Eduardo Galeano leva-nos por cinco séculos de Imperialismo na América Latina

por Miguel Fernandes Duarte,    20 Setembro, 2017
Eduardo Galeano leva-nos por cinco séculos de Imperialismo na América Latina

Nos últimos anos, na generalidade dos países da América Latina, esforços tinham sido feitos para devolver o poder à população e melhorar as suas condições de vida, nomeadamente com o intuito de tirar de lá os muitos que estavam embrulhados na pobreza e na fome. A chamada ‘onda rosa’, que, desde o final dos anos 90 do século passado, levou ao poder diversos governos com programas baseados em políticas reformistas de esquerda, partia essencialmente duma premissa comum (obviamente com as devidas diferenças internas): opor-se às directrizes políticas e económicas impostas pelos Estados Unidos da América e pelo Fundo Monetário Internacional, controlado em grande parte pelos Norte Americanos. Lula da Silva, no Brasil, Évo Morales, na Bolívia, Hugo Chávez, na Venezuela, Néstor Kirchner, na Argentina, entre muitos outros, trouxeram ao país a esperança da reversão de séculos de subjugação da população dos seus países, procurando inspiração em nomes como Símon Bolívar e Salvador Allende, este último morto durante o Golpe de Estado financiado pelos EUA que pôs Pinochet no poder no Chile.

Neste momento, tudo aquilo que alcançaram está a ser desfeito ou em risco de o ser. No Brasil, Michel Temer tomou de assalto o país e entrega-o à elite corrupta da qual é parte integrante. Na Venezuela, por muito que Nicolas Maduro se afirme como sucessor das políticas de Hugo Chávez, tudo implode com a sua incompetência e com a dependência do petróleo. Nada disto é novo, no entanto; acontece pelo menos desde que a América Latina foi invadida e conquistada pelos europeus, no século XVI. Em As Veias Abertas da América Latina, escrito em 1970 e editado este ano em português pela Antígona, Eduardo Galeano remete a si a tarefa de, num só livro, resumir, por ordem mais ou menos cronológica desde a conquista europeia à contemporaneidade, toda e qualquer forma através da qual a América Latina foi controlada e esgotada por quem, procurando o maior lucro possível, criou um sistema de exploração responsável pela pobreza e pelo subdesenvolvimento da América Latina.

Eduardo Galeano morreu em 2015, mas está há muito no cânone da América Latina, e este é o livro que o colocou nesse pedestal. Bíblia anti-colonialista, anti-capitalista e anti-norte-americana, As Veias Abertas da América Latina é o livro de bolso da esquerda latino-americana, o livro que foi proibido em praticamente todas as ditaduras militares vigentes nestes estados, o livro que, além de por em perspectiva tudo o que se passou nas relações entre os países colonizadores e colonizados, mostra a face dessa história que ainda não desapareceu e se continua a espalhar num neo-colonialismo que continua a sugar para si todo o poder para decidir as vidas dos outros.

A síntese é facilmente resumida no título da primeira secção do livro “A pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra”: face à abundância de recursos naturais presentes na América Latina, ali expostos à mão de semear, os Europeus não resistiram a usurpar tudo, mesmo que outros povos, como os Incas, os Maias, ou outras tribos índias, estivessem já espalhadas por todo o continente.

“Os Índios das Américas somavam não menos de 70 milhões, talvez mais, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois, tinham ficado reduzidos, no total, a apenas 3 milhões e meio.”

