Eduardo Lourenço: o passado, presente e futuro de quem pensa o eu, a cultura e o mundo
Eduardo Lourenço surge como um dos pensadores coevos mais notáveis e reconhecidos em palco académico e no recinto da literatura. Na senda dos filósofos ocidentais, construiu e sedimentou, nos seus préstimos, toda a sua hierarquia pensativa, gerando conceitos e interligando-os numa única e célebre estruturação de identidade. Apesar do caudal de influências, trata-se de uma plena e singular caminhada de pensar, sem dar azo a qualquer textura que o rotule a um dado percurso filosófico. É, desta feita, a formalização de uma peregrinação bem usufruída pelos quatro cantos do mundo, que reforça o valor e o conhecimento deste nome nacional.
Eduardo Lourenço de Faria nasceu na pequena aldeia de São Pedro de Rio Seco, no concelho de Almeida, na Guarda, no dia 23 de maio de 1923. Com origens, assim, na Beira Interior, e numa família tradicional e religiosa, foi o primeiro filho de sete de um capitão de Infantaria, que o levou a ingressar no Colégio Militar, em 1935, pouco após este ter partido para Moçambique, e saindo de lá, com alívio e sequioso de liberdade, em 1940. Antes, havia vivido na cidade do Porto, e feito os primeiros dois anos de escola na vila onde nasceu, tendo, depois, seguido com a família para a Guarda, onde fez o terceiro ano e, futuramente, o primeiro ano do ensino secundário, voltando a São Pedro de Rio Seco para completar o ensino primário, com distinção no exame final. O desenvolvimento pessoal de Eduardo conheceria especial impulso na Universidade de Coimbra, a partir de 1935, na Faculdade de Ciências, onde se sentiu interessado em entrar na Escola do Exército. O seu pai, porém, havia-lhe incutido o gosto pela literatura e pela História, desembocando na convivência dele com a obra de Júlio Dinis. No entanto, viria a desistir dos seus cursos preparatórios, e preferiu prestar provas de aptidão para o curso onde se viria a graduar, apesar da fama informal da qual gozava.
Desta forma, licenciar-se-ia em Ciências Histórico-Filosóficas no ano de 1946, com a tese “O Segredo da Dialética”, onde discutiu e problematizou o idealismo do filósofo alemão Georg Hegel. Aqui, privaria e conviveria num ambiente bastante aberto, refletindo o oposto da repressão que pairava no espectro nacional. Reunidas estas condições, deu uso à sua mundividência crítica e à autonomia do seu pensamento, e sentiu-se seduzido pela reflexão cultural, eventualidade pela qual havia nutrido uma paixão desde pequeno, e tornou-se assistente da Faculdade de Letras desta universidade entre os anos de 1947 e 1953, tendo trabalhado com o docente Joaquim de Carvalho. Em simultâneo, prestou serviço militar na Guarda no Batalhão de Caçadores, assumindo a função de alferes miliciano. Neste período, e para além de publicar “Crónicas Heterodoxas” no periódico Diário de Coimbra, redigiu “Heterodoxia” (1949), que inclui parte da sua tese de graduação; e colaborou com a revista Vértice, na qual verteu, para além de parte desta obra, alguma poesia da sua autoria. Como o próprio título indica, a obra contraria o catolicismo e o salazarismo de então, para além do marxismo oposto a ambos, e confronta a ortodoxia de então, apelando à aceitação e à abertura em relação à pluralidade de soluções e de propostas sociopolíticas.
É no ano que publica esta obra que se muda para Bordéus, em França, onde estagia na sua universidade, beneficiando de uma bolsa proveniente do Programa Fullbright, destinado a aumentar o intercâmbio de gentes e de conhecimentos. No seu caso, a candidatura deveu-se à sua vontade de colaborar com o Corpus des Philosophes Français, ajudando a reeditar parte da obra do filósofo Nicolas Malebranche, tendo prosseguido com outra bolsa, desta vez referente à Alta Cultura. Importa reforçar que este exílio foi voluntário, provindo do desencantamento sentido pelo docente em relação à realidade académica nacional de então, para além do desprimor que a filosofia possuía em terras nacionais, e, por isso, não chegou a apresentar a sua tese de doutoramento “Tempo e Verdade”. Entre 1953 e 1955, desloca-se às universidades de Hamburgo e de Heidelberg, na Alemanha, para além da de Montpellier (1956-58), novamente em França, para servir como leitor de Cultura Portuguesa. Em Bordéus, conhece e casa-se com Annie Salamon, com quem passaria a viver definitivamente no país gaulês no ano de 1960, e com quem, em 1966, adotou Gil. Antes, foi professor convidado de Filosofia na Universidade Federal de Bahia durante um ano. Vivendo na comuna francesa de Vence a partir do ano de 1965, voltou às funções de leitor na Université Grenoble Alpes, e passou a ser mestre assistente e de conferências na University of Nice Sophia Antipolis, onde se tornou professor jubilado em 1988.
Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.
Eduardo Lourenço in “Nós e a Europa ou as Duas Razões” (1988)
Apesar desta ligação presencial e física a França, Lourenço nunca se desvinculou de Portugal, para onde virou grande parte da sua produção cultural e académica, tendo aflorado poesia, e, em especial, a de Fernando Pessoa. Sobre estes, destacam-se “Pessoa Revisitado – Leitura Estruturada do Drama em Gente” (1974, ganhando o Prémio Casa da Imprensa), e “Fernando Rei da Nossa Baviera” (1986). Porém, Pessoa não foi caso virgem, pois o filósofo debruçou-se, também, sobre a extensa obra de Miguel Torga, de Agustina Bessa-Luís, de José Saramago, de Jorge de Sena, entre outros. Para além destes, assinou, para o Comércio do Porto “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?” (1960); e estudou o neorrealismo em “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista” (1968), destacando-se os dois pelo seu cariz controverso e pioneiro numa perspetiva de abordagem. Foi um tempo em que visualizava a literatura vigente como “a geração da utopia”, a mesma literatura de cariz neo-realista. Viria, também, a fazer parte da revista “Árvore”, onde apresentou o ensaio “Esfinge ou a Poesia”, sobre a faceta esfíngica da poesia, em que o homem procura dar rosto e essência à existência de uma história, de um conjunto de circunstâncias. Desta forma, o poeta vai em busca de dar definição e resolução ao tempo e à morte, conferindo-lhe magia e materialização para além da ação. É uma função divinizadora que a palavra assume, e que percorre os anos 60, em especial na também revista “O Tempo e o Modo”, tendo a crítica sentido no casamento da vida com a morte, e na leitura das luzes imanentes em ambas.
Não obstante, viria a deslocar-se a Portugal como professor convidado da Universidade Nova de Lisboa, orientando um seminário de Literatura Contemporânea. Após este ser bem-sucedido, e já depois do 25 de abril, é convidado para lecionar nas Faculdades de Letras do Porto, de Coimbra, e de Lisboa, tendo recusado todos os convites; para além de um outro para se encarregar do Ministério da Cultura do VI Governo Provisório. Porém, a sua expressão política ganha substância quando adere à União de Esquerda para a Democracia Socialista, um partido político português. Assim apoiou a candidatura de Ramalho Eanes à presidência da República, em 1980, e a de Maria de Lourdes Pintassilgo cinco anos depois; para além da de Mário Soares nas presidenciais. Pelo meio, fez parte do grupo de intelectuais que apoiou a formação do Partido Renovador Democrático.
Perto dos anos 90, passou a trabalhar de perto com as instâncias nacionais, sendo conselheiro cultural da Embaixada Portuguesa de Roma até 1991, onde recebeu o Prix Européen de l’essai Charles-Veillon, graças à obra “Nós e a Europa ou as Duas Razões”. No ano seguinte, publica “Montaigne 1533-1592”, em parceria com Pierre Botineau, para além de fotografias de Jean-Luc Chapin, onde disseca o pensamento deste filósofo francês. A partir de 1999, passou a ser administrador não-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, pouco após ter sido galardoado com o Prémio Camões, em 1996. A esta honra, seguiu-se o Prémio Pessoa, em 2011, para além de uma série de honras académicas e literárias, tais como doutoramentos Honoris Causa em quatro países, e o Prémio Vergílio Ferreira, em 2001. Tanto em Portugal como em França este académico recebeu honras estatais, tais como Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (1981, recebendo a Grã-Cruz em 2003), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (1992), e a da Ordem da Liberdade em 2014; para além de Oficial da Ordre National du Mérite (1996), e Cavaleiro da Ordre des Arts et des Lettres (2000), e da Ordre National de la Légion d’Honneur (2002).
