Dellafuente encara a mortalidade e a fama em Descanso en Poder
As fronteiras entre géneros musicais esbatem-se cada vez mais. Há uma maior imiscuição de artistas em meios nos quais normalmente não seriam considerados: veja-se o cruzamento de artistas supostamente alternativos (o que significa isso hoje em dia?) para circuitos mais mainstream ou a inclusão de artistas como Bad Bunny, C. Tangana ou J Balvin no cartaz do santuário hipster (“o que significa isso hoje em dia?”, take 2) conhecido como NOS Primavera Sound. Foquemo-nos no segundo caso de crossover: claro que isto não é uma regra, mas a maioria dos artistas que conseguiram fazê-lo veio do mundo latino, quiçá aproveitando a porta que um dos casos mais bem sucedidos deixou aberta, a bendita ROSALÍA — que até já colaborou com os três artistas mencionados neste parágrafo. Sempre existiu um recanto especial para a música latina no top 40, pelo que o flirt entre música latina e o mundo alternativo já deveria estar mais estabelecido por esta altura. No entanto, verifica-se uma tendência anglo-cêntrica nesse sentido.
Dito isto, após nos desprendermos destes preconceitos, torna-se bem melhor desfrutar dos prazeres de um álbum como este Descanso en Poder. Pablo Enoc Bayo, mais conhecido como Dellafuente, é mais um dos muitos artistas latinos a quebrar barreiras de género, ao misturar os populares trap, hip hop ou reggaeton com uma sensibilidade mais alternativa e poética. Já este ano lançou o Ep.01-Causa, em conjunto com a banda de rock andaluz Taifa Yallah, num claro exemplo de que as caixinhas em que gostamos de colocar os artistas ou as canções não deveriam importar tanto como muitas vezes acontece. Ao longo de 27 minutos, Dellafuente explora diferentes sonoridades em Descanso en Poder, ao mesmo tempo que mantém uma base coesa.
“Toco el Cielo” transporta-nos para o flamenco e a música cigana através do refrão de Maka, numa canção difícil e acutilante sobre as armadilhas da fama. Custa a entrar, mas há algo na sua honestidade que é realmente afectante. Linhas como “Muchos primos / muy pocos hermanos / Puñales en la espalda / besitos en las manos” salientam a falsidade que permeia o mundo da música, mas no fundo o que importa é a libertação dada pelos fãs (“Mil me quieren ver sufrir, otros mil me hacen volar / Es verdad, toco el cielo”). Aliás, a liberdade é um tema bem presente nos temas mais pessoais do álbum. Dellafuente acredita que a mesma é um produto das suas próprias escolhas, mas não sem reconhecer as influências negativas que o rodeiam. Em “Libertad y Salud”, o artista regojiza-se por ter, lá está, liberdade e saúde, mas não sem deixar a sugestão de que o Diabo se faz mostrar ocasionalmente.
O trap aparentemente simples de “La Recomellía” esconde uma das letras mais profundas e ricas do disco, na qual o rapper lista alguns dos seus objectivos de vida— trazer dinheiro para casa, ter uma vida estável, ver a sua mãe feliz, ter quem assegure a sua herança caso morra — certamente comuns a muitos de nós. Depois disso, Dellafuente passa por desconsiderar aqueles que duvidavam de si, até porque ele próprio estava nessa lista. Apesar disso, depois de uma letra tão pessoal, deixa entrever a sua persona pouco pública, dizendo que não tem nada a contar a repórteres e que “Todo lo que es relevante / Ya lo digo en las canciones”. É de admirar essa sua concisão, especialmente quando a expressa em canções com pouco mais de dois minutos.
Mesmo em “Nubes”, talvez não tão interessante em termos musicais, há toda uma poesia a admirar. A história é contada do ponto de vista de alguém que teve uma boa vida (“Los veo a todos desde las nubes / Que bonito fue lo que tuve”) e que agora descansa não em paz, mas sim em poder. Pablo imagina uma vida em que não faltou nada, quanto mais depois de a mesma terminar, dispondo-se depois a listar imagens bonitas da sua imagem do que será o paraíso. São especialmente tocantes os segmentos em que espera ver aí a sua avó ou que por lá cheire a hortelã, numa referência tão vívida e simples que chega a ser desarmante.
Mas os prazeres de Descanso en Poder podem ser mais imediatos, como no reggaeton de “Yalo Yale” económica e eficazmente produzido, com uns sintetizadores deliciosos que compensam a sua simplicidade. O mesmo se reencontra mais à frente, no claro hit “Palante y Patrás” e no seu refrão que se agita e ecoa como o tambor de uma máquina de lavar roupa, à falta de uma melhor comparação para a batida infecciosa.
Neste primeiro álbum para uma grande editora, Dellafuente aparenta estar em controlo da sua arte e já mais à frente do que aquilo que se esperaria nesta fase da sua carreira. Olhando de frente para a mortalidade e para o que a fama lhe poderá trazer sem receios, criou um disco temerário e que prova que o melhor é mesmo exercer a nossa liberdade enquanto podemos.