Ensaio. O bem essencial para preservar a democracia

por André Tenente,    25 Junho, 2023
Ensaio. O bem essencial para preservar a democracia
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Não poucas vezes discutimos a importância da cultura para uma sociedade democrática, diversa e comunitária. Voam sobre nós as mais diversas questões, algumas com respostas inacabadas e soluções por vir. O sector cultural e os artistas são subsidiodependentes? Devemos apoiar a arte “que ninguém quer ver”? 1% do Orçamento do Estado para a cultura é justo? Devem as empresas apoiar mais este sector?

Como em tantos assuntos, a opinião pública, através das redes sociais ou do parlamento, divide-se entre duas posições genéricas: ou a cultura é algo essencial que o Estado deve preservar e incentivar, por um lado, ou a cultura deve ser encarada como um produto inserido num mercado livre, mesmo que regulado, que obedeça às leis da oferta e da procura.

É neste debate simplista entre a receita e a despesa, o lucro ou o prejuízo, que reside a ideia de que alguma arte “que ninguém quer ver” subsiste por causa de um Estado despesista que decide gastar dinheiro em coisas que não valem a pena. Fica a ideia de que são gastos desnecessários. Com estas ideias muito perto do populismo, excluímo-nos do debate mais aprofundado que compreende o ser humano nas suas diversas dimensões. Rejeitamos aquilo que a História nos ensina e deixamo-nos ficar na crença de que as pessoas são o reflexo do que os dados nos revelam, e não o contrário.

Começo a imaginar o que seria da economia de um país que investe 1% do Orçamento de Estado anual — ou quiçá essa percentagem do PIB — no sector cultural.

Pequeno suspiro. Sento-me numa poltrona azul. Olho em volta, onde está a minha estante de livros. Do lado direito, um poster de Rui Horta diz em letras garrafais que “A cultura faz das pessoas, pessoas”. Se assim é, porque continuamos no estado em que estamos? Reflicto.

O país que temos

Falemos de números: segundo o Eurostat, o investimento público no sector cultural em Portugal é o quarto mais baixo da União Europeia (UE), abaixo da média de 0,5%. Ao mesmo tempo, se compararmos o investimento em serviços culturais com o investimento em recreação e desporto, Portugal é 1 de 2 países da UE no qual o investimento em cultura é mais baixo do que em desporto ou recreação. O INE diz-nos que o Valor Acrescentado Bruto nacional, ou seja, o impacto real da cultura na economia portuguesa, nos anos de 2018 e 2019 — anos pré-pandemia que para efeitos estatísticos são relevantes — foi maior que o sector da agricultura, silvicultura e pesca.

Estes dados sustentam duas teses não excludentes: investe-se pouco no sector primário e a cultura contribui para o crescimento da economia portuguesa numa escala bastante favorável. É o segundo factor que quero focar.

Não se faz cultura sem a certeza de que os artistas têm condições dignas para viver.”

Podemos fazer o exercício de imaginar um país onde investimos ainda menos no nosso sector cultural e criativo. Não seria muito difícil imaginar que vários museus fechariam as suas portas; algumas companhias de teatro, dança ou circo teriam de sucumbir — ou decidir mostrar “o que as pessoas querem ver” — a RTP teria apenas um canal generalista e pouco mais; o cinema português não chegaria ao topo dos grandes festivais europeus… E por aí fora.

Pensemos em exemplos concretos: existiriam espectáculos de teatro que incluíssem populações excluídas ou marginalizadas da sociedade para lhes dar voz, como faz, por exemplo, a Terra Amarela, que trabalha com atores e atrizes com deficiência? Se imaginarmos que um sector cultural sucumbe às leis da oferta e da procura, haveria lugar para o projecto “Ópera na Prisão” ou para o Corpo em Cadeia que dá palco a reclusos e os (re)insere na comunidade? E Cem Soldos seria a mesma coisa sem o Festival Bons Sons?

Se podemos supor que o sector cultural deve ser auto-suficiente — porque de alguma forma o mundo é só despesa e receita — é legítimo colocar a possibilidade de, nesse caso, considerarmos aceitável excluir determinadas expressões artísticas ou projectos de inclusão.

Seriam mais as pessoas excluídas, os territórios abandonados, a reflexão crítica cada vez mais parca, o olhar provocatório para o que nos rodeia extinto e a empatia em vias de extinção. E isso é a escolha de um país onde não quero viver.

Há espaço para a esperança de uma sociedade que dá prioridade e valor à cultura, como um sector essencial para o desenvolvimento do país e da democracia.”

