e do próprio discurso que tem. Não tenho uma posição encerrada sobre esse assunto. Agora, pelo menos, comecemos por isto: há criminosos e há pessoas com quem não debatemos política. Pessoas que espancam imigrantes, não se discute política com elas; discute-se crime, se elas quiserem falar dos seus crimes, e podemos entrevistá-los sobre isso, não lhes damos o direito de aparecerem, não os transformamos em políticos. Outras pessoas, temos de discutir, até porque há pessoas estão ali na fronteira e, portanto, eu discuto com pessoas com opiniões políticas muito diferentes das minhas. Sou muito pragmático, não é naquilo que impeço que os outros falem, ou não, é com quem é que eu falo em cada momento. Há pessoas a que eu não quero dar notoriedade e, portanto, evito falar com elas em público. Não é nenhuma questão de princípio. Como não sou obrigado a falar com ninguém, falo com quem me apetecer. Outra coisa é se falarmos, mas eu, sobre isso já falei largamente, como é que as pessoas estão no espaço televisivo, isso é outra coisa, isso não sou eu: quais são as regras, as formas como as pessoas têm de aparecer, em que sítio é suposto aparecerem. O Jaime Nogueira Pinto tem um programa de rádio semanal e eu acho muito bem. Debate as suas posições e ele é cuidadoso e evita, portanto, dizer as coisas mais chocantes. E isso também conta, não é só aquilo que nós somos no espaço publico.
MV: Hannah Arendt referia, no início da sua obra As Origens do Totalitarismo, que muito dos historiadores passavam por cima da questão do porquê de ter surgido o antissemitismo e, portanto, não a analisavam, porque se aperceberam que a hostilidade para com os judeus pautava a realidade desde há séculos. Ficou provado, no século XX, a perigosidade que é afastarmos a ideia do debate e colocarmo-la numa esfera da normalidade, como é normal não o vamos debater. Como é que se pode evitar a normalização das ideias ou dos acontecimentos que estão, de facto, a ameaçar a democracia? Poderá a memória histórica ter algum papel nesta questão?
DO: Começa logo por não ter medo. Quando o discurso mainstream tenta criminalizar, por exemplo, os negros do Bairro da Jamaica, não estar cheio de medo de parecer colado. Não ter medo, porque é uma cedência que não volta atrás. Ainda hoje, correm memescom frases minhas a dizer “A Europa é Islão” (a frase completa é “A Europa é cristianismo, é judaísmo, é islão”, estão lá as várias, mas pronto, essa parte não aparece, mas é indiferente). Montes de gente assumiu que falar de Islão não era falar de uma religião, era falar de qualquer coisa que eu não quero aparecer colado. Não ceder, nem um milímetro, nessa matéria, e isso exige a coragem de não ceder. Isto é a primeira coisa. A segunda, sim, a memória histórica é fundamental, mas a memória histórica resulta sempre da correlação de poderes. Achamos sempre que se nós ensinarmos a história às pessoas elas […]. Não, não, a história é ensinada conforme quem manda. Para já, porque a história não está lá pousada para ser ensinada, não é uma história, que é a realidade, que se as pessoas souberem… Não, a história pode ser contada de muitas maneiras. O debate sobre o museu das descobertas é um debate sobre isso. Como é que nós nos vemos? E há pessoas que não percebem que nós vermo-nos, apenas, como valorosos descobridores, que demos novos mundos ao mundo – demos, eles não estavam lá – e desenvolvemos imensas trocas culturais, apesar de nada disto ser propriamente mentira, mas ignorar, no meio, que somos os responsáveis pelo maior tráfico de escravos intercontinental da história – nós portugueses, não estou a falar da Europa. E eu não estou a dizer que nos vamos autoflagelar e dizer “que horror”. É que a forma como nós ensinamos o nosso passado determina as ilusões que temos sobre nós próprios, e é, por isso, que o país inteiro passou uma semana a dizer que não é racista enquanto dizia as maiores barbaridades racistas. Nós acreditamos mesmo que fomos os primeiros a acabar com a escravatura, que é uma coisa que toda a gente se ri na Europa se nós dissermos, e acreditamos mesmo que o nosso colonialismo foi bondoso, e acreditamos mesmo que havia ali mestiçagem e que nós até casávamos com elas e éramos todos muito amigos, quando, na realidade, o trabalho forçado acabou em 1974, quando já praticamente nenhum país tinha colónias. Portanto, historicamente, nós somos um país mais racista do que os outros. Não somos menos, somos mais. E isto não basta. “Se a escola ensinar…” Depois, é, sempre, uma questão de grau, e de ridículo e não ridículo, ou de bom senso. As palavras são combates políticos. Dou sempre o mesmo exemplo – sempre, sempre, sempre –, que é: no dia em que eu escrever colaborador, em vez de trabalhador, perdi. Porque colaborador é uma mentira criada para eu deixar de me sentir trabalhador, para eu deixar de