Entrevista. Alexandr Sokurov: “Não conheço tão bem o Putin para o incluir no meu Fairytale”
Hoje em dia quando se pensa em cinema, como uma verdadeira obra de arte, teremos de ser rigorosos nos nomes que citamos. Mas, por certo, o do russo Alexandr Sokurov (nascido em Irkutsk, na Rússia, há 71 anos) merece lugar num grupo que parece ser cada vez mais restrito.
Por isso, à medida que nos aproximávamos da zona de Sintra, para a programada entrevista com o cineasta russo, e apesar das condições meteorológicas até serem estranhamente favoráveis, cedíamos ao exercício especulativo de imaginar o ambiente etéreo e nebuloso de “Fairytale” (conto de falas), quase como assumindo a entrada num histórico museu virtual, após uma descida ao ambiente estético do purgatório de Dante Alighieri (1265-1321). Em particular a monumentalidade das gravuras do francês Gustave Doré (1832-1883), onde as diversas versões de Adolf Hitler, Benito Mussolini, Josef Stalin, Winston Churchil e até evocações de Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte vagueiam trocando mimos e pequenos insultos entre si. No entanto, à medida que nos aproximávamos do palácio de Seteais a realidade e a arte foi tomando conta para o encontro com o autor de “A Arca Russa” (2002) e “Francofonia” (2015), mas também da tetralogia do poder (“Moloch” (1999), “Telets” (2001), “O Sol” (2005) e “Fausto” (2011)), centrados em Hitler, Lenin, Hirohito e Goethe.
Claro que ao pensar nestas personalidades, algumas retomadas no seu mais recente filme, tornou-se inadiável, na nossa conversa, a sugestão actualizada de Vladimir Putin, e o seu lugar na História actual, merecendo de Sokurov a devida referência, ainda que dentro dos seus próprios limites.
Mas mais do que tudo, o que importa é a partilha desta troca de impressões e confrontar o autor com a sua própria obra, com a sua arte. Mesmo que as questões de outra natureza não tenham de ficar adiadas. Como, por exemplo, a uso da técnica para dar uma vida própria a imagens de arquivo — onde rejeita a ideia do deepfake (o termo tecnológico para as imagens de síntese que permitem, por exemplo, substituir uma pessoa por outra), uma expressão que tem sido replicada em diversos artigos. Enfim, a conversa possível, com o recurso a uma interpretação do original russo.
Extremamente afável, Sokurov não deixou de elogiar os portugueses e Manoel de Oliveira, de quem guarda amizade.
Qual a sensação de estar aqui em Lisboa com um filme em competição do LEFFEST? Foi um convite pessoal do director do festival, Paulo Branco?
Ele convidou-nos, mas em primeiro lugar, convidou o filme. Aliás, o nosso objectivo é mostrar o filme. Mais, é mostrar este tipo de filmes. É fantástico que exista um director de festival tão livre, bem como um festival assim. Este é o nosso trabalho!
Porque demorou tanto tempo depois de Francofonia, um filme que vi em Veneza em 2015?
Em primeiro lugar, estive ocupado a dar aulas de realização na universidade de cinema de São Petersburgo. Depois estive um pouco doente, como todos nós com a pandemia. Mas o trabalho com “Fairytale” foi muito importante.
É, sem dúvida, e uma vez mais, um filme muito inovador…
Isto porque ao criar o filme eu inventei também uma nova forma de usar material de arquivo. O meu objectivo foi criar um novo trabalho artístico e histórico, usando verdadeiro material de arquivo. E queria que, no meu filme, aparecessem apenas os verdadeiros protagonistas; não actores, não imagens de computador. Apenas os verdadeiros protagonistas.
Como se desenvolveu o trabalho de pesquisa dessas imagens de arquivo?
Para isso tivemos de procurar esse material por todo o mundo. Sobretudo, material em que era importante perceber como estes protagonistas eram naquele tempo preciso. Eles que foram bastante filmados enquanto foram actores de Estado. Foram vistos em todo o lado. Escolhi apenas aqueles momentos de arquivo que nos davam possibilidade para compreender estes protagonistas. Por exemplo, quando o Stalin olha para a câmara, isso interessou-nos; ou quando o Hitler estava a pensar em alguma coisa, quando alguém falava com ele. Achei esse material muito interessante. O mesmo se passou com o resto dos protagonistas.
Quantas horas de material tinha à disposição?
Foram centenas de horas de material de arquivo. Em grande parte, material que veio de arquivos profissionais estaduais, provenientes em grande parte dos Estados Unidos, mas também da Europa, no Reino Unido, França, Itália, U.R.S.S.. Claro que passámos em revista todo esse material. Todo o conteúdo é descrito de forma muito detalhada e estava em ótimas condições. Então tomámos partes destas várias crónicas para constituir partes do filme, como fragmentos, ou frescos. Antes deste trabalho escrevi o argumento e reuni as frases sobre as guerras que os protagonistas disseram. No filme dizem exactamente aquilo que disseram na vida real. Por vezes, acontece mesmo que disseram aquelas mesmas frases naquela situação.