Em forma de reconhecimento pelo seu papel na atividade filosófica, académica e cultural, o Centro de Estudos Ibéricos criou, no ano de 2005, o Prémio Eduardo Lourenço, destinado a galardoar entidades interventivas no plano social e cultural, nomeadamente no que toca à convergência e cooperação entre Portugal e Espanha. Em 2015, a Casa da Escrita, situada em Coimbra, passou a ter a Sala Eduardo Lourenço, que alberga à volta de três milhares de livros da sua autoria; no ano seguinte, o seu pensamento passou a ter repercussão na atualidade política, sendo conselheiro de Estado para o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
A cultura serve para nos despir de toda a arrogância, particularmente essa que consiste em imaginar que, sendo cultivados, encontramos Deus. A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constante relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de desencantamento. Só para que não caiamos no único pecado, que é verdadeiramente o pecado contra o espírito: o orgulho.
Eduardo Lourenço, em entrevista a Anabela Mota Ribeiro (2003)
No que toca àquilo que, efetivamente, pensou, concebeu, e redigiu, Eduardo Lourenço não descurou a influência, para além de nomes franceses, de filósofos, como os existencialistas Soren Kierkegaard e Jean Paul-Sartre, os alemães Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, o fenomenólogo Edmund Husserl, e das bases greco-romanas; para além da literatura de Franz Kafka e de Fiodor Dostoievski, nomes que o levaram a ser associado ao existencialismo. Para isso, contribuiu a profícua amizade profissional e pessoal com o autor Vergílio Ferreira, que bebeu do mesmo copo de inspirações. Porém, o seu pensamento quis distanciar-se às diferentes correntes teóricas existentes, e assumiu-se independente do historicismo e da objetividade que predominava então. De certa forma, acabou por convergir com o do seu amigo Vergílio Ferreira no neorrealismo, embora tenha filtrado e estudado, num contexto nacional, as motivações dos portugueses que passavam mais despercebidas. Todos os ensaios que redigiu e apresentou passam, por isso, por uma minuciosa análise das realidades interdisciplinares, tais como na arte e na sociedade. Analisando de fora para dentro, tornou-se numa charneira naquilo que era o estudo e a comunicação das manifestações e das expressões da cultura portuguesa pelo mundo. A expressão da cultura portuguesa aproxima-se das várias que o continente europeu engloba no seu núcleo, unidas, muitas delas, pelo idioma. Uma delas derivaria do latim, e uniu Portugal, Espanha, França e Itália num corpo de influências e de inspirações bastante íntimo entre si.
O pensamento político que deteve, embora mais próximo da esquerda, não se coibia de criticar qualquer postura que considerava errada ou menos acertada, assentando numa moralidade bem presente e sempre consciente de uma linha de atuação coerente. O seu olhar inquieto e distinto permitiu uma lufada de ar fresco, naquilo que é a visualização da realidade nacional. Chocado pela pluralidade de interesses em cima da mesa das variáveis contemporâneas, procurou desvendar e detetar os palcos de referências e de erudições camuflados em toda a envolvência promíscua e baça da atualidade. Essa clarificação levou a que muitos intelectuais portugueses partilhassem o apreço pelos seus esforços académicos e práticos. Tudo isto sem descurar o pendor religioso e cultural das questões discutidas e estudadas nas suas obras, tal e qual como a questão da laicidade no prisma sociopolítico. Lourenço acaba por a considerar como uma forma de luta em relação à opressão advinda da religião e da política, especialmente na sua união bicéfala.
Ainda assim, aponta para a importância da existência de crenças, capazes de controlar o ritmo desenfreado de dúvidas que, eventualmente, conduzem ao desencanto individual, e ao alimento de ódios indagadores e opositores da realidade. No auge das crenças, porém, existe a sua deturpação, que vira de quadrante para a ideologia política e social, descredibilizando o ideal transcendental e metafísico das próprias. Pelo meio, não esquece as vicissitudes capitalistas, onde não deixa passar em claro a mercantilização de várias áreas do saber e do praticar, tal como o desporto. Entre a idolatria e um jogo de interesses, destaca a honra helénica que esta área possuía nas suas origens, associada ao fair-play e à representação de comunidades e de identidades. No entanto, toda a transformação da própria atividade e das suas entidades em unidades industrializadas levam o pensador a crer na primazia dada ao lucro e à mercadoria do que aos valores e às emoções transmitidas e detidas na própria representação desportiva.
