Dos palcos para os palanques da China: a figura de Jiang Qing
Jiang Qing – traduzido para “rio azul” – viveu durante quase todo o século XX, nascendo a 19 de março de 1914 e falecendo a 14 de maio de 1991, aos 77 anos. A vida de Jiang Qing foi marcada por uma (im)perfeita adaptação da sua carreira artística à dimensão política e social de um dos períodos mais marcantes da história da China: a Revolução Cultural, enquadrada no mandato presidencial de Mao Tsé Tung. Tornar-se-ia num dos braços armados do incontestado líder comunista, através do célebre Bando dos Quatro, após um percurso que a levou dos palcos artísticos para o matrimónio com Mao, em 1938, ficando conhecida como a “Madame Mao”. Foi o ano em que se começou a gizar a política propagandística e o controlo do aparelho estatal e dos meios de comunicação social. A morte deste em 1976 faria com que, não obstante esforços para manter o poder institucional, Qing caísse na prisão e terminasse a sua vida em 1991.
Em Zhucheng, na província costeira de Shandong, nasceu Li Shumeng, filha de um carpinteiro e de uma das suas concubinas. O divórcio dos seus pais, o facto de ser filha ilegítima e a morte do progenitor marcar-lhe-iam a meninice, na qual seria conhecida como Li Yunhe – traduzido para “grua nas nuvens”. Aos doze anos, já trabalhava numa empresa de tabaco, em Tianjin, mais a norte, seguindo, dois anos depois, para a cidade de Jinan, mais a interior, sendo a capital de Shandong. Foi neste período que iniciou a prática de teatro e a formação dramática, destacando-se pelos seus talentos e fazendo algumas peças em Beijing. No ano de 1931, de volta a Jinan, casar-se-ia com o filho de um homem de negócios e ingressaria na universidade, na qual conheceu Yu Qiwei (futuramente Huang Jing), estudante de química e membro do Partido Comunista Chinês, por quem se apaixonou.
Foi nesta fase que se aproximou nos quadros do partido, nomeadamente da sua frente cultural, e fez parte da peça de rua “Baixa o teu Chicote” (1931, de Chen Liting), com forte pendor anti-japonês e enquadrando-se na Segunda Guerra Sino-Japonesa, com uma mulher a fugir da China ocupada por japoneses e a sustentar-se através do teatro de rua. Note-se que a China era uma república desde 1912, após a queda da dinastia Qing, que perdurava desde o século XVII. Jiang Qing alistou-se na juventude do Partido Comunista e, após ver o seu segundo marido preso, regressaria a Jinan, fazendo uma pausa na vida política e voltando aos estudos, em Shanghai. Porém, foi uma cidade na qual voltou à atividade partidária e, após ter sido detida, voltou a reatar a sua relação com Huang Jing. A sua carreira profissional como atriz profissionalizou-se, com o nome artístico de Lan Ping – “maçã azul” -, contando com presenças em filmes, como “Cenas da Vida Citadina” (1935, de Yuan Muzhi) ou “Sangue na Montanha do Lobo” (1936, de Fei Mu).
No primeiro desses filmes, havia contracenado com Tang Na, que se tornaria no seu terceiro marido, selando o casamento em Hangzhou, cidade a norte da China, em 1936. Porém, mantinha ligação ao seu segundo cônjuge, gerando uma polémica que levou a duas tentativas de suicídio por parte de Tang Na. A atriz tornar-se-ia funcionária da companhia de cinema de Lianhua, mas seria sol de pouca dura, dada a invasão japonesa em Shanghai, em 1937. A indústria cinematográfica seria desmantelada e a hora de se juntar à revolução havia chegado. Desta forma, tornou-se pupila da Universidade Política e Militar Contra- Japonesa, um instituto de pendor marxista-leninista, enquanto atuava e lecionava na nova Academia de Artes Lu Xun, homenageando uma importante figura da literatura chinesa.
Neste período, conheceria e envolver-se-ia com um dos membros fundadores do Partido Comunista Chinês e protagonista da Longa Marcha, em que o Exército Vermelho chinês percorreu o país enquanto se retirava perante o avanço do Kuomitang, o partido nacionalista, e do seu exército, feita entre 1934 e 1936. Esse membro era Mao Tsé-Tung, que era casado com He Zizhen, com quem tinha cinco filhos. O divórcio acabou por ser aceite pela esposa e pelos restantes líderes do partido comunista, com a condição de que Jiang Qing não surgisse em público durante vinte anos. Assim foi e o casal teria uma filha, de seu nome Li Na, nascida em 1940. Quase uma década depois, com a criação da República Popular da China, em 1949, Jiang seria a primeira-dama de Mao Tsé-Tung, o presidente, e assumiria funções num comité responsável por fiscalizar a atividade cinematográfica no país. Um dos primeiros filmes visados seria uma biografia de Wu Xun, uma figura que representava o liberalismo e a educação democratizada, evoluindo de mendigo para fundador de uma escola para outros tantos.