sentir o que sou, para eu acreditar que estou a colaborar numa empresa que me pode despedir a qualquer momento. Que eu sou alguém que colabora, que tem ali uma relação de colaboração com uma empresa. Como ditava o Nanni Moretti, as palavras são importantes. São mesmo importantes. Outra coisa é, depois, e essa é a minha crítica aos movimentos mais puristas desse tema, é nós acharmos que basta o combate das palavras e que ele é que é o grande combate. Ou seja, acreditarmos que podemos fazer do combate das palavras o centro de todo o debate, ao mesmo tempo que temos violência doméstica brutal. Tem sempre a ver com medir cada uma das coisas. Mas as palavras são importantes, são trincheiras. E não são só para a esquerda supostamente politicamente correcta. São para a direita, são até talvez mais. São muitíssimo importantes. Só que não lhe chamam politicamente correcto. Aliás, ao ver o Bolsonaro, é muitíssimo interessante perceber como criou toda uma linguagem – não foi ele que a criou, vem da extrema-direita –, uma novilíngua: feminismo passou a ser ideologia de género, tudo o que tem a ver com direitos humanos passou a ser ideologia e ideologia é uma coisa negativa porque eles não são ideológicos, pelo contrário, eles só querem o melhor para o Brasil. Se houve combate que a extrema-direita nunca parou de fazer, e a direita liberal também, e a esquerda, foi o combate das palavras. Só que conseguiram fazer uma coisa ainda mais extraordinária, é que o combate das palavras deles é normal e o combate da esquerda chama-se politicamente correcto, tem um nome. E há imensa gente que, em vez de estar a fazer o combate das palavras, está empenhadíssimo no combate sobre o politicamente correcto. Pessoas de esquerda que acham que essa é que é a sua missão, é dizer que a esquerda não deve fazer o combate das palavras.
MV: Citando um artigo seu do Expresso, a propósito da recente polémica gerada em torno dos programas televisivos da manhã: “Não são as redes sociais que estão a destruir a nossa vida em comunidade. São empresas, com proprietários, administradores, diretores, “repórteres” e apresentadores com nomes.” Considera que até poderão ser as redes sociais a ajudar à manutenção da Democracia?
DO: Não. [risos] As redes sociais são um instrumento e devem ser usadas, por piores que sejam. Eu aqui estou para o provar, uso muito as redes sociais, sem qualquer ilusão sobre a sua capacidade. Eu acredito que a Democracia e a Igualdade precisam de uma coisa: empatia. E isso exige pessoas. As redes sociais tendem a puxar, não o melhor, mas o pior das pessoas, porque não há empatia. Por isso é que as pessoas são capazes de escrever barbaridades que não dizem. E não é só porque não há filtro, é porque não há pessoas. Do outro lado não está bem uma pessoa. Dois, eu não acredito em combates políticos sem organização. Sou tudo menos um espontâneo, um basista – não acredito em nada disso. No meio do caos basista, é sempre o maior demagogo que vence. Aliás, quem acredita na Democracia acredita na organização porque a Democracia é uma forma de organização. Muito menos acredito que a nossa liberdade e a nossa Democracia podem estar dependentes de duas multinacionais e dos seus algoritmos. E, portanto, limito-me a utilizar um instrumento dessas multinacionais para fazer o meu combate político. Não acho que o futuro da Democracia esteja ali. Acho que temos de estar ali. Ainda agora a Dilma Rousseff, numa entrevista no meu podcast, diz exactamente que a esquerda tem que ir para as redes sociais. Concordo, tem de estar em todo o lado. O que eu digo é, não venham dizer que o problema são as redes sociais. Porque a comunicação social e a mercantilização de todos os domínios da nossa vida, incluindo este, em que quanto pior for o produto mais ele vende, quanto mais toscamente o produzirmos – não no sentido técnico – mais ele vende, tem um papel fundamental. A vantagem das redes sociais é que ninguém é culpado, são as redes. Quando eu disse isso, foi precisamente que na TVI há proprietários, há administradores, há director de programas, há o director de informação, há o apresentador. Têm nomes. E um dos problemas de nós mandarmos para as redes sociais é que, quando a gente fala nas redes sociais, as pessoas concordam todas. Eu ponho uma coisa contra as redes sociais, nas redes sociais, e quase toda a gente concorda. Porque é o outro, não sou eu. É isto. É como o sistema. Pergunte a alguém se não é contra o sistema. Toda a gente é contra o sistema. Porque o sistema é aquilo com o qual eu não concordo. Portanto alguém que é contra o sistema tem essa enorme vantagem. Tem unanimidade até de banqueiros. Até os banqueiros são contra o sistema. Eu também sou contra a sistema. As redes sociais têm o mesmo problema. O que quero dizer aí é que há responsáveis, há pessoas, há empresas, que contribuem.
