Eleições: o barulho que fazem os mais calados

por Nelson Nunes,    17 Fevereiro, 2024
Eleições: o barulho que fazem os mais calados
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Devíamos prestar mais atenção aos silenciosos, para compreender melhor o tipo de barulho que fazem. Não é novidade que os números da abstenção em Portugal são elevadíssimos — e não é um problema de hoje: ao longo das últimas décadas, foram raras as ocasiões em que a percentagem de abstencionistas ficou aquém dos quarenta por cento.

É habitual ouvirmos comentadores, jornalistas e até políticos a desconsiderar os abstencionistas como meros desinteressados — pessoas para quem a política não importa ou, num tom perigosamente paternalista, pessoas que não entendem as ramificações de uma decisão política ou da participação eleitoral. As pessoas não vão às urnas porque são limitadas, coitadinhas — muitas vezes, parece ser esse o subtexto de afirmações como “os abstencionistas não se revêem no sistema”. Na verdade, frases como esta soam-me a desculpa preguiçosa. 

Olhemos para os números: de acordo com a Pordata, houve 48,6 por cento de abstencionistas em Portugal em 2022. Nesse ano, éramos dez milhões e meio de gente. Descontando cerca de dois milhões de jovens até aos 18 anos, estes números significam que aproximadamente quatro milhões e cem mil pessoas não votaram. Achar que quatro milhões de pessoas são ignorantes não é só paternalista — é simplista, tonto e perigoso. 

O que quero dizer é que têm de existir motivos mais importantes e profundos que fazem com que as pessoas deixem de votar. Porque, da mesma forma que os votantes não serão (todos) uns iluminados, também os abstencionistas não podem ser (todos) ignorantes. Todavia, não sabemos mais sobre os abstencionistas porque não os ouvimos com seriedade e critério. Não nos damos ao trabalho de perceber os seus dramas, os seus contextos, os seus constrangimentos. Não nos damos ao trabalho de compreender que muitos poderão não votar por não ter como se dirigir às mesas de voto (pensemos na ruralidade e no isolamento dos idosos que não conduzem e que têm dificuldades em fazer cinco quilómetros, como acontece na aldeia dos meus avós e em tantas outras por esse país). Não nos damos ao trabalho de compreender que um jovem que não tem apelo emocional quando ouve falar de um orçamento de Estado pode, na verdade, estar condicionado pelo seu contexto familiar e que tem problemas muito maiores para enfrentar do que o défice do sítio onde habita. Não nos damos ao trabalho de compreender que uma pessoa em Melgaço olha para um rosto televisivo como uma figura inalcançável, da mesma forma que uma pessoa de Lisboa pensa no Elvis ou no Elon Musk. Pessoas que não são exactamente pessoas, mas sim entidades que existem num outro plano da existência. E que, por isso, não falam exactamente a mesma língua que nós. 

Quatro milhões de pessoas é muita gente — é muito voto. E é preciso tirá-las do ângulo morto de visibilidade. Enquanto nós — e uso o plural majestático para falar da sociedade civil, do jornalista e, em última análise, do político — não nos aproximarmos do abstencionista e não o tratarmos como adulto e pessoa ciente das suas decisões, nunca teremos a sua atenção nem o levaremos às urnas e ao debate político.

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