Ensaio. O património cultural e a transição digital

por Francisco Duque Lima,    4 Fevereiro, 2022
Ensaio. O património cultural e a transição digital
Imagem baseada numa fotografia de Lorenzo Herrera – Unsplash
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Portugal está atrasado na transposição de um instrumento legal europeu — mais do que aquilo a que já nos acostumara. O país que à data do último relatório de controlo da aplicação do direito da União fora apontado como alvo do maior número de novos processos de infração por transposição tardia da legislação comunitária celebra esta semana 8 meses de atraso em relação ao prazo final para transposição da nova Diretiva dos direitos de autor no Mercado Único Digital (informalmente, a Diretiva MUD).

Apesar de grande parte da discussão à volta da Diretiva MUD se ter centrado em alguns dos seus elementos mais controversos (como as taxas sobre cliques em notícias digitais, ou os upload filters), o novo instrumento europeu apresenta também algumas propostas cruciais para a valorização do papel das instituições de proteção do património cultural no âmbito da estratégia europeia para o Mercado Único Digital.

1. A inércia do Governo 

Ultrapassado o prazo para transposição da Diretiva, a Comissão Europeia decidiu abrir, em junho de 2021, procedimento de infração contra Portugal que, três meses depois, em resposta à pressão, tornou pública a Proposta de Lei nº 114/XIV/3.

A reação parlamentar à proposta de transposição apresentada pela Presidência do Conselho de Ministros foi transversalmente negativa, tendo o Governo sido condenado não só pelo seu atraso na apresentação da proposta, como também pela notória falta de interesse na elaboração da mesma. Pelo BE, a deputada Alexandra Vieira designa-a como um “copiar e colar” da Diretiva, lamentando a “inércia do Governo”; pelo PSD, o deputado Paulo Rios acusa a proposta de ser uma “trapalhada (…) tímida e muito pouco arrojada” que “segue de muito perto a Diretiva”.

Face ao teor das críticas, a ministra da cultura Graça Fonseca explica a proximidade do texto apresentado com o texto original da Diretiva, afirmando que “é o que todos [os Estados-Membros] estão a tentar fazer”. O grande problema desta lógica é que, ao “copiar e colar” o texto da Diretiva, o Governo português optou por rejeitar a margem de implementação propositadamente oferecida pelo instrumento no seu Artigo 25.º, que prevê a compatibilidade das exceções e limitações da Diretiva MUD com um escopo mais amplo, cingindo-se assim a uma transposição do mínimo indispensável, sem qualquer tentativa de conciliar o texto legal com os ambiciosos planos para a transição digital em Portugal.

É de lamentar que o Governo de um país que projeta, para os próximos quatro anos, um investimento de quase 100 milhões de euros na modernização tecnológica de arquivos, museus e redes de conservação, na implementação de sistemas de informação e catálogo integrado em centenas de bibliotecas públicas, e na digitalização de milhões de obras de todo o tipo, se mostre tão pouco ou nada interessado na criação de um quadro legal apto ao aproveitamento do potencial máximo dessas iniciativas.

A ministra justificou ainda o atraso do Governo, esclarecendo que este preferiu aguardar para transpor a diretiva “em quadro de concertação” com outros Estados-Membros, que se encontravam igualmente atrasados. Apesar de a justificação ser reprovável, a ministra não está totalmente errada — o pacote sancionatório da Comissão de que Portugal foi alvo é partilhado com outros 22 Estados-Membros. Ainda assim, Portugal está particularmente atrasado: de acordo com o artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa, a dissolução da Assembleia da República, na sequência do “chumbo” do Orçamento de Estado para 2022, fez caducar a proposta de lei do Governo, pelo que, apurados os resultados das eleições legislativas de janeiro de 2022, o XVIII Governo Constitucional (que deverá ser nomeado algures no próximo mês) terá de apresentar nova proposta ao Parlamento e dar início ao processo de apreciação pública.

Confrontados com um Governo que toma como “opção consciente seguir-se uma lógica de elevada proximidade com o texto original”, rejeitando assim a margem de implementação que lhe é permitida para que adeque as novas regras à sua tradição legal e objetivos políticos, o dever de encaminhar a transposição da Diretiva no sentido de uma transição digital eficaz passa a recair sobre nós, cidadãos, chamados a contribuir através desse processo de consulta pública.

Dito isto, e sem desprezo pela relevância dos restantes tópicos mais controversos que marcaram o discurso público à volta da Diretiva, proponho uma leitura crítica de alguns dos seus elementos cruciais para a promoção do papel das instituições de proteção do património cultural na transição digital, acompanhada de um conjunto de recomendações para uma transposição que lhes permita uma prossecução desobstruída dos seus objetivos.