MV: E como surge a “paciência” para responder a muitos dos comentários? Acredita poder “apelar à sua razão” ou, pelo menos, de conseguir apelar à tolerância pela “opinião do outro”, já que as redes sociais são tão um espaço de ódio rápido?
DO: Deles? Não. (risos). Depende das pessoas com quem eu estou a falar. Há pessoas a quem eu respondo e, aí, respondo porque estou em diálogo. Acho que se uma pessoa está nas redes sociais, não está como se não estivesse – está lá. Eu não uso as redes sociais para coisas privadas. Tenho um perfil pessoal onde vou uma vez por ano. Só uso para aquilo. Umas pessoas é por deferência, são pessoas que se deram ao trabalho, acho que a coisa pode exigir resposta. As pessoas até mandam mais mensagem privada e eu até respondo mais, não respondo a todas, mas respondo a muitas. As pessoas que eu quero combater não estou a tentar convencê-las de nada [risos] ou é não deixar umas sem resposta e outras, que se acho que são idiotas é deixar, mesmo que não as insulte. Não levo nada a peito. Vou lá três vezes por dia, corro todos, vou banindo umas pessoas – acho que já vão em 6 mil. Nessa matéria, não acho que tenha dever nenhum de ter ninguém na minha página. Estou-me nas tintas se as pessoas dizem “ele baniu-me, não é democrático”; as pessoas têm direito a ter a sua página, não há nenhum direito constitucional de escreverem no meu espaço. Aí, as minhas regras são relativamente fáceis: qualquer pessoa que me escreva qualquer coisa que não me diria pessoalmente é banida. Não apago um comentário sem banir. Quando apago o comentário, a pessoa sai daquele espaço. Aí, sim, tem uma coisa pedagógica. Se olhar para os meus comentários eles podem ser muito chatos, mas não tem nada a ver com as coisas que se vêm nos comentários dos jornais. E não é porque as pessoas sejam melhores, é porque as que são piores eu apaguei. E má moeda, como dizia o Cavaco, expulsa a boa moeda. Ou seja, se tiver os primeiros cinco comentários de pessoas a insultar-me, já não haverão outros, já só haverão pessoas a insultar e pessoas a insultar as pessoas que insultaram. Aí tenho um coiso pedagógico. De resto, respondo porque acho que devo interagir com as pessoas. Não faz sentido pôr ali um texto e, depois, as pessoas deixam comentários e eu não ligo nenhuma. Portanto, como eu controlo os comentários – não controlo ao minuto – apago. É nesse processo em que estou a ver as coisas que vou respondendo às pessoas com uma razão especifica, outras sem razão nenhuma. As pessoas habituaram-se a escrever tudo. O comentário que eu devo deixar mais vezes é “leu o texto?”. São pessoas que leem os títulos e que acham que os outros devem ler, apesar de não se terem dado ao trabalho elas próprias de lerem. Isso é pedagógico, é dizer às pessoas que devem comentar o que leram. Acho que não é só das redes sociais, é da vida: as pessoas devem falar do que viram.
MFD: É lugar-comum afirmar a necessidade de aumentar a educação da sociedade portuguesa. Tem-se falado, recentemente, da gratuitidade das propinas. Mas, ainda que seja essencial o aumento das competências técnicas da generalidade da população, a maioria daqueles que chegam ao ensino superior, nos dias de hoje, principalmente em áreas não relacionadas com as humanidades, revelam um total desconhecimento, quando não mesmo desprezo, perante a cultura e a arte, e não sentem qualquer interesse por ela, descrevendo-a, até, como supérflua e como uma perda de tempo. Que papel deve ter o Estado para contrariar essa tendência?
DO: Devo dizer, acho que está muito melhor do que já foi. Aliás, acho que nós vivemos, em Portugal, com a ideia de que a nova geração lê menos, vê menos cinema, e os números dizem sempre o contrário. Há coisas que vêm menos, evidentemente, porque estão em crise elas próprias. Eu vou ao teatro e só vejo pessoal abaixo dos 30 anos. A malta com mais de 30 anos está em casa a dizer que já ninguém vai ao teatro. Portanto, isso sempre aconteceu e acho que não tem a ver propriamente com o ensino. Sociedades mais cultas não resolveram isso só especificamente com o ensino. [Resolveram] com o ensino, maior igualdade social, maior igualdade económica e, depois, promoção das actividades culturais em geral, ou seja, não é só na escola. Nós temos distritos onde não há uma única livraria. Claro que isto é uma pescadinha de rabo na boca. Para mim, a política é sobretudo política de promoção cultural, não é só nas escolas especificamente. Depois, acho algumas coisas sobre o ensino antes das faculdades. Sou contra a especialização no liceu. Acho que não devia haver áreas, acho que as pessoas deviam ter um tronco comum até ao fim de algumas disciplinas fundamentais e, depois, opções que iam construindo ao longo da vida, o que permitia a uma pessoa que vai para a engenharia, no meio, ter música, se quisesse e, sobretudo, as pessoas que vão para humanidades terem matemática. As pessoas de humanidades acham-se muitíssimo superiores, mas falta-lhes um instrumento fundamental para o pensamento abstracto que é a matemática. Isso nota-se, e nota-se em Portugal de uma forma extraordinária, porque as pessoas têm uma enorme incapacidade, incluindo as de humanidades, de argumentação, de construção lógica de um discurso e parte disso tem a ver com falta de formação matemática. E o contrário também é verdade. E isso tem a ver com o facto de nós olharmos para a escola secundária como uma preparação para uma vida profissional e não é.
