Entrevista. Alice Cunha: “A consolidação da democracia foi um dos grandes objetivos de Portugal ter solicitado a adesão à CEE”
“Logo após o final da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um movimento de cooperação económica europeia, nomeadamente com a aplicação do Plano Marshall, que conduziu à criação da Organização Europeia de Cooperação Económica, da qual Portugal foi membro fundador”, relembra Alice Cunha, professora do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais. Dessa forma, segundo a investigadora, é possível “traçar até 1948 a inserção do Estado português nos movimentos que se estavam a iniciar, então, de cooperação económica a nível europeu, movimentos esses que, depois, se foram desenvolvendo e que conduziram, nomeadamente, a que Portugal aderisse à EFTA em 1960, mas também a que se aproximasse, por razões exclusivamente económicas à data, à Comunidade Económica Europeia e assinasse, em 1972, um acordo comercial que serviria de base, aliás, para as futuras negociações de adesão.”
Assim começou, por necessidade económica, a aproximação de Portugal à Europa ainda antes de 25 de Abril de 1974, o que conduziria, após oito de anos de negociações, à assinatura do Tratado de Adesão de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1985. Portugal já não era um país orgulhosamente só e dá-se um processo de melhoria global de infraestruturas, da economia, além do reforço democrático de Portugal, contributo esse que Alice Cunha acredita que a entrada na CEE auferiu a Portugal também. Apesar dos benefícios da integração portuguesa na União Europeia, a investigadora crê que os Estados-membros deveriam fazer um esforço maior para aproximar os cidadãos dos mecanismos europeus e relembra: “A União Europeia tem algo que é único numa organização internacional que é a cidadania europeia, mais nenhuma organização internacional tem algo semelhante.” Foi o que Alice Cunha explicou à CCA, em conversa, sobre a entrada de Portugal na então CEE e a forma como a adesão ajudou o novo país democrático e a sua população a abrir-se ao exterior.
Em primeiro lugar, podemos pensar o processo de integração de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE), ainda antes de 74, por exemplo, quando se deu a entrada na EFTA, na European Free Trade Association? Ou seja, mesmo que fosse impossível, pela nossa realidade política de então, já começava a nascer, aí, um desejo de uma maior integração no seio da Europa?
Um desejo não diria, mas uma necessidade, certamente. Aliás, podemos até recuar ainda mais atrás, no tempo. Na realidade, logo após o final da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um movimento de cooperação económica europeia, nomeadamente com a aplicação do Plano Marshall, que conduziu à criação da Organização Europeia de Cooperação Económica, da qual Portugal foi membro fundador. Podemos, portanto, traçar até 1948 a inserção do Estado português nos movimentos que se estavam a iniciar, então, de cooperação económica a nível europeu, movimentos esses que, depois, se foram desenvolvendo e que conduziram, nomeadamente, a que Portugal aderisse à EFTA em 1960, mas também a que se aproximasse, por razões exclusivamente económicas à data, à Comunidade Económica Europeia e assinasse, em 1972, um acordo comercial que serviria de base, aliás, para as futuras negociações de adesão. Não podemos dizer com propriedade que tenha sido um desejo, uma vontade, mas sim uma necessidade económica.
A revolução de abril revelou um país bastante atrasado, com altos índices de trabalho infantil, analfabetismo. Seguiram-se, também, momentos de indefinição logo no período pós-25 de Abril. Como é que os restantes países da então CEE olharam para a possibilidade da entrada de Portugal no grupo? Foi com algum receio, ou olharam para a adesão como uma possibilidade de reforço da nossa democracia?
Para Portugal aderir à então CEE teria, obrigatoriamente, de ser um Estado democrático porque, na sua génese, a atual União Europeia é constituída por democracias. Daí que, mesmo após o 25 de Abril, naquele período de transição com os governos provisórios, obviamente que ainda estávamos numa fase muito precoce de instauração da democracia em Portugal e, na realidade, foi apenas após a tomada de posse do Primeiro Governo Constitucional, na sequência da realização das primeiras eleições para a Assembleia da República em 1976, que foi tomada essa decisão política de solicitar a adesão de Portugal à então CEE.
