Doença súbita

por Leonardo Cruz,    28 Maio, 2022
Doença súbita
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Por momentos não soube nem como reagir. O espanto foi de tal ordem que pensei estar perante alucinação. Quando finalmente me recompus, contactei o número de apoio do Serviço Nacional de Saúde — SNS24. “Vinte e quatro” talvez seja a média de minutos que demora a ser atendido. Desesperados todos eles, em que aguardava alguém do lado de lá da linha. Atenderam. Voz cansada de homem com pouca vontade de me aturar. Eu percebo-o, consigo empatizar com isso, sobretudo quando falo sozinho. É a minha namorada, refiro, os nervos quase comendo as palavras, ela não está nada bem. Calma, pedem-me do outro lado. Respondo “nem sei muito bem” quando me perguntam os sintomas. De novo, apelam à minha serenidade. Vamos por partes. Febre, tosse, dores no corpo, ausência de olfato? Nada. Não é isso, senhor enfermeiro. Constipação, alergia, gripe e covid: todas excluídas. Com outras respostas suprimiu suspeitas de novas tendências: nem varíola dos macacos, nem hepatite, aguda ou grave. Quando lhe revelei o estranho comportamento observado seguiu-se um longo e angustiante silêncio. Caro senhor, gaguejou a voz, lamento, não o vou poder ajudar. Não tenho estudos para isso, estaria a meter-me onde não devo. Vou passar à Medicina. Aguardei mais uns minutos. Veio uma médica, simpática, disponível, bem-disposta. Porém de uma incompetência difícil de qualificar. Não evitou uma gargalhada quando lhe contei o sucedido. Fiquei incrédulo. Exigi que me passasse a ligação a outra pessoa. Vou chamar um colega, disse a senhora, ainda a rir, imagine-se! Mais uns minutos de espera e oiço a voz decidida de um médico: “conte-me tudo desde o início”.

Sô Doutor (aprendi com a minha avó a tratar os médicos dessa forma, nomeadamente quando preciso mesmo dos seus serviços), tudo aconteceu enquanto estávamos na cozinha. Há coisa de uma hora. Havíamos discutido ontem à noite sobre o almoço de hoje: eu trataria da massa, ela das almôndegas, o debate foi sobre quem faria o quê primeiro. Aquelas conversas de casal, discussões sem significância. Mas isso foi no dia anterior, eu já tinha até esquecido. Hoje, quando preparávamos a refeição, veio à baila o assunto. E foi aí, nesse preciso momento. Fiquei em pânico. Nunca a vira assim. O que devo fazer, Sô Doutor?

Meu caro, a voz calma deu lugar a um nervosismo indisfarçado, não quero alarmá-lo, mas nunca ouvi tal coisa. Não consta dos livros de medicina, não há registo de algo assim. Penso que nem nos programas da Fátima Lopes se ouviu falar de tamanha bizarria. Vou encaminhar para um colega de DSREI e pedir urgência no atendimento. Sô Doutor, encaminhar para onde? Peço desculpa, com a pressa nem traduzi: DSREI — Doenças Súbitas Raras, Estranhas ou Inéditas. Comecei a transpirar evitando olhar para ela, para não a assustar. Contudo, pareceu-me tranquila. O médico acrescentou: vou passá-lo à maior sumidade da Europa neste tipo de fenómenos. “Boa sorte!”. Desta vez a transferência da chamada não demorou muito. Do lado de lá da linha sou surpreendido por uma voz com sotaque estrangeiro, cujo género não consegui identificar. Contei o caso pela terceira vez, mas o anterior interlocutor havia passado bem a mensagem. Fez-me algumas perguntas cujo sentido não consegui apurar. Indagou-me sobre o tipo de sangue, data de nascimento, o que jantámos no dia anterior, como estava o tempo naquela cidade, em que fase da Lua nos encontrávamos, até perguntou como tem vindo a ser o meu comportamento nas últimas duas semanas. A tudo respondi sem questionar. Só quando solicitava os nossos signos é que decidi interromper. Mas não me deixou. Atalhou dizendo: “deixe estar, vou enviar um helicóptero, não há tempo a perder”.

Meia hora depois uma ruidosa aeronave aterrava nas traseiras do prédio. Todo o bairro estava à janela. Ela nem ouviu, de tal forma absorta na sua série de televisão preferida, algo nórdico sobre crime e investigação. Nem quando bateram à porta com estrondo. Abri-a a 4 pessoas vestidas de branco dos pés à cabeça, com equipamentos de proteção na cara. Ainda estendi a mão para os cumprimentar, mas nenhuma luva branca me ousou tocar. Foi o senhor quem ligou? Temos instruções para levar a sua namorada. Está ali na sala, tratem-na bem, por favor, supliquei, os olhos embargados. Dos momentos seguintes tenho memórias difusas. Recordo apenas algumas palavras do responsável da equipa de extração: “Estados Unidos da América”, “Investigação Científica”, “NASA”.

Já o helicóptero ia bem alto quando o vizinho da frente, com quem nunca tinha falado, ousou visitar-me, preocupado: “o que se passou?”.

Vizinho, nem queira saber. Aconteceu aqui algo que nunca teria imaginado. Os médicos estão parvos. A minha namorada, nem sei como lhe explicar…a minha namorada, do nada, a meio de uma conversa sobre uma discussão corriqueira do dia anterior, uma coisa sem jeito nenhum, de uma forma completamente inesperada e improvável, ela, como dizer, ela virou-se para mim e, numa atitude estranhíssima e inaudita, disse-me: “tens razão”.

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