MFD: E para o ensino universitário também…
DO: Sim. Não é para nada isso. Por isso é que se chama ensino obrigatório, porque é suposto aquilo dar o essencial e isso significa que as pessoas deviam ter história, língua estrangeira, português, matemática, ciências, mesmo que fosse uma coisa genérica que permita que eu não seja totalmente analfabeto no que toca, por exemplo, ao corpo humano. Ter um tronco fundamental e ter opções que lhes permitam não se especializarem, irem construindo e descobrindo o que querem. Nós temos um sistema de ensino que nos prepara para ser produtores. Que nos prepara, exactamente, para ser máquinas do capitalismo que produzem coisas. O que é, digamos, no mínimo um olhar redutor sobre para que é que nós ensinamos os nossos filhos – eles vão precisar disso, mas não só. Quando eu sei que os estudantes de economia podem acabar um curso sem nunca ter lido Marx ou Hayek, acho que o problema não tem só a ver sequer com a cultura, com as artes, porque desde que eu saiba umas fórmulas e aprendam, os que são de gestão, a gerir… Mas isso, também, vai para os médicos; um médico pode ser um cirurgião extraordinário e pouco mais do que analfabeto do ponto de vista cultural. Não é só o ensino, tem também a ver com o facto de o ensino considerar que não tem de dar bases, não só, para ser-se trabalhador. De resto, vão haver sempre pessoas ignorantes e cultas, isso não há nada a fazer. E depois a lógica da competição para chegar à faculdade está melhor – o meu tempo era mais competitivo porque as médias eram mais altas, havia muito menos vagas e mais jovens do que há agora. Mas, nas faculdades, o que ensinam é que aquilo é para ser como uma empresa. Claro que as pessoas que estão em germânicas suponho que não se estão a matar vivas para ver quem é que vai para o desemprego mais cedo [risos], mas, nos cursos mais competitivos, o apelo é para que não se interessem por outra coisa que não seja a sua carreira, o que eu acho que, ainda por cima, é um apelo estúpido que dá maus profissionais. Do ponto de vista mesmo das empresas, é um mau raciocínio que dá piores profissionais, pessoas com menos capacidade para aprender, para se adaptarem, para evoluírem. Na minha área falo: acho que foi péssimo para o jornalismo ter havido cursos de jornalismo e de comunicação social. Péssimo! Acho que havia um curso profissional que era ótimo, que durava meio ano, se não me engano. Chega e sobra para aprender os rudimentos do jornalismo. O que nós precisávamos era de ter redações com pessoas formadas em direito, em filosofia, em ciências, que fossem elas, no conjunto das redações, inteligentes, com capacidade de cruzar conhecimentos e onde saíam menos asneiras. Como toda a gente se forma nessa actividade generalista, que é o jornalismo, toda a gente sabe o mesmo, que é pouco de nada. É isto, é a ideia de que devíamos preparar os jornalistas para uma profissão em vez de termos pessoas. O jornalismo é uma evidência. O que tem de se aprender no jornalismo aprende-se em seis meses e, depois, aprende-se a trabalhar. Não há assim tanta ciência na coisa.
MV: Queria focar, um pouco, o Processo de Bolonha que, ao ter encurtado os ciclos, parece que ensina os alunos, simplesmente, a “meter” matéria na cabeça e, depois, a debitá-la num exame, não nos dando, sequer, tempo para pensarmos e percebermos o que é que está ali em causa. Além disso, existe, também, uma pressão para o aproveitamento escolar, que desvia os alunos de qualquer coisa que eles possam fazer “extra estudos”. De que forma é que o Processo de Bolonha tem peso nisto e no próprio envolvimento dos jovens na sociedade?
