Dizer adeus à vida

por Sara Rathenau,    25 Agosto, 2020
Dizer adeus à vida
Fotografia de Lily Banse / Unsplash
PUB

Sara Rathenau, a autora deste artigo, é Mestre em Psicologia Clínica e curiosa activa em Ciências Sociais e da Saúde.

“O suicídio pode ser considerado um problema de saúde pública visto que afecta muitos indivíduos de forma directa ou indirecta” (Baptista e Borges, 2005 disponível aqui).

Dizer adeus à vida é um convite a pensar sobre o suicídio através de um olhar sobre o colectivo e a reflectir sobre história e notícia. Acredito que todos desempenhamos um papel individual e colectivo na sociedade em que habitamos. Podemos olhar para a sociedade como um conjunto de sistemas que se interligam e se influenciam entre si. Como se fossemos várias peças de um puzzle, onde cada uma é indispensável e tem um papel necessário para terminarmos a figura que estamos a construir. Sem uma (sem ti, sem mim) a figura fica incompleta. Todos contribuímos para o todo. No ensaio “Junto ao Precipício” (disponível aqui) afirmo que a sociedade está enlouquecida, não tem norte, não tem saúde. Somos capazes de julgar o que comete um crime, de ficarmos assustados com os dados que nos apresentam (estima-se que a cada 40 segundos exista um suicídio no mundo, e relativamente a 2009, disponível aqui), mas temos dificuldade em reconhecer a doença e caminhar para a mudança.

Como temos vindo a olhar para o suicídio? Durante muito tempo o suicídio foi considerado crime. No livro “Suicídio, modo de usar: história, técnica, notícia” de Le Bonniec & Guillon (1980) os autores afirmam: “Queremos tudo: aborto sem risco, prazer sem castigo, e, quanto à morte, queremo-la suave e segura. Da afirmação do direito à morte escolhida fazemos uma arma contra os ladrões da vida.”. Em França em meados de 1900 existem relatos de sujeitos que se suicidaram e que quando eram enterrados no cemitério, o coveiro abria uma cova no local onde os habitantes da comunidade chamavam “canto dos cães” (Bonniec & Guillon, 1980). Durante muito tempo quem se suicidava era olhado como um criminoso, como alguém sem princípios, sem dignidade, como alguém que não merecia um lugar no cemitério.

Há umas décadas quando um sujeito se suicidava e utilizava métodos mais violentos, que por vezes provocavam aquilo a que no Direito Civil é intitulado por “danos” materiais, corporais ou morais sobre outrem, quem pagava estes danos eram os familiares de quem se suicidava ou a pessoa que tinha tentado por fim à sua vida (Bonniec & Guillon, 1980). Em 1972 quando o suicídio se dava durante e no local de trabalho presumia-se acidente de trabalho. “As condições em que se deu (o acto), num lugar deserto e antes da chegada dos operários, manifesta a intenção do seu autor: fugir à vigilância patronal.” (Supremo Tribunal de Justiça, França, 1972 citado por Bonniec & Guillon, 1980). O argumento de que o gesto da vítima se poderia dever à angústia causada por excesso de trabalho era invalidado. Não existia um reconhecimento e muito menos uma procura da resolução da “doença social”.

Há muita gente que questiona: Porque é que as pessoas escolhem por fim à sua vida? Há quem considere que é pela crise, pela urbanização ou pela poluição. Há ainda quem considere que é pela escola, pela prisão ou pelo desemprego. Há quem considere que é por depressão, por consumo de drogas, por uma percepção precária de suporte social e familiar, por problemas de saúde, por baixa auto-estima ou ainda pela perda de um familiar ou alguém significativo (Baptista & Borges, 2005). É neste preciso momento, quando enunciamos as possíveis causas do suicídio e nada se faz, que surge o que Archille-Delmans (1932) no livro “Psycho-Pathologie du suicide” intitula por “princípio de negligenciabilidade”. Somos capazes de reconhecer possíveis causas, mas não agimos. Somos capazes de reconhecer possíveis causas, contudo, mais uma vez não reconhecemos a doença.

Consta-se que mais pessoas morrem anualmente devido ao suicídio do que devido a actos violentos. Obermeyer, membro da OMS afirma em 2009 numa conferência de imprensa que o suicídio é a décima maior causa de morte a nível mundial e que 90% dos suicídios estão relacionados com perturbações mentais, incluindo a depressão e o abuso de substâncias (disponível aqui). O membro da OMS acrescenta ainda: “Damos grande atenção sempre que há uma morte por homicídio e muito pouca atenção ao milhão de vidas perdidas em todo o mundo por suicídio”.

O suicídio não é apenas um acto de auto-agressão, é também um acto de hetero-agressão: traz consequências e agressividade mais ou menos impactantes para todas as pessoas que rodeiam o indivíduo. Quando ocorre um suicídio existe uma tendência por parte dos familiares ou conhecidos da vítima a justificarem o acto. Este movimento poderá levar a várias consequências como sofrimento, raiva e tristeza (Baptista e Borges, 2005). Se consideramos que o suicídio é gerado por uma sociedade doente, o suicídio mais doença na mesma gera. É um loop. Primeiro surge um ou vários acontecimentos que impactam a vida de um ser humano, que individualmente e colectivamente não reconhecemos com a devida importância, depois este decide colocar término à sua vida e em seguida a saúde mental e emocional dos seus entre-queridos é fortemente impactada. Por fim, surge-me a seguinte pergunta: estamos numa época onde a saúde mental é fortemente falada, mas será a doença devidamente reconhecida? Não só a doença individual, mas a colectiva, aquela que habita a sociedade e que é vista por todas as peças do puzzle (por ti e por mim).

Ainda ontem – Poema de Sara Rathenau

Ainda ontem me perguntei pelo propósito da vida,
Pelo propósito de existir.
Pensei: “Para quê viver se estamos destinados à morte?”.

Ainda ontem me senti perdida, sem saber onde fica o Norte,
A perguntar-me porque raio inventam epitáfios e se dão ao trabalho de os escrever.
Pensei: “Mas até as palavras são efémeras.”.

Ainda ontem mergulhei neste oceano doce,
Sustive a respiração e gritei sem ser ouvida.
Hoje, a morte bate-me à porta.

Não a convidei, mas também não tenho negado a sua visita.
A morte chega assim, sem aviso.
Talvez da mesma forma que a vida.

Hoje não me pergunto sobre o propósito de estar viva.
Viver é só isso, viver.
O propósito talvez seja apenas este verbo.

Ainda ontem não sabia para que servia a vida.
Hoje sinto que finalmente a estou a viver.
Desculpa vida por ter duvidado de ti. 

Linhas de apoio e prevenção do suicídio em Portugal
(estas linhas garantem o anonimato tanto a quem liga como a quem atende)

SOS Voz Amiga
Lisboa
Das 16h às 24h
213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660

Linha Verde gratuita – 800 209 899 (Entre as 21h e as 24h)

Conversa Amiga
Inatel
Das 15h às 22h
808 237 327
210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Voades-Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto – Desde 1982
Das 16h às 23h
222 080 707

Voz de Apoio
Porto
Das 21h às 24h
225 506 070

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.