Como foi feito o trabalho áudio com as vozes?
Os nossos actores viviam as vidas dos protagonistas e faziam essa dobragem. Acabou por ser uma coincidência muito forte entre as vozes e a voz da personagem. Mas isto não é fantasia. No nosso filme, cada protagonista fala a sua própria língua. E isto é muito importante.
Portanto, se estou certo, os actores estiveram apenas presentes para personificar a voz e não os movimentos, correcto?
Sim, claro. Usamos apenas as vozes. Só isso é real. Não usamos qualquer efeito tecnológico deepfake para mascarar o movimento. Como cineasta, e para esse efeito, não usei, nem tinha qualquer interesse em usar tecnologia deepfake.
Em todo o caso, temos a novidade de ver animações de imagens de arquivo, o que é bastante interessante…
Desenvolvemos uma tecnologia nova e uma nova estética ao trabalhar com materiais de arquivo.
De uma certa forma, era quase como se estivesse a dirigir Hitler, Mussolini, Churchill, Stalin, até mesmo Cristo… Isto no que diz respeito à mise-en-scène e ao ritmo do filme que nos dá quase uma sensação de intimidade com estas figuras.
Há muitos anos que estudo a 2.ª Guerra Mundial. Inicialmente estudei História e só depois cinema. Por isso quis verificar toda a informação relativa a factos históricos, a factos concretos e a documentos. Nesse sentido, acho que devem acreditar no meu “conto de fadas”, porque tudo é baseado em factos reais e relações históricas. Talvez, por isso, possamos acreditar mesmo quando se trata de um conto de fadas. Mesmo não sendo um filme documental, ainda assim não deixei de fazer composições. É claro que, por vezes, o material de arquivo permite-nos alterar dimensões. E inventámos também um esquema dramatúrgico que fomos seguindo de forma criativa.
Tudo parece acontecer coo um sonho…
Em primeiro lugar, os nossos protagonistas acordam e entram num sonho; depois adormecem, acordam e continuam a sonhar. Alguma forças supremas testam-nos para serem capazes de cumprir certas tarefas. Cada vez que acordam para ir para estes portões, ultrapassam determinados testes e regressarem ao seu sono. Isto é um “conto de fadas”. Não sabemos quem está à espera deles, quem fala com eles nesses portões. É este o ponto deste “Fairytale”.
Este é, seguramente, o ambiente da “Divina Comédia”, pelo menos do Inferno e Purgatório, e até, parece-me, uma influência das gravuras de Gustave Doré (1832-1883). Concorda?
Sim, claro. Mas antes de criar qualquer imagem temos de criar conteúdo importante. Antes de compreender toda a estética do Doré é preciso perceber a razão porque fez esses desenhos. Isso é muito importante. Toda aquela escala das coisas. O lado pouco claro do ambiente. Isso foi a estética do Doré. Todas as diferentes formas estão misturadas, mas cada uma tem um elemento divino.
É realmente um elemento impressionante
A estética vem de Doré. Ele pintou coisas que nunca viu. As grandes artes gráficas da arquitectura, o lado mais forte da arquitectura italiana. Os arquitectos italianos tentaram construir os edifícios mais belos que conseguiram. Eu aprendi muito com eles enquanto estava a fazer o meu filme, tentando desenhar os edifícios o melhor possível. O romantismo germânico também me deram muitas ideias. A estética do pintor francês Hubert Robert (1733-1808) que gostava de pintar paredes artificiais. Ele que foi um dos criadores do Louvre. Elementos gráficos, design de arquitectura, aguarelas, artes plásticas, tudo elementos base usados por criadores.
Deixe-me então falar de arte e cinema, de tecnologia e cinema, algo que usa no seu cinema. Acha que usando a tecnologia que temos hoje disponível — e com a qual produz grande arte cinematográfica — podemos ainda captar aquela “aura” de que falava Walter Benjamin em meados dos anos 30?
As artes e o cinema são planas. E o volume é apenas uma ilusão. Isto distingue as artes e o cinema. Se nas belas artes tentam encontrar-se formas de mostrar o volume, no cinema isso não é possível. Porque a natureza óptica da imagem é diferente, porque com a óptica tudo se pode criar. Pode concluir-se, a partir daqui, que é possível criar as imagens cinematográficas. Por isso é que para os espectadores se torna fácil compreender como as imagens cinematográficas não são muito difíceis de criar. Dito isso, a obra de arte é demasiado fácil de criar e copiar não tem muita aura. Antes era complicado fazer cinema, mas hoje em dia é simples. Podemos procurar os meios primitivos para explicar como pode ser feito, incluindo a técnica que usamos, porque nos permite explicar de forma mais fácil como era feito antes. Podemos fazer algo com as nossas próprias mãos, tal como os ferreiros antigamente, ou podemos fazer como os chineses e reproduzir tudo em milhões de cópias. Nesse sentido, qual é o problema? A questão está na forma que usamos para que o espectador compreenda o trabalho individual. Se tudo for feito com uso de tecnologias deepfake, que simulam no ecrã todos esses processos, então os grandes mestres, as grandes artes e as reais possibilidades de descobrir novos caminhos nas escolas de arte desaparecerão. Os retratistas, os paisagistas desapareceriam. Mesmo os cirurgiões, porque este é um tipo de cirurgia que só pode ser feita com as nossas próprias mãos. Não há outra forma.
