“Duna: Parte 2”, de Denis Villeneuve: o abismo moral em escala titânica

por Afonso Marrocano de Almeida,    4 Março, 2024
“Duna: Parte 2”, de Denis Villeneuve: o abismo moral em escala titânica
“Duna: Parte 2”, de Denis Villeneuve / DR
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Difícil encontrar tão célere e astronómica ascensão nos registos cinematográficos como a de Denis Villeneuve. Fez-se introduzir nos radares de Hollywood com o seu drama canadiano-francófono Incendies (2010), filme cuja ambição em escala e narrativa, poderio emocional dramático e mestria na execução vieram a caracterizar a exímia filmografia do cineasta. Em solo estadunidense, Villeneuve estreia-se por thrillers com destaque para Raptadas (2013), avançando para o cinema blockbuster sob a forma de épicos de ficção-científica, sendo estes O Primeiro Encontro (2016) e Blade Runner: 2049 (2017). Reunindo em menos de uma década uma amostra de trabalho que o coloca como dos melhores artistas no ativo, segue-se o projeto-paixão sobre a impossível adaptação da obra Duna de Frank Herbert. Depois de dois anos de espera com mais cinco meses de adiamento por recusa do estúdio Warner Brothers em negociar com o sindicado dos atores (SAGAFTRA), chega a sequela da franquia pelo canadiano desenhada.

Enquanto o primeiro filme sacrificara narrativa em prol de contextualização, Duna – Parte 2 brilha tanto como intermediário numa saga e como película singular, servindo um irrepreensível hino em cinema popular. A distorção da típica linha narrativa entre heróis e vilões e temáticas políticas da clássica novela assumem o domínio da substância, complexo e fascinante abismo moral o resultado. A vanguarda dos géneros épico e de ficção-científica vê-se reinventada, escala cenográfica avassaladora em beleza e dimensão com trabalho visual e sonoro a absorver de igual modo os sentidos do espectador. Definida a orquestra, a direção de mestre de Villeneuve tudo conduz, capaz de sem tréguas combinar tamanho maximalismo com íntima sensibilidade em caracterização e planos-chave.

“Duna: Parte 2”, de Denis Villeneuve / DR

A sequela tem início exatamente onde o primeiro filme termina. Paul Atreides (Timothée Chalamet) e a sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) têm refúgio entre os Fremen, os nativos do planeta Arrakis. Porém, integração manifesta-se difícil, desde os modos de sobrevivência pela comunidade à sua hostilização como estrangeiros, não obstante o apoio pelo líder Stilgar (Javier Bardem) e pretendente amorosa Chani (Zendaya). Com a doutrina religiosa Bene Gesserit sempre no centro das decisões, na profética condição de messias, Lisan al Gaib, Paul e a sua mãe, agora como reverenda-mãe, são defendidos por Stilgar nos seus desejos de retaliação contra os Harkonnen e o Imperador pela conspiração contra a sua casa e família. Para tal, atacar veículos de produção de especiaria revela-se como primeira etapa. Com paixão amorosa em crescente florescimento, Paul e Chani executam um primeiro assalto com sucesso. Visões e feitos sucessivos que corroboram a profecia, o jovem, apesar de recusar tal consideração, vai conquistando a confiança e as crenças messiânicas dos Fremen. Numa paisagem de tirar o fôlego, os dois pombos oficializam o seu intransigente amor. Por fim, teste final sobre Paul, este consegue montar um Shai Hulud, monstro divino que navega as areias da Duna, o maior que até então se avistara. Estrangeiro totalmente assimilado e Lisan al Gaib para todos os crentes, Atreides é batizado com um nome de guerreiro, Muad‘lib, tal como os ratos-cangurus desérticos que apontam o caminho.