A sua crítica literária assentou sempre na compreensão da tragédia advinda deste tipo de criação, para além de uma erudição capaz de confrontar várias tradições culturais e narrativas. A crítica é capaz, também, de ir de encontro à errância do próprio texto, seguindo as pisadas que a imaginação singular e plural percorre no intento de refletir e construir a própria literatura. Este estudo sobre a condução da obra de diferentes narradores levou-o a tornar-se um dos mais profícuos e valorosos ensaístas europeus, culminando em “O Canto do Signo: Existência e Literatura” (1994). A sua prática ensaísta culmina, então, no aspeto da realidade nacional, discutindo as imagens forjadas através das várias manifestações culturais e sociais. Tudo isto rebusca a obra de nomes consagrados, como Luís de Camões, Fernando Pessoa e Antero de Quental, cruzando projeções e idealizações daquilo que seria o rumo nacional.
Um dos principais objetivos da escrita, para o pensador, é, acima de tudo, ligar o pensamento à terra, mesmo que seja para o enterrar. Porém, vem ao de cima a necessidade de deixar um rastilho, capaz de despertar emoção no outro lado, a partir dos olhos de quem lê. É essa peripécia, esse drama, que bebe na sua escrita, tanto ao nível da poesia, como no palco da crítica, e que o orienta a assumir a paixão inveterada pela História, essencialmente na autoria romancista desta. Foi por aí, também, que alimentou o desejo de ser romancista, embora nunca se tenha propiciado para além das suas estrofes. A procura pelo sentido das coisas foi sempre aquilo que o moveu, algo que se afasta de uma necessidade de construção narrativa, e algo que a poesia conseguia produzir de forma incontestável. Um sentido que é percebido e percecionado através da língua, meio de caraterização e de pertença a uma certa cultural. É a mesma capaz de ir para além de qualquer identidade individual, desvinculada das demais na sua unicidade, na sua idiossincrasia intrínseca. A escrita ajuda, dessa forma, a formar, formular e compilar memórias, que ajudam a explicar e a estender o legado dessa demanda e descoberta de coisas, e, no auge da sua prática, a compor aquilo que é, por si, uma cultura.
Este saber congregado e consagrado origina uma construção de uma identidade que, apesar de reconhecidamente portuguesa, não descura a universalidade, e a modéstia suficiente para se posicionar como parte de um povo no meio de uma plenitude de povos. Não obstante, valoriza o espírito de descoberta e de empreendedorismo, destacando o tempo dos Descobrimentos na afirmação de uma “maravilhosa imperfeição humana”, e exortando uma reabordagem daquilo que é a identidade nacional contemporânea (“O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português“, de 1992). Uma imperfeição que se vai expressando nos dias de hoje, mais carnavalescos do que trágicos, e que assenta numa cultura de esquecimento através de subterfúgios, como a televisão (a crítica dirige-se à sua má e desenfreada utilização). Um esquecimento que refuta a herança civilizacional e cultural, vulgarizando o esforço efetuado por gerações anteriores, e que é fruto de uma alienação consumista e, de certa medida, apocalíptica. Desse tédio, nasce uma tendência para aflorar o pendor dionisíaco da alma, ou seja, aquela que romantiza o mal. Para isso, dá o exemplo da Alemanha, país de grande atividade cultural, mas onde despoletou o Holocausto. Porém, destaca o perfecionismo da juventude, que, canalizada para a própria atividade artística e útil no contexto social, está capacitada a desenvolver grandes feitos, e obras de importante valia, indicativas da progressão existente nas mentalidades e nos meios à disposição.
Eduardo Lourenço é um dos nomes mais louvados e prestigiados no meio académico e identitário e diferenciado. O português contou com uma base geográfica e cultural rica para dar vida e asas ao seu trabalho, extenso e sintonizado com as três dimensões temporais, passado, presente e futuro. Toda a realidade acaba escalpelizada e explicada pelo filósofo, que não se coíbe de traçar uma conceptualização muito próprio daquilo que perceciona, estendendo os horizontes para além da geografia e da tangibilidade, e assumindo a sociedade com objeto de estudo e de reflexão. A fundamentação acaba por estar entregue a um vasto e numeroso espólio de bases literárias, levando aos célebres ensaios, que credibilizam e autenticam o pensamento interdisciplinar e pluridimensional de um pensador de distinto valor.