Foi o primeiro gesto de uma política contrarrevolucionária que anteveria a Revolução Cultural. Porém, até lá chegar, Jiang seria vitimada por um cancro cervical na década de 1950, após outras maleitas físicas que a fizeram recuar da vida pública. Recuperando em Moscovo, teve a oportunidade de, na condição de dignitária estrangeira, aceder a filmes banidos na União Soviética, muitos deles vindos dos Estados Unidos. No regresso, em 1962, deparou-se com o impacto nefasto que o Grande Salto Adiante (1958-62), que promovia políticas de coletivização agrícola e de uma rápida industrialização, gerou na população, originando a Grande Fome. Consoante iam surgindo vozes dissonantes e organismos de oposição, Mao procurou anular os seus dissuasores, contando, para isso, com o auxílio dos seus mais próximos colaboradores, entre eles Jiang Qing. A ela caberia, de novo, a responsabilidade de purgar os meios de comunicação social e a atividade artística de tudo aquilo que o regime considerava ser feudal, burguês e revolucionário.
Em junho de 1964, naquele que foi o seu primeiro discurso em público, afirmou, na convenção da Ópera de Pequim, que o objetivo desse tipo de performances não era a glorificação de imperadores, generais, académicos e figuras mitológicas, mas antes os interesses dos trabalhadores e dos camponeses, à luz da ideologia comunista. Nos anos subsequentes, para além de doutrinar elementos do Exército de Libertação Popular com arte considerada alinhada com os princípios defendidos pelo maoísmo, presidiu a conferências de avaliação de cinema nacional e internacional (a própria Jiang era uma grande fã de Greta Garbo), acabando por eliminar a circulação de inúmeros filmes.
Isto não surpreendia quem a via na administração da Ópera Socialista Chinesa, que se vai desenhando na década de 1950, com a iniciativa de reformar a atividade cultural e artística da nação, de forma a ser devidamente doutrinada e estatizada. Como esposa de Mao, Jiang pôde fazer valer a sua opinião em vários assuntos, como a distribuição de vários filmes em que considerava que os latifundiários eram saudados perante a exploração dos camponeses. Os artigos do líder do estado vinham defender e legitimar as considerações da sua esposa, tanto cinematográficas, como literárias, uma vez que as opiniões que tinham iam contra as dos aparelhos censórios existentes.
Com a sua paragem na década de 1950, conforme referido, havia coligido uma grande fonte de referências visuais e temáticas com os visionamentos de cinema ocidental. Na China, assistia com regularidade a óperas locais e uniu esforços com as companhias existentes para conceber peças de cariz revolucionário, onde os trabalhadores, os camponeses e os oficiais do exército fossem os protagonistas. Era imperioso deixar de parte os rostos de fora e tempos idos e construir novos heróis, com o coletivo a assumir o protagonismo, como personagens boas e positivas, capazes de inspirar os demais, ao invés do culto individual de outrem (senão Mao).
1966 traria, assim, o arranque da conhecida Revolução Cultural, que perduraria durante dez anos, e o Secretariado de Estado daria lugar ao Grupo de Revolução Cultural, que daria resposta ao Politburo, o órgão máximo da liderança do Partido Comunista Chinês. A sua influência tornar-se-ia tal e tamanha que acabaria por ter uma esfera de poder mais ampla e concreta que a do Politburo, que Jiang integraria três anos depois. Foi neste período que começaria a desenvolver a relação profissional com os elementos do Bando dos Quatro (nome atribuído pela própria figura de Mao), no qual se uniu com Zhang Chunqiao, que arrecadou o domínio do poder local de Shanghai, através da constituição de uma comuna popular; com Yao Wenyuan, dedicado à esfera da imprensa, sendo o diretor do Jiefang Daily; e com Wang Hongwen, que seria vice-presidente do partido nos últimos anos do maoísmo.
Tomando o exemplo soviético – o afrouxamento do poder na mudança de Estaline para Khrushchev – como algo a não repetir, Mao procurou impulsionar o alistamento dos mais jovens na Guarda Vermelha, alocando-os ao partido e ao regime, e desenvolver uma política cultural que limpasse qualquer vestígio de elementos capitalistas e outros remanescentes do passado chinês. O surgimento do célebre “Livro Vermelho”, que surge como o grande sustento do crescente culto da personalidade de Tsé-Tung, é o momento que despoleta a consolidação da tal Revolução Cultural. Nesta linha, entram as óperas de cariz revolucionário – as yangbaxi -, concebidas e produzidas por Jiang, que ultrapassam a mera representação e figuram em livros, em música e em diferentíssimos objetos de uso diário, desde pratos, lápis, copos ou vasos.