O pedido foi bem recebido, aliás, pelos restantes Estados Membros, no que diz respeito à perspetiva de consolidação do regime democrático em Portugal. Na realidade, a consolidação da democracia foi um dos grandes objetivos de Portugal ter solicitado a adesão à CEE e seria, também, uma das grandes razões pelas quais os então Estados Membros iriam aceitar integrar não só Portugal mas, também, anteriormente, a Grécia e, na mesma ocasião, a Espanha, na mesma perspetiva de consolidação dos recém regimes democráticos desses três países. Daí que, nessa perspetiva da consolidação democrática, essa questão foi bem recebida pelos Estados Membros da então CEE, que eram todos Estados democráticos e alinhados, de resto, com os valores da Europa Ocidental.
Entende, então, que a nossa entrada na CEE foi um processo decisivo também no reforço e sedimentação da nossa democracia.
Sim.
Mas olhando para esse período de negociação, olhando para essa altura, quais foram os principais desafios da nossa adesão? Porque ainda demorou imenso tempo, oito anos, no total.
Certo e, na realidade, foram vários os desafios que se colocaram à candidatura portuguesa, sendo os dois principais externos ao próprio país. Em primeiro lugar, foram motivos derivados da própria CEE, ou seja, na altura, nos anos 70, início dos anos 80, a CEE estava também num processo de reformulação, quer das suas instituições, quer das suas políticas. Ao mesmo tempo que estava a negociar o alargamento, também geria as implicações do alargamento, nomeadamente a reforma das instituições para acomodar não só Portugal, mas também, como referi, a Grécia e a Espanha. Daí que as instituições que tinham sido, originalmente, desenhadas para seis Estados membros teriam de ser reformuladas, adaptadas, para acolher 12 Estados membros, ou seja, o dobro.
A nível das reformas, também se estava, nomeadamente, a negociar a revisão da Política Agrícola Comum: não seria o caso português, mas no caso da candidatura espanhola teria um grande impacto. Também existiam, além disso, problemas internos entre Estados-membros, nomeadamente com o Reino Unido e o rebate orçamental que, também, tinha de ser resolvido antes de qualquer alargamento. Obviamente que não podemos esquecer, igualmente, as questões políticas internas de cada Estado membro, ou seja, cada vez que decorria uma eleição em qualquer um dos Estados membros, tendencialmente, as negociações desaceleravam. Nomeadamente, o peso dos agricultores franceses tinha bastante impacto nas eleições, o que motivava alguns atrasos ou algumas paragens nas negociações. Esse era o primeiro grande problema, ou seja, derivado a factos relacionados com a própria CEE e os seus Estados membros.
Por outro lado, o segundo grande problema e que, também, atrasou imenso a candidatura portuguesa foi Espanha. Ou seja, na medida em que, embora os processos de negociação fossem separados, decorriam simultaneamente. Isso, obviamente, impactou Portugal no sentido em que as concessões que fossem feitas a Portugal poderiam, eventualmente, ser requeridas, também por Espanha. Daí que a candidatura portuguesa acabou por andar sempre em paralelo, um pouco à frente, um pouco atrás, justamente porque os Estados membros temiam que qualquer concessão dada a Portugal pudesse ser invocada por Espanha.
Daí que não era aceite uma adesão que não fosse em simultâneo. Ou seja, a candidatura portuguesa tinha, de facto, poucos problemas. Portugal poderia ter aderido num espaço curto de tempo, como aconteceu com a Grécia. Tal não aconteceu porque era entendimento dos Estados membros que a adesão devia ser simultânea, na mesma altura, que não iria ser uma adesão fracionanada dos países da Península Ibérica, daí que Portugal tivesse de esperar até que todos os grandes problemas da candidatura espanhola fossem resolvidos, para que a sua candidatura fosse aceite.
Quando entrámos na CEE, um dos avanços que, popularmente, as pessoas notaram logo foram as infrastruturas e, nomeadamente, as estradas. O facto de começar a haver maior circulação no país. Assim como se notou logo na altura uma maior dinamização económica. Poderia o desenvolvimento de Portugal, quer a nível económico quer a nível de infraestruturas, ser o mesmo sem embarcarmos na CEE?
