Em ‘El Mal Querer’, Rosalía dá nova vida ao tradicional flamenco
A música latina tem vindo conquistar os tops mandatários pop, e ainda que sem grande distanciamento da insipidez da música popular americana, crédito tem de ser dado onde é devido: os ritmos viscero-sexuais do reggaeton – agora já bem cansado – abriram as portas para um consumo musical mainstream não estabelecido pela linguagem, esta que deixou de ser uma barreira. Tirando o melhor partido desta introdução, El Mal Querer de Rosalía Vila Tobella destaca-se com estelar distinção. Tradicionalmente treinada em flamenco, a cantora de 25 anos lançou o seu primeiro LP, Los Ángeles, no passado ano, álbum esse que fez jus ao seu treino musical; através de guitarras dedilhadas, Rosalia fundiu aquilo que o género em que surgiu lhe impregnou (“El Redentor”), com a leveza da cantiga folk descomplicada (“Te Venero”); uma espécie de recordação do passado mourisco por via de um folk José González-iano nos tempos de Veneer.
Mas na medida em que Los Ángeles na sua subtil elegância atraiu o ouvido do atento melómano, El Mal Querer chama um público caracteristicamente mais eclético. Nele, Rosalía conceptualiza uma história de amor predestinado a falhar, contada capítulo a capítulo (música a música) e cujo dissabor se revê na oscilação estilística sonora. A experimentação sempre presente foi conseguida em muito pela colaboração com El Guincho, produtor espanhol, notório pelo seu trabalho com beats pop latino e tropicalia. Juntos desenvolvem uma narrativa romântica de guitarra clássica e palmas envoltas em percursores electrónicas, samples e over-produção vocal.
“MALAMENTE – Cap 1: Augurio” enquanto nos descreve o mau pressagio que se avizinha, começa o álbum sem quaisquer reticências. No seu papel de single premonitório, é também o tema mais imediato do mesmo. É aditiva e incita o singalong de uma maneira que “Los Ángeles” não procurara abordar; uma batida que, não fosse o histórico musical da cantora e do produtor, poderia ter sido redirecionada para um tema de R&B contemporâneo. A urgência ritmada das palmas e a imposição da voz lançam o mote para o álbum e nele tornam-se constantes. Com a passagem para o compromisso de “QUE NO SALGA LA LUNA – Cap 2: Boda”, uma análise sobre o noivado e o casamento, a tradição espanhola dá de sí; as notas altas e o vibrato de Rosalía fazem-se acompanhar dos elementos instrumentais que tornam esta a música mais caracteristicamente flamenca do compêndio. Há uma certa inquietação, tanto melódica como lírica – Qué suerte la que yo tuve / El día que la encontre / Lo he señala’íto a punta de navaja / Prima, sobre la pared –, importante conector nesta catártica história.
Ora, é depois da celebração matrimonial que a desconfiança começa a ser introduzida. “PIENSO EM TU MIRÁ – Cap 3: Celos” relata o ciúme sobre a indulgência da voz. A desmotivação reflete-se novamente, desta vez pela batida urbana simplificada, que passa a ira em “DE AQUÍ NO SALES – Cap 4: Disputa”, o trunfo experimental deste álbum. Há uma clara influência a nível de produção, com a utilização dos motores como base rítmica, o autotune e as samples vocais a recordarem trabalhos selectivos de Aphex Twin, Arca e James Blake. A agressividade transforma-se em mágoa com os arranjos orquestrais lacrimejantes de “RENIEGO – Cap 5: Lamento”, onde também Rosália se manifesta vulnerável vocalmente, com os vibratos a emular tristeza. Destas construções, e após um curto interlúdio, “PRESO – Cap 6: Claurura” narrado por Rossy de Palma, Rosalía volta a desbravar o universo do pop em “BAGDAD – Cap 7: Liturgia”, com uma sample da “Cry Me A River” de Justin Timberlake. Nele, a singularidade surge com a transição desse tom inflamado para os coros celestiais Enya-nos durante a entoação de “Junta las palmas y las separa”, referindo-se à própria oração.
“DI MI NOMBRE – Cap 8: Éxtasis” e “MALDICION – Cap 10: Cordura” remetem novamente à influência de James Blake. Enquanto a primeira canaliza o seu uso de autotune e overdubs, na segunda há uma ligação com “Life round Here”, pela progressão de notas e voz do sintetizador, mais proeminente na música até que a própria sample utilizada da “Answers Me” de Arthur Russell – a mesma utilizada por Kanye West em “30 Hours”. É de frisar contudo que esta abundância de referências nunca cai em repetição, ou falta de originalidade; ao invés, reiteram a atenção tida ao passado e presente musical durante a construção de El Mal Querer, homenageando-o com um novo canto.
Como fruto deste amor pecaminoso, resulta “NANA – Cap 9: Conception”, cuja melodia de berço tradicional flamenca se desenvolve através dos coros e as palavras de Rosalía, e a partir do qual ha um ponto de viragem na narrativa: uma revitalização da protagonista, que termina a sua historia “empoderando-se” em “A NINGÚN HOMBRE – Cap 11: Poder” – “A ningún hombre consiento / Que dicte mi sentencia / Solo Dios puede juzgarme / Solo a él debo obediencia”.
El Mal Querer é a expressão da modernização na sua forma mais pura; honra um passado histórico, elevando a forma e permitindo-a tornar-se parte deste novo quotidiano; ganha pelo espectro musical a que se expande, a excentricidade com que desafia o hit radiofónico (“MALAMENTE”, “PIENSO EM TU MIRÁ”, “DI MI NOMBRE”), a elegância com que celebra a produção de artistas contemporâneos (“BAGDAD”, “MALDICION”), a justiça com que utiliza a música tradicional espanhola (“QUE NO SALGA LA LUNA”) e a torna especial (“RENIEGO”). Fá-lo ainda enquanto conta uma história narrada emotivamente e sem lapsos no enredo. Esta articulação faz de El Mal Quer certamente um dos mais complexos e completos álbuns dos últimos anos, e de Rosalía o mais recente nome a quebrar a maldição do segundo álbum.