Seriam oito as grandes óperas modelo realizadas, com cinco óperas, dois bailados e uma sinfonia. “A Lenda da Lanterna Vermelha” explorava a atividade comunista clandestina no período da ocupação japonesa; “Shajiabang” (também em forma de sinfonia) representa, no mesmo período, a atividade partidária de uma mulher que também tem uma casa de chá; “Tomar a Montanha do Tigre por Estratégia” sustenta-se num escrito de Qu Bo – no qual um comunista se infiltra num grupo de bandidos de forma a suprimi-lo -, que condena o banditismo no nordeste da China; “Raide no Regimento do Tigre Branco” remonta à Guerra Coreana e ao retratar da vitória dos comunistas chineses e coreanos sobre as forças sul-coreanas a partir do Exército Voluntário do Povo.
De igual modo, “Nas Docas” exulta a necessidade de assumir responsabilidades políticas, filantropia internacional e heroísmo revolucionário numa história de uma sabotagem de comércio náutico; e os bailados “O Destacamento Vermelho de Mulheres” (particularmente apreciado por Nixon, na sua visita em 1972), que decorre na Guerra Civil Chinesa (1927-37) e conta a história de uma mulher campesina de Hainan que vinga na ascensão que faz dentro do partido comunista; e “A Rapariga de Cabelos Brancos”, uma adaptação de um libreto de He Jingzhi que faz de uma história de teor folclórico ser impulsionada por motivos propagandísticos, retratando a miséria dos populares, em especial das mulheres e convidando à revolução.
Estas óperas tornaram-se o momento em que Jiang conquistou os demais líderes do Partido Comunista Chinês, permitindo-a granjear uma reputação importante no meio artístico e, por fim, formalizar a Casa de Ópera de Beijing. Fê-lo em uníssono como o futuro Ministro da Cultura, Yu Huiyong, que também intencionava uma arte mais contemporânea e em linha com a realidade da vida moderna. Porém, este seria visado como democrata e propagador do feudalismo através dos motivos tradicionais que evocava nas suas óperas. A intercessão de Jiang, resgatando-o mas usando-o para os seus próprios interesses, acabaria por dotar de maior rigor musical e técnico as óperas revolucionárias, algo que, para ela, era determinante, dado que a organização construía a aparência das personagens.
Era um rigor que não era impercetível para o público, dado que o desejo era de que a música fosse entendida por todos, tanto sonora, como intelectualmente, na forma veículo de educação das massas e do próprio mandarim. A comunicação entre artistas e Jiang tinha Yu como mediador. Jiang, muito estrita e ideológica, desejava enredos simples e concretos, sem personagens muito complexas e intrigantes. De igual modo, era muito crítica à dimensão musical e, sendo cáustica e dura, acabava por desmotivar as artistas. Daí a presença de Yu, que renovava as expectativas dos elencos, ao mesmo tempo que temperava o espírito de Jiang, mesmo sendo ele, muitas vezes, considerado uma espécie de fantoche em prol dos objetivos da Primeira-Dama.
Jiang definia as massas como autoras destes registos artísticos e foi vendo com atenção a influência que foram tendo na população, assim como toda a política induzida pela Revolução Cultural. As consequências não demoraram a fazer-se notar: os massacres e os assassinatos avolumaram-se, erradicaram-se os velhos costumes e hábitos que eram considerados arcaicos, as perseguições foram constantes, resultando em inúmeras detenções, e escolas e universidades foram fechadas. As posturas radicais do Bando dos Quatro foram acompanhadas pelas do vice-presidente do partido, Lin Biao, tido como sucessor de Mao e que faleceria num acidente em 1971. Com a morte deste, foi gizada uma campanha em que o mesmo foi condenado, assim como aquele que seria, futuramente, o líder do Partido Comunista Chinês: Deng Xiaoping. A reinterpretação da história à luz do maoísmo e a própria crítica dos princípios do filósofo Confúcio seriam envolvidos nessa estratégia propagandística de voltar a enaltecer a figura de Mao, estratégia essa que começava a conter a figura da Primeira-Dama nos cartazes.