Em 2023, o Barómetro da Gerador conclui que oito em cada dez portugueses acreditam que “a cultura e as artes contribuem para que as pessoas estejam mais aptas a resolver problemas” ao longo da sua vida pessoal e profissional, o que não é um dado de somenos. Em 2022, o mesmo estudo considera que “a cultura tem uma função na sociedade próxima da educação”. Se os dados também nos dizem isto, há espaço para a esperança de uma sociedade que dá prioridade e valor à cultura, como um sector essencial para o desenvolvimento do país e da democracia.

Pausa breve. Vou em direcção à estante onde me deparo com Sophia de Mello Breyner. Agarro no livro e detenho-me um pouco a pensar no que esta escritora disse na Assembleia Constituinte: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas para a transformar — para que o Homem possa construir e construir-se em consciência, em liberdade, e em justiça.”

Volto a sonhar.

O país que queremos

A dimensão subjectiva do ser humano diferencia-nos das máquinas. Necessitamos de nos inserir em comunidade, partilhar os nossos interesses com outros, acirrar-nos em discussões até altas horas nas redes sociais ou ler um livro, maravilhar-nos com um cantor que não necessita de amplificação ou aplaudir um artista que nos fez sentir um pouco menos sós. Importa na escola e ao longo de toda a vida o sentimento de pertença e de comunidade.

Importa reaprendermos a partilhar sonhos: em conjunto, ao longo de séculos, as populações sonharam pela melhoria das condições de vida, pela igualdade entre géneros, pelo acesso tendencialmente gratuito à saúde, pelo fim do racismo, pelos direitos LGBTQIA+, por uma educação de qualidade, por menos impostos e muito mais. Aquilo que nos diverge das máquinas é a capacidade de sonhar e almejar por algo mais, algo que só as artes têm a capacidade de fazer.

A UNESCO não tem dúvidas de que “a cultura e a educação contribuem directamente para o avanço dos direitos humanos, desenvolvimento e paz” mundiais. São as actividades do sector cultural e artístico que “conectam as pessoas” e promovem “a empatia e o pensamento crítico”, refere. A relação umbilical entre a educação e a cultura é mais ou menos aceite pela grande maioria da população. Mas é-o precisamente pela função essencial que tem nas nossas vidas e não apenas na educação primária ou básica. Por isso, é importante fazer dos Projectos Educativos de Escola planeamentos que coloquem a cultura como parte central da formação do ser humano, utilizando as capacidades que as artes e a cultura dão para a apreensão de conhecimentos e competências. Importa alterar a legislação para que a cultura passe a ser parte integrante de um Projecto Educativo e Cultural de Escola.

Cantava-nos José Mário Branco que “Se todo o mundo é composto de mudança, troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança”. O olhar da importância da cultura pode e deve ser transmitido ao longo de todo o percurso educativo, mas também ao longo de toda a vida.

Só com políticas fortes de apoio à oferta e à procura é possível sonhar a transformação.”

O panorama político do nosso país pode estar prestes a alterar-se. Está nos livros, conta-nos a História, ouvimos nas músicas, nas peças de teatro, nos museus, nas notícias, em todo o lado. O nosso país e a nossa população não merecem que nos resignemos.

É por isso premente falar cada vez mais alto sobre importância fulcral de mais investimento no sector cultural, seja através do Orçamento do Estado, seja através de outros tipos de financiamento mais ou menos inovadores. Importa não ignorar que é importante investir cada vez mais naqueles que não são vistos, não se ouvem, estão lá longe ou demasiado perto de nós. Mudar a vida de uma comunidade de 30 pessoas não tem menos valor do que o entretenimento de vários milhares.

Agora que nos aproximamos do fim, olho para lá da janela e imagino um futuro sem uma estação pública de televisão, financiada pelos contribuintes que, em conjunto, pagam na factura da electricidade menos de 3€ por mês.

A missiva já vai longa, caros leitores, mas não podemos deixar escapar a importância fulcral que a RTP tem para Portugal. E é por isso que é pública: não de um Governo transitório, mas do Estado que implica cada um de nós e que pode — e é — escrutinada como mais nenhuma empresa de media. É de realçar o papel da RTP para o Serviço Público de Televisão e de Cultura na diáspora, no apoio ao cinema e audiovisual, na inovação, no apoio aos artistas emergentes, na digitalização e divulgação das Artes Performativas (com a RTP Palco), na preservação do arquivo e da história, numa informação que inclui documentários internacionais e nacionais, em inúmeros canais de rádio para todos os públicos e para todo o país e com a RTP Play, de acesso gratuito e com um catálogo de fazer inveja a muitas congéneres europeias. O problema, segundo alguns, é a obrigação de pagarem 3€/mês na factura da eletricidade mesmo que não usufruam dos serviços. Como se preservar a democracia e a inclusão, garantir informação de qualidade, dar espaço às novas — e velhas gerações — não fosse uma causa de todos.

