Desabituar Flamignon
Quando saiu de casa, Falmignon olhou para o céu. As nuvens pareciam um bando de miúdos preguiçosos deitados sobre a relva, de vez em quando rebolando porque miúdos, falando uns com os outros à distância com a face colada às agulhas verdes que nascem do chão. O dia estava bom para caminhar, o calor do sol era compensado por uma brisa fresca de início de outono. O som das folhas das árvores e os guinchos das gaivotas que, de vez em quando, trazem aos mais distraídos ouvidos a evidência de que Lisboa tem um rio que se mistura com o mar. Com uma camisa sem gola, calções claros, sandálias, os óculos redondos e a câmara fotográfica presa ao ombro por uma tira de couro, Flamignon começou a caminhada em Campo de Ourique, onde vive e sempre viveu; cruzou a Estrela, chegou ao Rato, parou para um café e um chocolate no Príncipe Real. Não raras vezes ocupava assim o dia, a caminhar. O café onde parou é pequeno, quem chega fica ao balcão, ou leva a chávena para a rua. Há apenas duas mesas, com duas cadeiras cada uma. No inverno é o caos, mas ainda correm os ares do verão tardio, e ninguém parece ficar incomodado com os encontrões. Nestas circunstâncias, o nosso amigo Flamignon não consegue esconder o desconforto – e neste momento pensa na economia de movimentos que precisará de praticar para beber o café e comer o chocolate.
– Quer sentar?
A voz temperada por um sotaque sul-americano vinha de um homem de meia idade, com os cabelos cinzentos e a pele castanha. Flamignon olhou-o cheio de confusão. Um latino até na roupa – de camisa estampada e um panamá de fazer inveja.
– Want to sit?
De facto, o nosso companheiro poderia ser facilmente confundido com um turista – do nome à indumentária, que uma pessoa não se livra do significado que têm as coisas – e talvez a roupa diga mais verdades que o bilhete de identidade. A realidade é que Flamignon nasceu em Lisboa, filho de mãe francesa e pai suíço. Petit Flamignon, o mundo é tua casa.
– Sou português, obrigado.
– Ah, desculpa. Como não respondeu… Quer sentar?
– Obrigado.
Sentou-se o rapaz. Ainda não o notámos, mas Flamignon é um jovem, ainda: estará quase a chegar aos trinta anos.
– De férias?
– Não, não. Vivo aqui perto. Você?
– Longe.
– Mas está de férias?
– Mais ou menos. Vim procurar o lugar onde nasceu meu pai de coração.
– Encontrou?
– Conheci a família de meu pai, hoje. Uma mulher da minha geração, filha do irmão de meu pai. Talvez me mude – talvez, se as escolas forem boas para o moleque. Vocês falam moleque?
– Garoto.
– Garoto?
– Miúdo…
– Miúdo. Garoto. Miúdo.
– Porque veio à procura da terra do seu pai?
– Falava muito desses lugares. Quis ver com meus próprios olhos. Você… – aponta para a câmara – É o seu trabalho?
– Não. Eu estudo. E o senhor, o que faz?
– Tenho, em São Paulo, uma pequena oficina de moto.
Este homem, com quem agora Flamignon trocava as poucas palavras transcritas, tinha em si a gravidade e a serenidade de todos os pais. Cada movimento seu, cada palavra, tudo parecia carregado de uma profunda consciência do mundo. Sentindo-se órfão, era este homem que se devia procurar: Hélio, o pai de todo o mundo.
– Meu olhar, Flamignon, está no passado. Visito Lisboa e não a vejo como você, que está com os olhos voltados para o futuro. Eu procuro pegadas inúteis, sabe; você está procurando sapatos que possa calçar. Mesmo se lhe digo que posso vir a morar aqui, não é senão para me sentir mais próximo das memórias de meu pai. A idade…
Um telefone toca, mata a curiosidade de Flamignon, é a mulher de Hélio: ela e o filho de ambos estão à espera no jardim. O homem olha o rapaz ainda com o telefone encostado à cara, no olhar lendo-se o lamento de ter de ir. Levanta-se, despede-se com um aperto de mão, que seria bom tomarem um refresco, a conversa era interessante. Pediu que Flamignon não se esquecesse que, enquanto cá estivesse, todos os dias, pelas cinco da tarde, tomaria ali o café.