DO: Bolonha tem uma coisa positiva (que eu saiba, também não sou um entendido), que é a possibilidade dos créditos, que permitiu que, se fosse aprofundado, como, por exemplo, acontece nos estudos gerais, pudéssemos, até, ter coisas bastante interessantes e que vão no sentido inverso a esse, que é eu ter uma coisa de ciências, uma coisa de arte. Eu crio o meu percurso e isso eu acho uma coisa interessante, que podia ser muito mais explorada e que Bolonha abriu como possibilidade. O grande problema de Bolonha é que foi a oportunidade de um grande negócio. Quando eu passo uma licenciatura para três anos, desvalorizo a licenciatura, depois crio um mestrado que passa a ser a verdadeira licenciatura, e, no mestrado, eu posso cobrar as propinas que quiser. Tirando aquela parte que eu acho que é interessante, acho que isto resume o objetivo de Bolonha, que é tornar o ensino superior mais rentável do ponto de vista financeiro e voltar a construir uma desigualdade que tínhamos esbatido. Como o ensino superior público era gratuito até à fase da licenciatura, a não ser para quem quisesse seguir a carreira académica, a licenciatura chegava. Portanto, de repente, ficámos num pé de igualdade, voltámos outra vez à estaca zero, porque quem não tem dinheiro para fazer um mestrado fica pela licenciatura, quem tem dinheiro tem a verdadeira licenciatura, que é o mestrado. Acho que este é o principal problema. Eu não sei se a universidade alguma vez serviu para pensar. A Natália Correia dizia que a universidade era o serviço militar obrigatório do conhecimento. Eu sei a frustração que senti, porque nós imaginamos isso, exactamente, que a universidade é para pensar. Eu não sei se o ensino é para pensar. (risos)
MV: Mas não deveria ser?
DO: Sim, tem que ter um espaço, mas há sempre umas pessoas que pensam mais do que outras. E a função do ensino, sobretudo do ensino obrigatório, é uma função niveladora. O que significa que as pessoas com mais brilho – não nivela só para cima, também nivela para baixo – não é o sítio onde vão encontrar mais interesse em pensar. Eu aí penso menos na universidade e mais no início, mesmo. Claro que há correntes de ensino mais interessantes e outras mais desinteressantes; há umas que apostam desde o início na responsabilização, no questionamento, e isso existe, mas tem de se começar no princípio. Quantas pessoas é que, na realidade, quando vão para uma aula, querem um professor que as ponha a questionar e a pensar? Tive um professor que dizia “deixem de tomar notas que isto é mesmo importante”. Nós estamos sempre a tentar atirar para a escola os milagres todos, a ver se a escola nos resolvia os problemas todos, fechávamos já com um cidadão perfeitinho e a sociedade seria muito melhor e isso não acontece. A escola tem uma função niveladora. Pode melhorar para ser niveladora e diferenciadora no sentido de não castrar as pessoas mais criativas, mas é sempre muito limitada porque é um ensino colectivo, várias pessoas, com o mesmo programa que não está pensado para cada uma daquelas pessoas. Há coisas fora ou dentro da escola que têm que acontecer. Grupos de teatro e de debate são mais importantes do que o currículo. Ou as lutas estudantis. Aprende-se imenso nas lutas estudantis, a faltar às aulas. Aprende-se mais do que, muitas vezes, nas aulas. A escola será sempre qualquer coisa de opressor e é inevitável que seja. Ela é um espaço de conformação e tem que existir. Não podemos querer uma escola que trabalhe para a igualdade e, ao mesmo tempo, esteja atenta a todas a diferenças individuais de cada um porque não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A questão é se, depois, há escapes, há espaços. Quando eu, por exemplo, defendo um tronco comum e depois opções, é, exactamente, haver qualquer coisa que cria alguma homogeneidade de conhecimento e depois outra que permite espaço de liberdade. Agora, os alunos pensarem ou não pensarem depende muito pouco do sistema. Depende dos professores, de cada um deles. Há professores que não gostam que os alunos pensam e isso percebe-se porque eles próprios não pensam muito, portanto, não querem um aluno que pense muito. E isso não é só com os professores, é assim na vida. Há chefes que não gostam que as pessoas pensem muito porque eles próprios não pensam muito e assusta-os ver pessoas que pensam. E há professores mais seguros que gostam disso e exploram isso. E depende muito mais disso do que de qualquer outra coisa que a gente imagine que o sistema devia ser. Haverão sempre pessoas seguras e inseguras, e onde há pessoas inseguras o pensamento não floresce.
MFD: Tem usado o seu humanismo para se opor, de certa maneira, à proibição das touradas, referindo que é preciso, e bem, não esquecer que tantos seres humanos têm os seus direitos por satisfazer. Mas requer o humanismo crueldade animal?