Esta foi quase uma lição de arte! Gostava apenas de regressar ao filme e perguntar se depois da sua tetralogia do poder será que podemos encarar este “Fairytale” como a sublimação definitiva destas personalidades poderosas?
Sim. Isso foi desenvolvido para uma pesquisa histórica com fins profissionais. É algo da maior importância. Porque, no fim, é a verdade que temos de relatar. A 2.ª Guerra Mundial ainda não acabou. Não por não ter existido na altura, entre a Rússia e o Japão, um acordo de paz formal. É um processo que prossegue, não porque o mapa da Europa se tenha alterado ou porque o mapa da Ásia se tenha alterado. Todo o mapa mundo foi alterado. São vestes novas que criámos. Mas não podemos fazer nada com o fascismo [ler entrevista ao jornalista Paul Mason, autor do livro “Como Travar o Fascismo”], e sobretudo com o nazismo. Não haveria problema se existisse apenas o fascismo. O problema é a forma como o nazismo existe dentro do cérebro das pessoas. O nazismo foi algo formulado. Milhões de pessoas identificaram-se e não significa que milhões de pessoas tenham mudado de ideia. O nazismo continua a existir na Rússia, na Alemanha, em Itália e mesmo em países árabes. Quis regressar a estes aspectos de um ponto de vista artístico e com um significado especial, justamente para não regressar ao documentário. O que poderemos dizer de uma forma artística nunca poderemos relatar de forma documental. Por exemplo, na Alemanha têm receio de mostrar este filme. Isso diz-lhe alguma coisa?
Acha que a guerra que temos na Ucrânia está também relacionada com o que estava a dizer sobre o processo da 2ª Guerra Mundial não concluída? E, nesse sentido, poderíamos encarar o senhor Putin como uma possível personagem do seu “conto de fadas”?
Apesar de conhecer pessoalmente Putin, não conheço tão bem o Putin para o incluir no meu “conto de fadas”. Conheço o Hitler, o Stalin e o Churchill muito melhor que os meus contemporâneos. Mas sobre o que se passa agora na Europa, o presente não está sempre relacionado com o passado. O presente está connosco, mas relaciona-se sempre com tempos idos muito antigos, profundos mesmo. Eu gosto muito da Europa. Considero-me até mais europeu do que russo. Adoro a Itália, é parte da minha vida. Mas devo dizer que na Europa as pessoas não seguem os meus princípios históricos. Pelo menos, é o que me parece. O meu princípio é: vote naqueles em que o princípio humanitário é mais importante do que os princípios políticos.
Uma vez que está a falar nestes países, pergunto como vê Portugal, e Sintra? Acha que o ambiente nublado e muito particular de Sintra se poderia assemelhar ao ambiente do seu filme?
É uma pergunta muito interessante. Apesar de não conhecer ainda bem Sintra, já percebi que é uma localidade muito bonita, com muita vida. Os portugueses são um povo fantástico. Talvez os portugueses tenham conservado as suas raízes históricas. Ou seja, Portugal parece-se mais com o Paraíso! E no nosso filme, o Paraíso não existe.
E quanto ao cinema português, acha que existirá algum Paraíso cinematográfico? Talvez o Manoel de Oliveira?
Conhecia-o pessoalmente, sabia? Uma vez deu-me um prémio. Disse-me que gostava muito dos meus filmes. Na altura já tinha mais de 90 anos. É uma figura proeminente, mas os cineastas parecem não gostar muito de figuras clássicas. Talvez porque não gostem de concorrência. Parece que não há espaço no cinema para a concorrência. Confesso que não tenho visto muito cinema português. O que é estranho, porque o país parece ser criado para uma grande cinematografia. Os portugueses são um povo muito valente e que gosta de correr riscos. Foram grandes navegadores e descobridores. É importante que o Estado apoie o seu cinema e que eles aparecem mais. Porque temos necessidade de grandes mestres para criar grandes figuras no cinema português. Precisam de professores, como em todo o lado. Médicos e professores. Para curar e educar.
No nosso lado esperamos apenas poder ver o mais breve possível um novo filme seu.
Obrigado pelo seu trabalho de compreensão. E pelos seus interesses. É algo raro encontrar hoje em dia. Especialmente quando temos uma compreensão incorrecta sobre a linguística do nosso filme. Isto quando percebemos como os nossos espectadores e leitores não compreendem correctamente a forma como criamos o nosso filme. Ficamos gratos se nos ajudar a destruir as garras deste mito que rodeia o filme.