2. A digitalização de obras

A proposta de transposição do Artigo 6.º da Diretiva autoriza as instituições de proteção do património cultural a atos de reprodução para obtenção de cópias de obras “que integrem, com caráter permanente, as suas coleções, exclusivamente para garantia da sua conservação e na medida que tal seja necessário para assegurar essa conservação”. Apesar de o conteúdo essencial do artigo 6.º representar algum progresso na promoção de um sistema favorável à transição digital das instituições de património cultural, o seu texto continua a restringir excessivamente o conjunto de obras e usos previstos, pelo que exponho aqui algumas recomendações para uma implementação ótima da norma.

Aumentar o conjunto de obras cuja digitalização é permitida: A Diretiva (e, consequentemente, a Proposta de Lei do Governo) dita que são apenas permitidas cópias de obras que integrem as coleções das instituições com caráter permanente, isto é, na sequência de transferências de propriedade ou licenças permanentes, obrigações de depósito legal e acordos de custódia a longo prazo. Face a esta limitação, importa sublinhar que os atos de conservação do património cultural têm sempre caráter não-comercial, sendo fundados na missão de proteger o património contra a inevitável degradação ou obsolescência de formatos físicos. Assim, as cópias feitas por museus, galerias, arquivos e bibliotecas nunca são bens concorrentes com os originais ou outras cópias em circulação, nem lesivas dos interesses económicos dos autores. Desta forma, se o objetivo de uma exceção à proteção do direito de autor é o de assegurar a longevidade da obra, não existe justificação para que a solução que assegura esse equilíbrio de interesses se limite a obras em coleção permanente.

É fácil justificar uma prerrogativa de digitalização de qualquer obra que se encontre “legitimamente na posse” de uma instituição através de um cenário hipotético de destruição ou falha de servidores: se o total de cópias de conservação de uma obra se resume a uma cópia nos servidores da instituição que a detém permanentemente, a destruição desse servidor implica o desaparecimento da obra. Inversamente, se todas as instituições às quais é concedida custódia temporária da obra estiverem habilitadas a fazer cópias para efeitos de conservação, a falha tecnológica de uma instituição nunca representa o extravio da obra. O objetivo último é o de assegurar a sua sobrevivência e, portanto, quantas mais cópias, melhor. 

Permitir atos essenciais para a atividade das instituições: O Artigo 6.º da Diretiva indica que “os atos de reprodução levados a cabo por instituições responsáveis pelo património cultural para outros fins que não a conservação de obras e outro material protegido nas suas coleções permanentes deverão continuar a estar sujeitos à autorização dos titulares de direitos, salvo se tal for permitido por outras exceções”. Infelizmente, a regulação da utilização de digitalização para outros atos necessários ao funcionamento interno das instituições é deixada ao critério dos Estados-Membros, que podem escolher aproveitar a reforma legal obrigatória como uma oportunidade para integrar nos seus sistemas exceções facultativas presentes noutros instrumentos.

O atual quadro legal dos direitos de autor em Portugal é exemplo paradigmático de uma implementação restritiva das exceções para funcionamento interno de museus, bibliotecas e arquivos, sendo permitida a reprodução de obras para atender às “necessidades das atividades próprias dessas instituições”, mas apenas se a obra já tiver “sido previamente tornada acessível ao público”. Assim, os atos preparatórios de exibição, bem como as reproduções para catálogo e bibliografia interna não se encontram cobertos.

É imperativo que o Governo utilize a atual reforma legislativa para alargar o conjunto de atos de digitalização permitidos a todos os atos essenciais para o processo de funcionamento interno das instituições de proteção do património cultural.

3. O papel dos museus e bibliotecas na educação

O Artigo 5.º da Diretiva MUD introduz uma nova exceção para a utilização digital de obras “para fins exclusivos de ilustração didática” com o objetivo de fomentar, melhorar e complementar o ensino à distância. Apesar da sua importância para a atenuação das consequências da crise sanitária que abalou os sistemas de educação pelo mundo fora, as novas exceções para fins de educação à distância estão restritas aos estabelecimentos de educação e ensino formais, estando excluídos da sua lista de beneficiários os educadores não-formais, isto é, instituições, organizações e comunidades que desenvolvem ações formativas e educativas extracurriculares ou independentes, como é o caso das instituições de proteção do património cultural.

Os museus e bibliotecas desempenham um papel educacional essencial junto da comunidade, potenciando o desenvolvimento social e cultural, providenciando formação complementar a jovens e crianças integradas no sistema formal de ensino, mas também oportunidades essenciais para a literacia básica e transversal em adultos, como é o caso das “universidades sénior”, normalmente inseridas em espaços museológicos, e dedicadas à promoção de cursos, conferências, workshops e webinars para a população envelhecida.

