El Madrileño: o culminar da personagem de C. Tangana

por Bernardo Crastes,    14 Março, 2021
<i>El Madrileño</i>: o culminar da personagem de C. Tangana
“El Madrileño”, capa do disco de C. Tangana
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C. Tangana é verdadeiramente um artista dos seus tempos. Fiel ao espectro de atenção da geração mais consumidora de música urbana, lança um single a cada mês e meio, tornando a sua lista de lançamentos do Spotify numa das mais diversificadas da música contemporânea. Por entre trap, hip hop, reggaeton, pop orelhuda e até o ocasional funk, Antón Álvarez vai desenhando uma carreira cujo objectivo é, literalmente, fazer hits. Ele sabe o que está na moda e é precisamente isso que persegue. No entanto, a sua música não se resigna a ser uma pastiche desenxabida do topo das tabelas. A sua voz sui generis — nasalada e potencialmente irritante —, um particular sentido de humor, produção apurada e colaborações certeiras (alô, Rosalía) contribuem para destacar a música de uma das personagens mais cativantes e bem construídas da música espanhola actual.

Se os seus primeiros lançamentos (um álbum e uma mixtape) pecam pela repetitividade e fugacidade associada ao trap que os povoa, o variado chorrilho de singles dos últimos cinco anos revela-se bem mais interessante. É essa onda bem fluida que Álvarez navega até um segundo disco que realmente parece ser o culminar da personagem de C. Tangana. El Madrileño — uma das alcunhas do artista — é o título que não só concentra as diferentes facetas do artista em si, como espelha a diversidade de uma metrópole como Madrid, que Tangana usa como base para estender pontes entre o hispanismo e expressões da cultura latina.

A música contemporânea ainda é o foco, mas há uma muito maior prevalência do tradicional; algo já antes explorado no delicioso single de 2018, “Un Veneno” — o bolero que tem em El Madrileño uma versão nova com a participação de José Feliciano, ícone do Natal cantado em castelhano. Aliás, o elenco de colaborações é de luxo.

Comecemos pelo pináculo do disco: Gipsy Kings. “Ingobernable” é uma canção que inegavelmente deve à rumba flamenca do grupo francês (sim, os Gipsy Kings são franceses de nacionalidade, mas claro, ciganos de coração). No entanto, C. Tangana reclama-a como sua, cavalgando a letra gloriosa e recrutando o novo produtor-maravilha de Espanha, Alizzz, para adicionar profundidade às guitarras corridas e palmas que nos enchem os ouvidos. Quando o refrão entra em toda a sua força, estamos perante a sequela espiritual de “Volare” e uma canção que unirá novos e velhos. É já a minha favorita do ano, até ver.

Há outras ocasiões em que Tangana assume o ambiente dos colaboradores que recruta, mas cujos resultados parecem mais uma inversão dos papéis. Por exemplo, “Hong Kong” é um Andrés Calamaro ft. C. Tangana, com o rock rouco do argentino a marcar o ponto final do disco numa nota épica, cuja apreciação depende do gosto pessoal, mas não há como negar a sua pujança e letras coloridas. Já em “Nominao”, é o pop rock do cantautor uruguaio Jorge Drexler que assume o controlo, numa das colaborações mais inesperadas do disco. Aí, Drexler apresenta um swagger confiante e que deixa Tangana mais na sombra. Estas aberturas de caminho aos veteranos da música não são sinal de fraqueza artística, mas antes demonstram uma sensatez de Anton, que sabe quando e como deve tomar as rédeas. Mesmo fora dos holofotes, o controlo sobre a sua visão criativa faz-se sentir.

Essa visão parece ter sido a de representar uma masculinidade moderna. Sem afirmações ou epifanias grandiosas, mas também não sem um certo bragadoccio de macho latino, o artista reflecte sobre a fama, a atracção, o desgosto ou outras coisas comuns a nós todos (bem, talvez não a fama). Tão depressa estamos em cima, como logo nos encontramos cara-a-cara com a saudade, o ciúme ou o desgosto. O lado mais auto-depreciativo de canções como “Te Olvidaste” ou “Párteme la Cara” é uma refrescante recordação de que todos estamos mais em baixo de vez em quando. A melancolia que caracteriza os convidados — respectivamente, Omar Apollo e Ed Maverick — assenta bem a Tangana, que demonstra não precisar de cuspir barras para impressionar. No entanto, sente-se a falta de alguma acutilância lírica, quiçá melhor representada pelo conterrâneo DELLAFUENTE.

Do lado dos prazeres mais terrenos, o rapper tornado galã da música espanhola brilha ao fazer um desvio para pegar na bossa nova de Toquinho e menear-se na ode à lascívia que é “Comerte Entera”. Até há espaço para um sample de funk brasileiro. “Muriendo de Envidia”, a mais bela serenata do disco, leva-nos à Cuba de Eliades Ochoa, ex-membro dos Buena Vista Social Club, para cruzar rumba e salsa com uma ponte de electrónica atmosférica. Tudo isto em três minutinhos que funcionam às mil maravilhas.

Há muito para desempacotar aqui, mas El Madrileño, um dos discos mais esperados da pop espanhola, não desilude musicalmente. A surpresa inicial não se perde ao longo de audições repetidas, que apenas servem para desfrutar mais e mais de um disco feito para ser um hit. C. Tangana fê-lo de novo, e a prova está em loop nos nossos ouvidos.

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