DO: Não. Eu tento dividir dois debates que são muito difíceis de separar, que é o debate sobre a tourada e o debate sobre a questão do animalismo, ou o que lhe queiram chamar. No debate sobre a tourada, a minha argumentação não tem nada a ver com o outro e é onde eu debato num território onde estou perfeitamente sujeito à critica – nos outros também estou, evidentemente, mas não é isso –, onde não acho que me dividam, sobre as pessoas que são anti tourada, nada de fundamental do ponto de vista civilizacional. A razão porque eu defendo a tourada é que eu sei que um dia vai acabar, porque corresponde a um mundo que está a desaparecer – eu defendo porque gosto, foi assim que começou, depois é que nasce a argumentação. Defendo porque considero que a tourada, já utilizei esta expressão várias vezes, é uma arqueologia do tempo em que o homem tinha uma relação direta com a natureza e sabia que dependia dela para viver. Acho que celebrar a morte é celebrar a vida e acho que um dos graves problemas da civilização ocidental foi não saber celebrar a morte e, portanto, tem dificuldade em celebrar a vida. Ou seja, eu não tenho uma visão fofinha do homem com a natureza, isso não existe. A natureza é hostil e o homem sobreviveu e tornou-se a espécie dominante e eu, ao contrário da maioria das pessoas, acho que isso é bom, não acho que isso seja mau. Eu não tenho nenhum sentido de culpa por ser humano, pelo contrário. Eu não sou religioso, por isso acho que a humanidade é extraordinária. É o único ser vivo capaz da poesia, do amor. As pessoas partem do princípio que, ao vencermos os nossos institutos, tornamo-nos cruéis. É o contrário, ao vencermos os nossos instintos nós somos o animal menos cruel que existe. Somos o único, aliás, que tem consciência do que é isso da crueldade. O meu gato, agora não que não temos jardim, entretinha-se a matar um melro devagarinho por mero prazer. É uma arqueologia do tempo em que o homem sabia que dependia da natureza para viver e, desse ponto de vista, é o oposto da industrialização da natureza e da industrialização da morte dos animais que, na realidade, é o que existe esmagadoramente. Um dos meus maiores espantos é ver a concentração na questão da tourada, num animal que vive 5 anos livre e depois é morto em arena – ou não, em Portugal não é morto. Mesmo que as pessoas não gostem e achem horrível, quando, apesar de tudo, aquilo é a relação mais saudável que um homem pode ter com a natureza em comparação com animais que ficam imóveis o mínimo de tempo possível, cheios de hormonas, para serem abatidos e comidos. E eu não acho mal, obrigatoriamente, por uma razão: se a humanidade, para sobreviver, precisar de comer assim, terá que comer assim, terá que ser assim. A sobrevivência dos humanos está à frente.
Isto é a minha questão com a tourada e acho absolutamente legítima a crítica de dizer que é um sofrimento desnecessário, que essa arqueologia não merece esse sofrimento. Acho que é um debate ponderado. Eu gosto de tourada, mas não é uma bandeira fundamental da minha vida. Sofrem mais as pessoas por eu gostar de tourada do que eu por elas combaterem a tourada, não me indigno, nem acho, ao contrário de Manuel Alegre, que venham daí Bolsonaros e coisas do género. Acho que é um combate absolutamente legítimo, não é o meu, gosto de touradas. Tentarei que não acabe. Depois, há um lado que tem a ver com a arrogância do mundo urbano em relação ao mundo rural. O que me irrita mais no combate à tourada, mais do que a vontade de acabar com a tourada, é a absoluta ignorância da maior parte das pessoas que fala de tourada sobre ela. A maioria das pessoas dizem coisas absolutamente absurdas sobre o que leva as pessoas à tourada, que elas estão ali a ter prazer com o sofrimento dos animais. Isto tem a ver com o vício com que discutimos. Nós precisamos, para discutir, de acreditar que o outro se move por sentimentos de natureza diferente da nossa. Ninguém vai à tourada para ver o sofrimento do animal, posso mesmo dizer ninguém, a tourada não é isso. Pode ser isso para quem não gosta, para quem gosta não é isso que ela é. Aliás, por isso é que as pessoas são vaiadas se causam sofrimento ao animal que, na lógica daquele momento, é desnecessário, é pouco leal, etc. Ninguém vai ver tourada para ver o sofrimento do animal. Aqui, admito que, se nascesse daqui a 40 anos, olharia e não concordaria com o que penso, se não tivesse lido o Hemingway quando era pequeno, se não tivesse começado a gostar de tourada por razões estéticas e, depois, ganhei-lhe o gosto – coisa que é fácil, devo dizer, aviso que é fácil –, provavelmente não pensaria assim. Eu também sou fruto das minhas circunstâncias e a contestação da tourada nunca foi suficientemente forte, pelo menos no meu íntimo, para fazer um esforço para abandonar, coisa que poderia fazer, um gosto que tenho. Nunca teve essa força suficiente para mim.
