Éme cantou-nos o campo nas catacumbas da cidade
Estamos no coração de Lisboa, debaixo da Rua do Alecrim; mas a música tem o poder de recontextualizar os lugares, e de nos transportar. A sonoridade de Éme foca-se num certo dualismo entre o rural e o urbano – as letras e os timbres contribuindo para este processo. Embora explorando um cruzamento de diversas influências musicais, acaba sempre por tender mais para o lado da música popular portuguesa – assinatura luminosa do seu som. Isto acontece quer no seu álbum Domingo à Tarde, o bonito e inspirado trabalho que nos apresentou o ano passado; quer ao vivo, como se tornou evidente no concerto que deu quinta-feira à noite (22 de Março) no Musicbox.
Ao vivo, muita dessa energia do interior do país é convocada pela presença alternada do cavaquinho e da flauta. A presença de ambos os instrumentos são, por si só, garantia de que o tédio não pisará o palco, embora a interpretação da canção com esse mesmo nome (“Tédio”) acabe por ser um dos momentos do concerto.
Éme arriscou na estrutura desta noite no MusicBox. Não tanto na introdução, garantida por breves showcases dos dois membros da sua banda que interpretaram canções suas, em jeito de aquecimento: primeiro Lucía Vives, a baterista; depois Lourenço Crespo, teclista – este último particularmente inspirado, insuflando as teclas de alma, num dinâmico e sentido jogo com a ousada performance vocal. Mas, dizíamos, Éme arriscou: numa primeira metade do concerto, tem toda a banda consigo em cima do palco; numa segunda metade, sozinho com a guitarra, exibe esqueletos e esboços de canções, algumas delas pintadas de fresco.
A interpretação da maior parte dos temas de Domingo à Tarde esteve a cargo do colectivo – praticamente o mesmo que se reuniu em estúdio para a gravação (com B Fachada aos comandos da produção), à excepção da baterista. Os temas com cavaquinho são os mais expressivos e balanceados, lufadas de ar fresco que a cidade merece. “Muito chorei eu num domingo à tarde”, música popular de que Éme se apropriou com toda a mestria, surge como montra desta identidade. Funciona e alumia. Também o público se junta ao coro, embora timidamente.
Já na segunda metade, sozinho com a guitarra, inseguro e espontâneo, interpreta meia dúzia de temas. Uma das canções mais bonitas do álbum, “Sem Roupa”, surge ainda mais minimalista, e mesmo imperfeita. Ouvimos um tema de Zeca. Também canções inéditas, para as quais Éme ainda procura as melhores harmonias, e cuja dificuldade de interpretação deixam à mostra a nudez do processo criativo. São embriões, que depois crescem para o que vimos antes, no seio de uma banda de som cheio e apurado.
Mas há alegria e energia contangiantes, uma pureza difícil de descrever, manifesta na química do conjunto. A música de Éme, no palco do Musicbox, mostrou-se como é: tradicional e progressiva, num limbo estranho e motivante, contemporâneo e necessário.
Actualizado às 18:02h