Quando pensamos em educação não devemos focar-nos apenas na escolaridade obrigatória e no ensino universitário, mas sim numa educação permanente e transversal à idade, que nos acompanha durante toda a vida. A título de exemplo, apenas no ano de 2020, a Fundação Calouste Gulbenkian concluiu a criação de uma rede de 100 novos projetos extracurriculares focados no desenvolvimento de mais de 50.000 crianças e jovens até aos 25 anos de idade e lançou um programa cultural de apoio e recuperação escolar destinado a mais de 5000 alunos do ensino básico e secundário. 

Considerando a quantidade de iniciativas de apoio à escolaridade e “aprendizagem ao longo da vida”, bem como as numerosas ações de formação independentes promovidas por instituições responsáveis pela proteção do património cultural, como é possível que uma transposição nacional não reconheça o papel fulcral das mesmas na educação da população, limitando-se a regular o ensino à distância organizado por estabelecimentos escolares?

4. O acesso público à arte e cultura

O Artigo 14º da Diretiva MUD indica-nos que, expirado o prazo de proteção de uma obra de arte visual, ela entra no domínio público, e que sucessivas reproduções se mantêm no domínio público. A introdução desta regra no acervo legislativo europeu pretende travar a renovação infinita de direitos exclusivos sobre sucessivas digitalizações e os modelos de negócio assentes na cobrança de licenças sobre reproduções não-originais de obras, devolvendo ao público o livre acesso a um domínio que é inteiramente seu.

Ainda que seja de louvar a primeira investida contra este tipo de práticas desonestas, é importante referir que os atos de apropriação de obras no domínio público não estão limitados a obras de arte visual. O domínio público é de todos, e para todos, independentemente do tipo de obra. Se a criação de uma réplica digital de uma pintura no domínio público não lhe confere nova proteção, porque é que a digitalização de um sonograma a poderá ter? 

Assim, apesar de o Artigo 14.º da Diretiva se referir apenas a obras de arte visual, considero que uma proteção digna do domínio público apenas possa ser atingida quando esta é estendida a todas as partes que o integram. De forma a mitigar barreiras no acesso à arte e cultura, é imperativo lutar por uma transposição do Artigo 14º que não proteja apenas o domínio público visual, mas o domínio público artístico como um todo. 

5. Propostas para o futuro

Apenas o tempo dirá se o novo Governo pretende fazer bom uso das críticas apontadas em sede parlamentar para apresentar uma nova proposta com um texto mais ambicioso e adequado aos objetivos da transição digital. Em antecipação à abertura da consulta pública da futura proposta, deixo uma súmula dos assuntos abordados neste texto para aqueles que, como eu, acreditem no efeito edificante de uma transposição ponderada e eficaz das disposições relativas ao papel das instituições de proteção do património cultural no universo digital:

  1. (Artigo 25.º) Otimizar a transposição da Diretiva dos direitos de autor no Mercado Único Digital fazendo uso dos mecanismos de compatibilidade com as exceções e limitações facultativas presentes nos instrumentos anteriores do Direito da União de modo a promover uma reforma legal centrada nos objetivos políticos nacionais e da transição digital.
  1. (Artigo 6.º) Maximizar os resultados das iniciativas de conservação digital de obras artísticas e criativas através do alargamento do conjunto de obras cuja reprodução é autorizada, para que englobem todas as peças legitimamente incluídas numa coleção, e não apenas as que nela se encontrem numa base permanente.
  1. (Artigo 6.º) Facilitar o funcionamento diário das instituições de proteção do património cultural através da autorização da digitalização livre de obras para propósitos de funcionamento interno não limitados à preservação das mesmas. 
  1. (Artigo 5.º) Valorizar o papel educativo das instituições de proteção do património cultural através da sua inclusão na lista de beneficiários de exceções para a educação à distância, ou da alteração do escopo destas exceções para que se centrem na natureza educativa dos atos, e não no caráter formalmente educacional da instituição que os pratica.
  1. (Artigo 14.º) Mitigar barreiras ao acesso à arte e cultura através da abertura dos princípios de defesa do domínio público a todos os tipos e formas de arte, e não apenas a arte visual.

O reset democrático a que assistimos oferece-nos a oportunidade perfeita para retomar a discussão sobre o papel da educação e da cultura na transição digital. Apelo, esperançosamente, a um esforço criterioso no sentido de uma transposição da Diretiva do Mercado Único Digital que valorize o papel do património cultural na educação, que abra as portas à transição digital da cultura, e que permita às instituições de proteção do património cultural o cumprimento da sua missão pública sem bloqueios desnecessários. Depois de tudo isso, talvez ainda sobre tempo para “um drink de fim de tarde”.

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