O massacre era completo e os que sobreviviam, junto com os escravos africanos que chegavam através do Atlântico, eram usados para explorarem de forma louca os recursos que a terra guardava. Foi a loucura do ouro, da prata, do café, do açúcar (estes dois, ao contrário do mito propagado, trazidos, o primeiro da Etiópia e o segundo da Índia, para a América Latina através da mão dos europeus), mais tarde do petróleo e de tantos outros. Era o culto da monocultura ou da mono-exploração, a América Latina transformada em campo de labuta das necessidades europeias. Explorava-se o que era necessário para os países que se gabavam de ter descoberto um novo mundo. Deixara de se produzir internamente qualquer dos produtos necessários para a sobrevivência dos Latino-Americanos, tendo tudo de ser importado (da Europa, de onde mais poderia ser?) e, portanto, chegando a preços ridiculamente elevados. Cidades formadas por esta cultura, como Potosí, na Bolívia, de onde veio 60% da prata recolhida na segunda metade do século XVI, tornaram-se em cemitérios ao ar livre assim que as reservas minerais se esgotaram. A história de Potosí é a história da América Latina, um pouco por todo o lado, mesmo nos dias de hoje.

Os problemas não ficaram resolvidos aquando da independência destes estados, no entanto. Aliás, mesmo quando, por exemplo, o Brasil era ainda governado pelos portugueses, já as empresas britânicas dominavam toda a exploração natural do país. Não seria de esperar, portanto, que mesmo livres no papel do controlo europeu, os estados latino-americanos se reformulassem ao ponto de terem como exercer controlo sobre as suas políticas. Com o avançar do capitalismo e do mercado livre global, impulsionado primeiro pelo Reino Unido e mais tarde pelos EUA, tudo nesses países, desde as empresas que já eram estrangeiras, aos governos que, tendo de pedir dinheiro no estrangeiro ficavam à mercê das vontades destes, continuava controlado pelos colonizadores, e argumentava-se a inexistência de outra hipótese. “Na América Latina é o normal: entregam-se os recursos em nome da falta de recursos”

Não há, portanto, qualquer surpresa quando nos séculos XX e XXI vemos os EUA, principalmente, a tomar parte activa no controlo das políticas da América Latina. Sempre que ao governo chegava alguém que ameaçava voltar a colocar recursos usurpados pelas empresas norte-americanas ou britânicas, os EUA punham mãos à obra e corriam com esse governo, financiando constantes golpes militares e posteriores ditaduras militares em praticamente todos os países da América Latina. Era este o legado que chegava a este conjunto de nações em 1970, e continua a ser, em muitos aspectos, o legado que chega hoje em 2017.

“Um miúdo esfarrapado observa, com um brilho nos olhos, o maior túnel do mundo, recém-inaugurado no Rio de Janeiro. O miúdo esfarrapado está orgulhoso do seu país, e com razão, mas ele é analfabeto e rouba para comer.”

Cenários como este continuam completamente actuais, e não têm apenas lugar em países da América Latina ou em ex-colónias europeias. Têm lugar inclusive na Europa, mesmo com os lucros retirados por estes países nas suas empreitadas ultramarinas.

“Como nos restantes países da América Latina, a prática das receitas do Fundo Monetário Internacional serviu para que os conquistadores estrangeiros entrassem pisando terra arrasada. Desde o fim da década de 50 do século passado, a recessão económica, a instabilidade monetária, a redução do crédito e a diminuição do poder aquisitivo do mercado interno contribuíram fortemente para deitar por terra a indústria nacional, colocando-a aos pés das empresas imperialistas. Sob o pretexto da mágica estabilização monetária, o Fundo Monetário Internacional, que, de uma maneira interesseira, confunde a febre com a doença, e a inflação, com a crise das estruturas vigentes, impõe na América Latina uma política que agudiza os desequilíbrios, em vez de atenuá-los. Liberaliza o comércio, proibindo os múltiplos câmbios e os convénios de permuta, obriga a contrair até à asfixia os créditos internos, congela os salários e desencoraja a actividade estatal. (…) Em toda a América Latina, o sistema produz muito menos do que necessita consumir, e a inflação é resultado desta impotência estrutural. Mas o FMI não ataca as causas da oferta insuficiente do aparelho de produção, lançando, em vez disso, as suas cargas de cavalaria contra as consequências, esmagando ainda mais a pouca capacidade de consumo do mercado interno de consumo: uma procura excessiva, nestas terras de famintos teria a culpa da inflação.”

Faz isto lembrar alguma coisa?

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