“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts: a leitura como ferramenta de opressão

por José Moreira,    8 Agosto, 2023
“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts: a leitura como ferramenta de opressão
“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts (capa do livro)
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Será possível contar a história de alguém, de forma bastante completa diga-se, tendo como ponto de partida uma particularidade da pessoa em causa? Arrisco-me a afirmar que sim e que este livro é prova disso. Aqui encontramos um extenso exercício biográfico sobre o ditador comunista, num formato bastante original: o autor apresenta-o construído sobre o leitor Estaline.

A complexidade e profundidade desta obra não é grande surpresa, pois o autor é o historiador britânico Geoffrey Roberts, professor de história na Universidade de Cork na Irlanda e especialista no período da Segunda Guerra Mundial, com particular foco na história militar e diplomática da União Soviética. Este autor chegou a Portugal em 2023 pela mão da editora Zigurate, e foi apresentado em Março passado juntamente com o livro “Breve História Mundial da Esquerda”, de Shlomo Sand.

Os elementos mais esmiuçados, por quem investigou os espólios das bibliotecas de Estaline, são os sublinhados e as suas anotações nas margens dos livros. Estas são interpretadas, por vezes, ao nível da psicologia, com muita especulação pelo meio. Talvez por isso, Geoffrey Roberts tenta fugir a essa vertente quase excessivamente analítica. Inicialmente, descreve como Josef Estaline, nascido na Geórgia com o nome Josef Djugatchvili, adquire a sua devoção aos livros e como depois transita da educação severa e estritamente religiosa da sua infância, para uma experiência quase similar no estudo e prática devota do marxismo-leninismo que adoptou posteriormente. Roberts afirma sobre esta relação entre as duas vertentes da vida do ditador: “Outra forma de ver a relação de Estaline com a sua educação religiosa passa por olhar para o comunismo como uma «religião política». A ideia de que, ao tornar-se comunista, Estaline terá trocado uma fé por outra é intuitivamente apelativa. Não há dúvidas de que o paralelismo entre o comunismo e a cristandade é entusiasmante. O comunismo tinha os seus textos sagrados e rituais, os seus hereges, mártires, pecadores e santos. Tinha também uma escatologia secularizada do progresso com vista ao paraíso na Terra, estabelecido através de estádios predeterminados da História: escravatura, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo. Tal como a cristandade, o comunismo assentava num envolvimento emotivo e baseado na fé por parte dos seus apoiantes.”

“A vida política de Estaline teve na sua génese a escrita e a edição de materiais de natureza agitadora — folhetos, panfletos, discursos, editoriais, artigos breves —, e isso notava-se na forma como ele cortava, reformulava e aperfeiçoava os textos que lhe pareciam insatisfatórios.”

“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts

Vamos descobrindo como as leituras moldaram os acontecimentos ao longo da sua ditadura. De forma recorrente, Estaline usava as palavras dos seus adversários contra os próprios. Isto numa clara prática de desonestidade intelectual totalitária e reconhecível em diversos quadrantes políticos. Na qual se busca apenas interpretar o que convém nas palavras alheias, distorcendo e acusando para impor a supremacia ideológica. Por exemplo, lia avidamente as obras da maioria dos seus adversários políticos, principalmente dentro do partido, pois não existia praticamente oposição na União Soviética. Entre os principais visados destacam-se alguns grandes nomes do partido, tais Trótski, Zinoviev, Kamenev e Bukharin, o primeiro foi assassinado e os restantes foram executados. Estaline não se limitou a estas purgas internas no partido como método de controlo, e em cerca de 30 anos de poder, vários milhões de soviéticos foram mortos em gulags, de fome e guerra.

Estaline possuía uma determinação quase obsessiva sobre a implementação da sua visão do marxismo-leninismo. Tanto que na sua ação crítica e censória, enquanto leitor e guardião da ditadura soviética, chegou ao ponto de editar guiões de cinema, peças de teatro, entre outros meios culturais. No entanto, é quase unânime que um dos maiores proveitos práticos das suas leituras advinha da forma intensa como estudava a história, as estratégias militares e de estado (tirando até lições do czarismo).

