Entre abismos, caldo-verde e um pastel de bacalhau

por Cláudia Lucas Chéu,    11 Janeiro, 2024
Entre abismos, caldo-verde e um pastel de bacalhau
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Os abismos com que me deparo só a mim dizem respeito. São impartilháveis, insondáveis, são meus, da minha carne e do meu espanto. As dores não se partilham. Nenhuma dor. Sobretudo as do ânimo, as invisíveis, as que soam a «mariquice» aos que têm o tempo empregado para não sentirem as suas próprias mazelas de pessoas espatifadas pelo sofrimento. Tentar partilhá-las é um desperdício de tempo, do próprio e dos outros, porque não há nada mais próximo do sentimento de ilha do que a dor individual. Aguda ou leve, constante ou intermitente, latejante ou estável. Seja no corpo ou no ânimo, tanto faz.

A dor é impartilhável. Existem poucas coisas mais desagradáveis, por vezes insuportáveis. Quando a morte aparece como a única saída possível; uma solução excrescente em forma de doença do corpo e do espírito. Não conseguir viver é diferente de querer morrer. Ninguém quer morrer; ninguém.

Peço um pastel de bacalhau e um caldo-verde ao balcão do Pingo Doce: 2,79€. Almoçar aqui é barato, mas áspero. A luz branca de chapa, os assentos de metal, os tabuleiros de plástico. Tudo sabe a desconforto, menos o valor pequeno que me é retirado à carteira. Venho aqui todas as semanas à hora do almoço, entre as aulas. Como alguma coisa e a seguir abasteço a despensa da casa. Não me sinto bem neste sítio, porém não posso deixar de admitir que me serve as necessidades básicas. É o café de um supermercado de subúrbio, dentro de um bairro social. Há uma mulher que almoça algumas vezes perto de mim. Diria que tem cinquenta e cinco anos, talvez um pouco mais. Tem um ar cansado e desgostoso, com o seu kispo verde abotoado até ao pescoço, mesmo perante o fumegar da sopa e dos panados de peru. Um semblante tristíssimo. Os olhos que apontam para baixo, o cabelo cinzento sem brilho, maltratado.

A vida não é ou não está fácil para muita gente. As dores que carregam são óbvias, mesmo desconhecendo-se quais são. A tristeza mata todos os dias. Muitos preferem terminar com o sofrimento, mas romantizar o suicídio é obsceno (não falo da eutanásia, isso é uma narrativa que daria outro texto). A morte nunca é bela; é um fim irreversível e escuro. Nunca uma saída luminosa acenando adeus ao sofrimento. É o lugar mais lúgubre, a não existência, a fuga definitiva do sofrimento inenarrável, impartilhável. Mas não é uma saída para a dor nem o seu fim, é o nada.

Antes de sair do supermercado, compro um chocolate. Como-o a caminho das aulas. Um penso rápido para os abismos que me assolam diariamente, impartilháveis, insondáveis para os outros. A feniletilamina estimula o cérebro. Durante alguns minutos, sinto-me clara.

Se estiveres numa situação de risco podes ligar para várias linhas de apoio disponíveis aqui. “As linhas de apoio telefónico, na sua generalidade garantem o anonimato e oferecem a possibilidade de falar sobre as questões relacionadas com o suicídio com voluntários sem a pressão de uma conversa face-a-face. Falar sobre o problema ou compartilhar a dor com outra pessoa que se interessa pode ser uma grande ajuda em situações de crise.”

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