Que caminhos inesperados toma o dia, pensou para os seus botões Flamignon. Este encontro havia de povoar a sua memória durante uns bons anos, talvez a vida toda – uma pessoa não sabe prever a monotonia que, chegados ao fim percebemos, inundou os nossos dias. Hélio procura pegadas, eu procuro sapatos para usar. De alguma forma, esta frase parecia conter em si uma belíssima definição de Flamignon, que se anunciou estudante mesmo tendo terminado o curso de Filosofia há anos. A falta de barba, e um cartão da faculdade com data de emissão mas sem data de validade fazia com que muitas vezes repetisse a mentira – especialmente em museus. Ele, que não conseguiu corresponder às suas expectativas e se via filósofo que trabalha num quiosque em part-time. Flamignon levantou-se com um suspiro e saiu para a rua, continuou o seu caminho: desceu ao miradouro do Adamastor, depois ao Largo Camões, chegou ao Cais do Sodré. Enquanto caminhava tentava decifrar o encontro com Hélio – que sabia de onde vinha, quais as suas origens, o seu passado, tinha, apesar de tudo, planos para o futuro e coragem suficiente para abandonar a oficina só para habitar a memória do seu pai de coração. Perguntava-se de onde era ele-próprio, Flamignon, e repetia o seu nome completo vezes sem conta. Agora tinha o Tejo ali à frente. Queria descalçar os sapatos e pisar a água, mas é Lisboa, há os prédios, as ruas, a gente, os carros, o barco, a ponte. De repente, Flamignon recuperou uma imagem: está na faculdade, à sua frente a sua namorada-que-já-não-é. Estão a falar de Bergman, tinham visto Mónica e o Desejo. O olhar de Mónica, dizia Flamignon; és tão snob, respondia a rapariga. Beijavam-se e deixavam-se estar. Tinha tempo para filosofar quando saísse da faculdade, não naquele dia, no final de tudo – quando estivesse a dar conferências em que o tema é o título do seu último livro publicado. O dia está chuvoso, a namorada-que-já-não-é tem uma gabardina beije, o cabelo liso, as mãos macias. Ah, Flamignon, abre os olhos. Abre os olhos, que a imagem, se verdade contém, é verdade passada. Os livros no colo, e as mãos umas nas outras. Há o cinzento das paredes da faculdade, os colegas que passam, o alfarrabista, portas que se fecham.
Flamignon abre os olhos. Tem o rio à frente, mas não o reconhece. Tenta nomeá-lo, mas a língua, os lábios, o pescoço… Tudo parece preso, inútil. Não há palavra. Neste momento, só consegue pensar na namorada-que-já-não-é, e nas suas mãos macias. Que diabo, havia muito mais que as mãos macias – coisas que ajudariam Flamignon a esquecer a rapariga e a lembrar-se do nome do rio que passa nesta cidade. Melhor será voltar para casa. Mas, voltando-se, uma tontura: parece-lhe um labirinto o passeio. Tantos anos a fazer este percurso – desde que terminou o curso, quase diariamente – para que tudo se varra num instante.
– Need help?
– Não me lembro.
Flamignon está preso no lugar de uma memória. Conseguiria desenhar com pormenor as mãos que acaricia numa evocação, mas não consegue nomear o presente. Se lhe perguntam como se chama, Flamignon hesita. A custo consegue chegar ao quiosque do Cais, pede uma limonada, senta-se. Tenta recuperar os sentidos – que eram os sentidos que lhe falhavam. Mas em vão. Não consegue senão pensar nas mãos com verniz preto, nos lábios sem batom. Uma gaivota pousa numa mesa ao lado, se ao menos ela pudesse perceber Flamignon, dizer-lhe: meu rapaz, não te preocupes, o rio que banha Lisboa é o rio Tejo, vai lá à tua vida. Flamignon dá goles rápidos na limonada, e o gelo faz-lhe agudo um dente, enrijece-lhe o pescoço, ele empurra com força dentes contra dentes, fecha os olhos com a dor. Quando os abre, Hélio está sentado à sua frente. Parece ainda mais sereno que antes, com um cocktail na mão, a sua camisa com palmeiras e o panamá sobre as orelhas.
– Vejo que está baralhado.
– Não me lembro de nada.
– Lembrou de mim.
– Mas não me lembro de nada. Tenho um dia, um momento que não me deixa lembrar nada.
– Espere, Flamignon. Estamos sempre assim, tentando olhar bem longe. É de memória que se faz o presente, lembramos coisas úteis como o caminho para casa, os carros estacionados na rua, as palavras… E coisas que são como um luxo, uma vez que não nos servem de nada no momento presente: a nossa antiga namorada, por exemplo. É assim mesmo, meu amigo. Fez bem pedir limonada, está boa?
– Sim, acho que sim…
– Deixa provar?
– Não vejo como, mas…
– Ah! Está boa, está boa. Não é fácil acertar nisso, não. – e, voltando-se para trás, acena uma aprovação para o rapaz que está no quiosque. – Se ao menos de esquecimento se fizesse o presente, não é, meu filho? Vá… Beba mais um gole, se refresque. E, viu como tempo cura?, o rio se chama Tejo.
Flamignon conseguiu lembrar-se de tudo. Voltou para casa, passou um tempo debruçado sobre o computador, a escrever aquilo que imaginou poder vir a tornar-se o seu primeiro livro. Chamou-lhe, provisoriamente, A Força do Desábito. Acabou por não usar a câmara hoje, outra forma de registo a substitui.
No dia seguinte, depois do quiosque, voltou para casa a pé. Lá estava a mãe e queimar cigarros na sala de estar – mas a ela voltaremos noutra ocasião. Jantou, e pôs-se a ler. Passou o dia com a imagem da cara de Hélio como marca de água sobre tudo o que via, mas só à noite se lembrou de que às cinco, ele deve ter estado pelo Príncipe Real. Com a impressão de que, mesmo que Hélio deixasse de existir estava garantido o diálogo, talvez amanhã ele ainda não se tenha ido embora, e Flamignon não se esquecesse de ir ao café.
Texto de Guilherme Gomes