Isto é a primeira coisa. Outra coisa muito diferente, e eu essa evito, apesar de perceber que o queiram juntar muitas vezes, porque eles são um debate de natureza diferente, que tem a ver com o animalismo. Enquanto considero que o combate contra a tourada é um combate que pode mover muitas pessoas com valores iguais aos meus, o animalismo é um corte maior do que qualquer outro que eu possa imaginar, do ponto de vista do olhar do mundo. A ideia de que não há uma excepcionalidade humana – nós não somos deus, portanto, olhamos do ponto de vista dos humanos e isso exige-nos alguma humildade –, é uma ideia que põe em causa quase todo os adquiridos que temos como fundamentais na nossa civilização, nem sequer estou a falar na democracia. A ideia de que toda a vida humana é única e irrepetível porque carrega em si a liberdade de um indivíduo, pelo menos em potência, que não é extensível aos animais porque, se não, não os podemos matar. Eu tenho um ponto de vista absoluto, na medida em que ele pode ser absoluto. Isto resume-se no choque que as pessoas tiveram quando eu escrevi isto (foi, talvez, a frase mais repetida contra mim, quando me parece que devia ser usada a meu favor): a vida de Hitler vale mais do que a vida da minha cadela. As pessoas viram isto como uma coisa horrível e eu, por acaso, acho isto uma coisa de uma grande generosidade. Porque o valor da vida do ser humano não depende da sua qualidade, é um valor absoluto, depende do facto de cada indivíduo ser irrepetível por mais horrendo que seja. Sempre que se tenta estender isso – e não é por acaso – ao resto dos animais, começamos a reduzir a importância que damos à vida humana. Grande parte da nossa construção moral e ética tem uma base humanista. Sem ela isto vai ser um bocado terrível. O discurso animalista é evidentemente anti-humanista, e não estou só a brincar com as palavras; ele põe em causa os fundamentos da ideia de uma excepcionalidade e centralidade do ser humano, num discurso que só pode, aliás, ser religioso, apesar de o humanismo cristão ser religioso. Um discurso que diga que o homem não é o centro, quer dizer que se põe noutro lugar qualquer que não é o do homem. Qual é o outro lugar qualquer que não é o do homem? É o do papagaio? É o de Deus. O homem não é o centro de todas as coisas porque seja, ponto. É, porque é o homem que constrói o discurso, que fala de todas as coisas, somos nós que falamos disso, somos nós que temos um discurso crítico sobre isso. E não nos expomos acima de nós, não temos essa capacidade, é uma enorme arrogância pensar que temos.
Portanto, desse ponto de vista, eu aceito um discurso e há um discurso, até, contra a tourada – o Francisco Assis escreveu um texto muitíssimo interessante, que não é a minha posição, a dizer que a sua principal crítica à tourada é humanista, ou seja, a dizer que a tourada promove uma violência que não é, apenas, em relação aos animais, que tem, do ponto de vista simbólico, uma importância para os humanos e eu sou muito sensível a esse discurso, apesar de achar que não é verdade em relação a touradas, mas é indiferente. Agora, porque é que a mim não me passa pela cabeça matar um cão, a não ser por “eutanásia”, e não tenho nenhum problema em matar um rato? Há gente que tenta falar da consciência e do sistema nervoso e não tem nada a ver com isso, tem a ver com a proximidade em relação ao homem, ponto. Mais uma vez é antropocentrismo puro. Por isso é que alguns asiáticos matam cães, porque não têm essa proximidade. Basicamente resume-se a isso. E, portanto, o meu problema com os animalistas é que começa com uma coisa que parece boazinha mas – aliás, como já se começa a ver – rapidamente se vai transformar numa outra coisa, e já está a transformar-se, que é num discurso que não está totalmente preso e cimentado. E, depois, as pessoas dizem “mas tu podes gostar de animais”, com certeza que podes gostar de animais e seres humanos, o debate não é esse. O debate é quais são as nossas convicções que nos levam a dizer que, por exemplo, eu sou dono de um cão. Não posso ser dono de uma pessoa, e não é por acaso. O cão pode viver sem mim, tem a ver, exactamente, com a dignidade específica e única que damos à vida humana e eu nisso sou absolutamente intransigente. Eu sou contra a pena de morte em qualquer caso; quando as pessoas dizem “genocídio” – sou contra a pena de morte em qualquer caso. A não ser que ela seja a única forma de evitar muitas outras mortes, isso é outra coisa, estou a falar de pena de morte como punição. E, portanto, sim, eu digo que a vida do Hitler vale mais do que a vida da minha cadela, e vocês não me viram com a minha cadela, mas eu sou bastante obcecado. E as pessoas dizem “mas como é que podes dizer isso?”, mas eu não estou a falar de mim, não estou a dizer que a vida do Hitler vale mais para mim, do que a vida da minha cadela, obviamente que, para mim, a vida da minha cadela valeria muito mais do que a do Breivik, que está vivo. O problema é exactamente esse, é explicar às pessoas que o valor da vida dos outros não depende dos sentimentos delas em relação aos outros. Não é aí que radica o valor da sua vida porque, se não, a vida de um branco acaba a valer mais do que a vida de um negro para um branco, ou a vida de um português [mais] do que a de um estrangeiro. A vida das pessoas tem um valor intrínseco, coisa que não acontece com os animais, pelo menos para nós. Claro que, se Deus existir, para ele, ele é Deus de todos os seres vivos na terra, mas para nós não. Nem pode ter.