Sento-me de novo na poltrona. Os livros, lá na estante, contrastam com a chuva que apareceu repentinamente. Com a caneta no queixo, aproveito o pôr do sol para sonhar com um futuro em que as mudanças são concretizáveis. Os livros que me rodeiam, a música que se vai espalhando pelas divisões e os espectáculos que já vi preenchem o vazio que, de vez em quando, se tenta instalar. Está o pensar na cabeça.

Soluções para o futuro

Está para chegar o dia em zque concretizamos os sonhos: onde é salutar ter opiniões divergentes, onde podemos ter voz e ser compreendidos, onde as cidades olham para o seu passado e perspectivam um futuro, onde temos lugar, onde é possível conversar, onde a democracia prevalece para todos, onde a empatia reina face ao egoísmo.

Está por chegar o dia em que os sonhos são concretizados para qualquer pessoa. Para que isso aconteça, é preciso apostar em políticas culturais inovadoras e baseadas em dados e uma nova visão para a cultura no nosso país à beira mar plantado, porta de entrada de tantos, ponto de passagem de tantos outros.

Como se preservar a democracia e a inclusão, garantir informação de qualidade, dar espaço às novas — e velhas gerações — não fosse uma causa de todos.

Aguardamos impacientes pelo reforço e transparência nos apoios sustentados da DGArtes para a atividade artística. Uma mera distribuição de migalhas não garante a fiabilidade e certeza que as instituições necessitam para concretizar o seu trabalho: pensar um projecto cultural para mudar o país não se faz de dois em dois anos, mas sim de uma forma regular. Importa fazer um mapeamento daquilo que o Estado considera como projetos essenciais e apoiá-los condignamente. Para o efeito, precisamos de vincular os trabalhadores precários da cultura — sobretudo no sector empresarial do Estado como é o caso da RTP ou da Lusa – nos quadros da empresa, sob perigo de perdermos as mentes mais inquietas, criativas e inovadoras para outras áreas. Não se faz cultura sem a certeza de que os artistas têm condições dignas para viver.

Está por chegar o dia em que todas as pessoas gozam do seu tempo livre para buscar o “pão para a mente”. Enquanto aguardamos pelas conclusões do estudo-piloto para a implementação da semana de quatro dias (reforma essencial para garantirmos mais tempo à classe trabalhadora e, com isso, incentivar o sector), podemos olhar para fora das nossas fronteiras e implementar um cheque-cultura. Como em Espanha, França e Itália, Portugal pode investir na procura através de um valor monetário atribuído a todas as pessoas que façam 18 anos (ou, com ainda mais ambição, apontar para a faixa etária dos 16 aos 18). Este valor permitiria que as pessoas, no uso da sua liberdade, investissem nas artes e na cultura, contribuindo para o crescimento do seu mundo interior e do sector. Se já está a ser estudada a implementação de um cheque-livro para jovens com 18 anos, porque não adaptar políticas que funcionam fora do nosso país e abranger várias actividades do sector?

Mas só com políticas fortes de apoio à oferta e à procura é possível sonhar a transformação. Quero poder sonhar com um país diferente. Um país que sonha o território e o vive intensamente, aceitando a inquietação do espírito e tornando possível que cada pessoa possa viver em liberdade e sintonia com o tempo presente. O tempo do século XXI da liberdade, do ócio, do direito ao tempo, da natureza e do progresso.

Esse dia vai chegar quando conseguirmos, enquanto comunidade, compreender que a nossa sobrevivência também depende do que não vemos à primeira vista. Quando conseguirmos, todos juntos, aumentar o financiamento público para a cultura e dar-lhe a importância que tem: desde pequenos até à hora da nossa morte.

O sol já se põe e os candeeiros iluminam a cidade. Parou de chover. Amanhã, quando o sol nascer de novo, virão novas lutas, novos anseios e necessidades. Os trabalhadores sairão para os transportes públicos de fones nos ouvidos ou livros debaixo dos braços, os empresários agarram nas suas bicicletas, carros ou motoretas com as notícias do dia a dar na rádio. E o futuro continua por concretizar. Que venham as novas vozes para tornar as democracias inevitáveis e duradouras.

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