E se a poesia for para a faculdade de desporto?

por Francisco Guimarães,    13 Dezembro, 2021
E se a poesia for para a faculdade de desporto?
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No outro dia, no programa “Nada será como Dante”, da RTP2, apresentado pela poeta Filipa Leal e pelo ator Pedro Lamares, vi que, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, existe uma cadeira de Poesia, lecionada pelo médico e também poeta João Luís Barreto Guimarães. A cadeira é opcional, mas cada vez existem menos vagas, tal é o sucesso da disciplina criada recentemente. É conhecida a longa tradição de médicos que, para além da medicina, se ocupavam abundantemente da experiência literária, através da escrita e da literatura. Alice Vieira, numa entrevista recente, dizia que, a par do jornalismo, a medicina tem sido a profissão mais frutífera na produção de génios literários. Miguel Torga, Lobo Antunes, Tchekhov, Guimarães Rosa e muitos outros médicos ficaram mais conhecidos pela suposta ocupação secundária do que pelo exercício do seu ofício, e esse facto interroga a minha existência. 

Olhando bem, a Poesia, como qualquer forma de literatura, no fim de contas, aproveita-se da vida e da morte, das suas condições extremas e misteriosas, e abeira-se dessa dualidade para existir como Arte. A medicina faz o mesmo. Os melhores escritores — porque espelham a totalidade da vida em palavras — são os que conhecem melhor a humanidade, os melhores médicos — porque olham muito para além da enfermidade de uma pessoa — são os que conhecem melhor a humanidade e são os que se preocupam mais com cada homem, com cada mulher, com cada criança, com cada pedaço da existência. João Lobo Antunes, em “Uma Nova Medicina” e em “O Consolo das Humanidades”, alertava-nos com argúcia e urgência para a necessidade de uma medicina humanista, personalizada, atenta a cada um, atenta à realidade do ser humano como uma coisa única e irrepetível. É por isso que as palavras, quando vêm de dentro, se confundem com aquilo que a medicina nos oferece além de cuidados de saúde — os limites do Homem, as suas dores, as suas alegrias, fragilidades, incertezas, incoerências e inquietações. Falam do mais profundo que há no cerne da humanidade. 

O desporto, por se tratar de uma prática muito mais humana do que física, não é exceção. O campo de futebol é o campo da vida, e nele só entra preparado quem melhor a conhece. Diante de um jogo, torna-se possível vislumbrar o coração de cada pessoa na sua abrangência, na inteireza que a define, por meio de regras e limites que provocam a liberdade e a natureza de cada um que joga. O treinador ou o jogador que ignora a Religião, a Filosofia, a História, a Arte — tudo aquilo que existe na poesia e na substância dos dias — ignora a plenitude do ser humano. O problema não se prende com a erudição, com a complexidade ou com o pretensiosismo de se ser culto e sábio, de se saber de cor mais ou menos autores, de dizer Sophia ou Sena em voz alta, prende-se com a atenção ao outro que a leitura nos oferece, prende-se com a empatia e com a capacidade de escutar bem até ao fundo aquele que se detém diante de nós. 

É nessa escuta atenta — fundamental para o exercício de uma profissão cuja relação com o ser humano é central — que emerge cada relação entre os Homens e a natureza. Por vezes, tal relação faz-se em silêncio, outras vezes desenrola-se numa conversa pacientemente pulsada pela aorta, e nessas trocas de olhares e palavras dialogadas, aparentemente com muita clareza e sem margem para dúvidas, escondem-se intervalos vivos, gritos em forma de silêncio, zonas mortas e indefinidas, limbos misteriosos, sentidos camuflados e inquietudes que, sem conhecer as almas que melhor se expressaram na Poesia, no grande Romance, na História, na Filosofia, na Ciência ou na Religião, não nos é possível alcançar. É por isso que o grande médico, o grande professor, o grande treinador é também o grande leitor, aquele que melhor escuta e conhece as grandes vozes, de Homero a Darwin, de Tolstói a Pessoa. Os remates, os passes, as conversas, as palestras em grupo — essenciais para o jogo e para o exercício de uma profissão relacionada com o desporto — só se entendem verdadeiramente quando já se acedeu aos grandes mestres da Poesia, da Ficção, da Filosofia ou da Religião, disciplinas que permitem revelar o sentido mais profundo das coisas, tantas vezes inaudível e inacessível. Sem elas, qualquer personalidade do desporto fica incompleta. Por isso, Pedro Abrunhosa, numa conversa recente que tive a sorte de ter, me espicaçava, dizendo: “O Cristiano Ronaldo será melhor jogador quando ler Miguel Torga”.

A poesia permite ver o mundo com outros olhos que não os nossos, abre-nos o olhar. Torna-nos mais humanos, clarifica o mistério da vida e alarga a razão, permitindo que se possa ver mais longe, para lá do visível. Cada poema é uma passagem concreta — uma porta frágil de madeira, uma janela de vidro, um mergulho no abismo —, para a natureza mais arraigada de quem o escreveu. O que está em jogo é olhar melhor ou olhar pior. Em cada poema permanece uma certa escultura ritmada da vida, esculpida na tensão dos dias, mais condensada ou menos, mais concreta ou abstrata, mais gordurosa ou limpa, com ruído ou silenciosa, ainda que, no caso de se tratar de boa poesia, se revele sempre no desafio de dar ao leitor a oportunidade privilegiada de pensar sobre si mesmo e o mundo que o rodeia, num naufrágio que, por meio de um olhar alheio, permite crescer.

Ao olhar recentemente para um bando de quatro pequenos pássaros a marchar apressadamente em conjunto na praia, vi que tinham a noção perfeita dos tempos em que as ondas rebentavam. A onda regredia e lá iam eles picar o mar, a onda batia, acelerava na sua direção, e eles fugiam no momento certo, como se soubessem tudo da vida, de quando é preciso ariscar, de quando é preciso fugir dos outros e enfrentar a solidão, de quando é preciso falar ou estar em silêncio. Falo dos pássaros como podia falar dos treinos que dou ou de qualquer outro momento da minha vida pessoal e profissional. Foram Sophia, Dostoiévski, Eugénio, Amália ou Virgílio que me ensinaram a ver estas coisas, foram eles que me fizeram querer ver bem os pássaros — ou ser como eles — que sabem tudo da vida. 

Sem eles, continuaria cego como fui e hei-de-ser tantas vezes mais.

É por isso que gostaria de ver a poesia no desporto. 

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