MV: Citando a abertura do seu podcast “Quase sempre sobre política, às vezes sobre coisas realmente interessantes”, que coisas define como “realmente interessantes”? Isso poderá estar ligado com um Daniel que não fala de política, supondo que essa versão de si existe?
DO: Existe (risos). Ouça, eu não quero que as pessoas me conheçam porque, no dia em que as pessoas – as pessoas em geral, que eu não conheço de lado nenhum – me conhecerem, fico numa situação desconfortável, que é passar a ter de existir para as pessoas, ter que representar um papel qualquer. Acho que a exibição da intimidade em público ou é manipulação ou é pornografia, e quando é manipulação é melhor, quando é pornografia é pior. Não tenho nenhum interesse que as pessoas conheçam um verdadeiro Daniel, nenhum, não quero mesmo. Não quero que me conheçam porque eu quero continuar a ser a pessoa que sou, com as minhas contradições. Não quero ser bonzinho porque, depois, as pessoas têm imensa necessidade de serem boazinhas, de mostrarem que gostam muito de crianças, que gostam muito de animais, que só têm bons sentimentos e, de repente, tornam-se um pasticho, são um boneco de si próprias, e eu não quero isso. Existo no espaço público porque falo de política, ponto. Às vezes falo de outras coisas, acontece, mas têm, de alguma forma, ligação à política e, às vezes, falo de futebol. Por exemplo, só escrevo sobre livros ou sobre filmes se eles têm alguma ligação com aquilo que eu falo em público, com política, o que não quer dizer que eu goste mais de filmes políticos. Eu não tenho é nada para dizer em público sobre filmes que não têm alguma ligação à política – estou a falar de política no sentido muitíssimo lato das coisas que eu escrevo. Portanto, eu mesmo quando digo aí “coisas mais interessantes”, que é mais uma piada do que outra coisa, mesmo as outras coisas mais interessantes, de alguma forma, ligam-se à política – o politicamente correcto… Fiz um [programa do podcast] sobre futebol, foi uma excepção com o presidente do Sporting, mas, mesmo isso, é quase política no sentido das coisas que falámos. Não tenho nada contra quem o faz. Eu não quero ter um boneco privado-público. Quando as pessoas me dizem “você é mais simpático do que parece na televisão”, claro, eu não quero parecer simpático na televisão porque não faço nenhuma questão que gostem de mim. Estou no espaço público para defender posições políticas, fazer análise política e pelo valor das minhas ideias. Claro que o tom com que se diz, a maneira como se diz, são mais eficazes, menos eficazes. Não faço nenhuma questão que as pessoas simpatizem comigo – as pessoas que eu não conheço. E, aliás, não sei se se nota, nenhuma (risos). Ser amado por anónimos não faz parte dos meus objetivos. Dou imensa importância à opinião que as pessoas têm sobre mim que eu conheço, que são do meu círculo, não têm de ser o meu círculo íntimo, mas o círculo das pessoas com quem eu trabalho, com quem eu estou, que lidam com o meu lado pessoal. Nisso dou muita importância às opiniões, não me estou nas tintas. Qualquer pessoa que está no espaço público, nas televisões, sabe que as pessoas acham maravilhosas pessoas que são, na sua vida, autênticos trastes e acham horríveis pessoas que são maravilhosas só pelo retrato que elas passam. Há pessoas que são muito boazinhas que quase assustam de calculismo, de maldade, etc. Eu não jogo esse jogo, nem um nem outro. É mesmo relativamente indiferente o que as pessoas acham sobre mim. Não sobre mim nas coisas que eu faço. Se as pessoas acham que sou um oportunista político, isso é uma coisa que fico irritado porque falo de política e isso faz parte do que eu sou publicamente. Agora se as pessoas acham que eu sou bonzinho, mauzinho, má pessoa, boa pessoa, não me afecta mesmo nada porque as pessoas estão a falar de uma imagem que vêm na televisão e de textos que leem. Claro que tem uma correlação comigo, mas nós somos tão contraditórios. Sobretudo, o criar uma personagem pública-pessoal é sempre uma grande aldrabice porque nós somos muito complicados, muito contraditórios, somos umas bestas e pessoas ótimas e excelentes e tudo ao mesmo tempo. E, quando nós estamos a fazer esse retrato para o público, temos de manter, é isto que nós decidimos e que queremos que as pessoas pensem sobre mim. O ideal para mim, o mais fácil, é não querer saber o que as pessoas pensam sobre mim. Quero saber o que pensam sobre as minhas ideias, sobre a coerência, a construção dos meus raciocínios. Gosto, não me importo, não deve acontecer muitas vezes, que as minhas ideias sejam inspiradoras. Agora, eu, inspirador? Não quero essa responsabilidade.
Entrevista realizada por Marta Vicente e Miguel Fernandes Duarte.