“O interesse de Estaline por assuntos militares era uma constante, e, no decurso da Segunda Guerra Mundial, o ditador deu bom uso às suas leituras de história militar e de teoria estratégica. Acima de tudo, essas leituras ofereciam-lhe uma perspectiva diferente das coisas e permitiam-lhe ter uma visão de conjunto do esforço de guerra soviético. Os generais de Estaline admiravam-se com a sua clarividência estratégica e com o seu conhecimento profundo da guerra moderna, isto apesar das derrotas e dos desastres dos primeiros anos da Grande Guerra Patriótica.”

“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts

Paralelamente, revelam-se algumas das inseguranças políticas do ditador, entre elas o receio pelo excessivo culto da sua personalidade, da agressiva necessidade de incutir um sentimento nacionalista artificial nos soviéticos, ou em relação à perceção geopolítica sobre o pacto Molotov–Ribbentrop entre os soviéticos e alemães. As leituras de Estaline e os actos de censura e edição que deles produzia, constituiam a base sobre a qual o ditador sustentava as suas interpretações da “verdade” que lhe interessava descortinar aos soviéticos. Curiosamente, antes de chegar ao poder foi editor do jornal do Partido Comunista da União Soviética, o “Pravda”, que significa verdade em russo. Portanto, o controlo da “verdade” foi sempre um dos focos principais da revolução bolchevique. Roberts refere o seguinte sobre a postura intelectual de Josef Estaline: “Em teoria, era um defensor da verdade e do rigor intelectual. Na prática, as suas convicções eram dogmas politicamente instigados. Enaltecia os rigores da ciência histórica, mas punha-os de parte quando era conveniente fazê-lo. Considerava que a filosofia marxista era racional e empiracamente verificável, mas os seus fundamentos ontológicos estava para além de qualquer questionamento.”

Esta obra engloba diversos eventos históricos que moldaram o curso e o discurso político, até aos dias de hoje. Somos até surpreendidos pela quantidade de posições políticas contemporâneas que, na sua origem, surgem da retórica política de regimes totalitários de há mais de 80 anos. Ou seja, existem posições defendidas atualmente e supostamente enraizadas em ideologia monolítica, que, de facto, originam das manigâncias e manipulações oportunistas de ditadores do século XX. Vejamos um exemplo curioso: antes do antiamericanismo passar a fazer parte do imaginário colectivo comunista, é curioso relembrar como Estaline era um ávido espectador de Westerns e nutria um profundo fascínio pelos Estados Unidos (enquanto foram aliados de guerra e lhe forneceram armamento e tecnologia), sentimento esse que azedou com os desenvolvimentos do pós-guerra e culminou na Guerra Fria.

“Embora não tenha escrito nenhum livro de memórias nem mantido qualquer espécie de diário, Estaline deixou um rasto literário bem definido não só nos livros que escreveu e editou, mas também nas obras que leu. Através de uma análise desses livros, é possível construir um retrato compósito e matizado de uma vida de leituras do ditador mais conscientemente intelectual do século XX.”

“A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts

O jornalista e fundador da Livros Zigurate Carlos Vaz Marques, em entrevista publicada na Comunidade Cultura e Arte, afirmou o seguinte sobre o livro: “acho muito paradoxal o facto de o Estaline ser um grande leitor, não sei se um bom ou um mau leitor. A conclusão que tiro é que ler é bom, mas não faz de ninguém boa pessoa. É como tudo na vida. Podemos usar uma pá para plantar uma árvore ou dar com ela na cabeça de alguém. É um instrumento e como todos os instrumentos é passível de ser usado de forma benigna ou maligna”.

É uma perspectiva bastante pertinente que se pode aplicar à leitura, à cultura e ao conhecimento em geral, e à qual gostaria de acrescentar: sem abertura ao contraditório, partilha, curiosidade e honestidade intelectual, não passam de meras ferramentas de manipulação, propaganda e imposição intelectual de grupos e indivíduos.

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