Nessa escala sanguinária, Jiang mostrar-se-ia implacável, indo mais longe do que qualquer dos seus camaradas de partido. Usaria a bandeira da Revolução Cultural em prejuízo daqueles com quem havia criado inimizades, indo até aos inícios da sua carreira artística, três décadas antes. Alimentava o espírito bélico e radical dos mais jovens e, aos poucos, acabaria por germinar divisões dentro do partido, inclusive com a figura do primeiro-ministro Zhou Enlai. Jiang foi ao ponto de incitar a tortura e o assassinato do seu filho adotivo e da sua filha nas mãos da Guarda Vermelha e de acelerar a cremação da filha, de forma a que não houvesse a possibilidade de autópsia. Mesmo à data da morte de Enlai, em 1976, seria das primeiras a proibir luto generalizado pela sua figura.
Contudo, a propaganda feita acabaria por desregular a opinião pública, fazendo com que a oposição fosse crescendo e apontando baterias a Jiang, alguém mais tangível que a figura deificada de Mao. O divórcio, em 1973, seria resultado desse desgaste proporcionado pela quase década inteira de propaganda concertada ao abrigo da Revolução Cultural. A oposição interna, porém, teve dificuldades em lidar com Jiang, dado os cargos não terem sofrido alterações. Neste período, continuou ligada à formação e à aculturação, sendo ela a responsável por descobrir o talento de Joan Chen, então com 14 anos, para a representação, acabando por a catapultar para uma carreira internacional.
Tudo mudaria, todavia, com o falecimento de Mao Tsé-Tung, no dia 9 de setembro de 1976. À data, os meios de comunicação social estavam nas mãos do Bando dos Quatro, com as funções já referidas de cada um dos seus elementos. A tentativa de criar imprensa negativa em torno da figura de Deng Xiaoping revelava o receio de Jiang deste assumir o poder, procurando conspirar contra ele em seu favor ou em favor de um dos colaboradores próximos. Procurava, assim, defender-se no papel de viúva de Mao, mas outras conspirações iam surgindo, com figuras da defesa, como Ye Jianying ou Wang Dongxing, a programar depor a figura de Jiang.
Nem um mês após a morte de Mao, no dia 6 de outubro, Jiang e os seus colaboradores do Bando seriam espancados, detidos e torturados, acabando julgados por tentativa de subversão e usurpação de poder, traição à pátria e atividade contrarrevolucionária. A tortura física e de fome continuariam, assim como as interrogações, nos cinco anos em que esteve presa. O momento do julgamento chegaria em 1980, julgamento esse que foi transmitido na televisão nacional. À data, era Deng Xiaoping o presidente e, alegadamente, havia sido ele a pretender essa divulgação pelo país, dando a aparência de mudança.
A responsabilidade por mais de 30 mil mortes e de 700 mil perseguições estava personificada na figura dos quatro arguidos, sendo as de artistas direcionada para a pessoa de Jiang Qing. Essas perseguições eram caraterizadas como a formação de grupos de mercenários que irrompiam nas residências desses artistas e as assaltavam e as destruíam, de forma a fazer desaparecer, entre outras coisas, cartas e fotografias. A antiga Primeira-Dama abdicaria de ter defesa, fazendo-a ela mesma, e assumiria que apenas havia feito o que Mao tinha ordenado ser executado, apelidando-se de “cão do presidente Mao”.
A sentença seria de morte, protelada para o ano de 1981. Porém, em 1983, seria comutada para prisão perpétua. Nesse período, havia desejado ver o corpo embalsamado de Mao Tsé-Tung, algo que lhe foi rejeitado. Com um diagnóstico de novo cancro no pescoço, seria libertada da prisão em 1991, mas suicidar-se-ia num hospital de Beijing, por enforcamento. Na sua nota de suicídio, havia referido que a revolução tinha sido assaltada por um grupo revisionista que tinha exposto a China a terrores intermináveis. Jiang seria sepultada na cidade onde havia morrido com o nome de escola. Li Yunhe.
Jiang Qing deixou um legado ao alcance de poucas mulheres na história da República da China, em especial do século XX. Testemunhos literários, como “Jiang Qing e os seus Maridos” (peça de 1990 escrita por Sha Yexin, que faz um paralelismo com a peça do dramaturgo Henrik Ibsen, “Uma Casa de Bonecas”, que Jiang representou) ou “Becoming Madame Mao” (2000, da autora Anchee Min), não deixam esquecer uma figura que tanto teve de presente e de dinâmica, como de cruel e de sanguinária. A cultura e a arte foram instrumentalizadas por si e pelos seus camaradas, em prol de uma mensagem que se pensava maior e melhor para todos. O ideário comunista sob a ótica de Mao Tsé-Tung seria a doutrina da propaganda que a Primeira-Dama pensou e executou. Uma propaganda que envolveu uma nação inteira e que só viu fim dentro de si mesma, à imagem da própria Jiang Qing.