Enquanto decorre a integração e plano de vingança por Paul, todo um outro panorama hostil se desenha. Com a manutenção do poder no cerne, Imperador (Christopher Walken) e filha (Florence Pugh) receiam a chegada de um messias para os Fremen e o fracasso na aniquilação da família Atreides. A casa Harkonnen vê os seus festejos do ataque a Arrakis interrompidos com a inesperada progressiva destruição do seu ganha-pão extrativo. A transição de Jessica para reverenda-mãe acarreta negativas consequências, estado de gravidez acentua delírios, autoritárias missões religiosas com amplo recurso à “voz” proliferam. Sonhos incessantes e especiaria alucinógena agora parte do consumo habitual, visões de guerra santa e destrutivo messianismo em seu nome atormentam o nosso protagonista, receios sobre o caminho a seguir brotam um terror existencial. Por fim, a desafiar o papel de Lisan al Gaib, surge outro experimento das Bene Gesserit, descendente Harkonnen e com incessantes desejos por sangue e poder, Feyd-Rautha (Austin Butler).

Com uma capacidade de sugar em absoluto a atenção e espírito do espectador, sem paralelo em blockbusters modernos a manufatura visual e sonora deste filme. Paisagem e ambiente que relembram um misto da galopante imensidão desértica de Lawrence da Arábia (1962) e o espetáculo espacial de Guerra das Estrelas (1977), o esforço coletivo entre cenários, fotografia e efeitos especiais atribui uma belíssima escala extraordinária e textura palpável à quente, areal e futurista atmosfera. Ao longo dos 166 minutos de duração, planos móveis próximos dos protagonistas e montagem de consistentes cortes sucessivos permitem um ritmo acelerado fluído, que não tropeça em exaustão na sua velocidade ou menoriza o impacto das cenas. Sem cair em cansativos excessos, o áudio presta total credibilidade aos alucinantes eventos enquanto engole o espectador na sua sensível presença maximalista. A banda-sonora fomenta a epicidade da película, grandiosidade orquestral apta para a escala com estilo sonoro arábico característico da atmosfera a comporem o conjunto de baladas do trabalho de Hanz Zimmer.

Sensação de prelúdio sobre o propósito do primeiro filme, narrativa em plano secundário e conclusão débil as falhas, a sequela é constituída por um corpus completo com das mais densas e complexas paletes simbólicas e emocionais dentro da ficção-científica épica moderna. Contrariando os persistentes vazios intelectuais e bipolarização narrativas que banalizam os blockbusters, sem receios esta película adota a perdição moral e ideário libertário da obra literária, num dinâmico rompimento com a bacoca divisão entre heróis e vilões, bem e mal, enquanto sugere ao espectador uma reflexão crítica sobre poder, religião, política, corporativismo, imperialismo e colonialismo. Escapismo idealista na lama, ficção-científica em larga escala utilizado como veículo para análise da condição humana. A interpretar a vasta panóplia de personagens, irrepreensíveis os papéis do elenco. Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Austin Butler e Zendaya revelam novas faces, culminando na novidade do protagonismo de Timothée Chalamet, que concretiza o peso e conflito que a figura de Paul Atreides exige. O ingrediente máximo de todo o prato até aqui explanado, a direção de Villeneuve prima-se pela mestria na combinação de tamanha escala, intensidade tonal e universo contextual com sensível e minimalista subtileza em caracterização, sugestão simbólica e expressionismo visual. Estilo e substância encontram total equilíbrio, visão titânica e minuciosa alcançada.

Duna: Parte 2 responde de extraordinário modo à incógnita sobre a possibilidade da sétima arte em fazer jus à icónica obra literária, da experiência prestada ao propósito servido. Serve como exemplo daquilo a que o cinema comercial deve ambicionar. Da vanguarda técnica e atmosférica, impossível em orçamentos inferiores, à pertinente e sensível linguagem de alcance universal. Num contemporâneo político e social crescentemente centrado em figuras cultistas e populistas, o filme assume particular relevância pelo seu retrato de messianismo. Sobre os sistemas e construtos humanos à própria natureza do Homem, é prestada uma abstrata desconstrução apta a longo-prazo. Não se limita a entretenimento inofensivo, colocando complexas questões ao espectador, enquanto exige e fomenta estimulante dedicação da sua parte, muito após a visualização. Não se dispensa da principal função em arte, a subversão de ideias e valores.

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