Teríamos de fazer esse estudo comparativo mas, de qualquer maneira, o que sabemos de antemão é que Portugal tinha deficiência de várias infraestruturas essenciais para a população. Ainda durante o Estado Novo que o país tinha vários projectos, nomeadamente, no que diz respeito a infraestruturas, mas não disponha dos recursos financeiros para a sua concretização. Podemos pensar, sempre, no caso da Autoestrada 1, a principal autoestrada do país: na realidade, esse foi um projeto que começou durante o Estado Novo e que foi finalizado já após a adesão de Portugal à CEE e com fundos europeus. Portanto, o que nós sabemos, efetivamente, é que o país tinha necessidades, tinha projetos para suprir essas necessidades, mas não tinham os recursos financeiros para as concretizar.
Aqui, o diferencial é que após a adesão à CEE – e mesmo antes, se pensarmos que Portugal também teve acesso a um fundo particular de financiamento, o fundo das ajudas de pré-adesão, ainda antes do país ser Estado-membro – mas, sobretudo, após a adesão, Portugal teve acesso e beneficiou de grandes quantias de fundos europeus que, de facto, conseguiu alocar à concretização de vários projectos. No início, sobretudo, relacionados com infraestruturas, estradas, escolas e equipamentos públicos de distribuição de água, saneamento, e formação profissional. Foram, portanto, investimentos que, de facto, o país carecia e para os quais, então, obteve uma fonte de financiamento externa para os concretizar.
Na altura da nossa adesão à CEE, essa adesão também não foi totalmente consensual nos partidos políticos, ou políticos de então. Atualmente, mesmo que possam existir divergências, a questão europeia parece ser mais consensual, ou seja, pelo menos não é um assunto que interesse em estar em primeira linha nos discursos partidários. Porque é que acha que isto aconteceu?
Na realidade, o único partido que votou contra a adesão de Portugal à CEE foi o Partido Comunista Português (PCP) que, curiosamente, rapidamente se inseriu muito bem, inclusive, no sistema parlamentar europeu com a nomeação e, depois, a eleição de eurodeputados portugueses comunistas que têm representado o partido e o país no Parlamento Europeu. Daí que essa oposição inicial contra a própria organização – a CEE e as suas políticas – contra também a adesão do país a essa organização, contra a própria previsão que foi feita pelo partido que Portugal seria membro da CEE durante poucos anos, a verdade é que ao aperceber-se que, de facto, essa era uma realidade que não iria acontecer, o partido acabou por se ajustar e, hoje em dia, já não defende a saída de Portugal da União Europeia, mas defende uma Europa diferente, uma Europa mais social com pendor menos económico.
Aliás, no espectro dos maiores partidos políticos portugueses, mesmo agora na atualidade, podemos verificar que são todos pró-participação de Portugal na União Europeia. O que os distingue é, de facto, se querem esta Europa, uma Europa melhor, mais Europa, menos Europa, uma Europa mais justa, mais social, mais verde. Mas, na realidade, nenhum dos principais partidos defende a saída do país dessa organização, desde logo, porque é visível o exemplo do Reino Unido e as implicações que tem uma saída de organização. Mas mais do que isso, vêem-se também os benefícios que o país tem obtido a nível dessa participação.
Paulo Portas também teve um passado eurocéptico!
Paulo Portas não estava no Parlamento, em 1985. Está a pensar na oposição de Manuel Monteiro ao Tratado de Maastricht, em 1992. [Manuel Monteiro foi líder do CDS-PP entre 1992 e 1998. Paulo Portas foi, pela primeira vez, eleito deputado parlamentar pelo CDS-PP em 1995. O Tratado de Maastricht foi o tratado que levou, então, à instituição da União Europeia enquanto tal.]
Acha que as políticas como o espaço Schengen, a livre circulação sem fronteiras, contribuíram para que os portugueses se abrissem mais ao exterior e se identificassem mais com Europa?
Na realidade, embora beneficiamos em questões muito concretas, como aquela que mencionou, a liberdade de circulação é algo tangível quando não a temos. Ou seja, neste momento, damos tudo por assumido, nomeadamente a liberdade de circulação; no caso dos estudantes, a participação no programa Erasmus; no caso da moeda única, não termos de trocar dinheiro quando vamos a outro país que utiliza a mesma moeda na zona euro; não termos de pagar roaming quando estamos noutro Estado membro; ou no aeroporto, por exemplo, quando não temos de passar por nenhum controlo de fronteiras quando estamos no espaço europeu. Ou seja, só damos sobretudo falta de todas essas comodidades que a participação da União Europeia nos oferece quando não as temos, quando vamos para outro país onde temos de pagar roaming; onde temos de estar em filas para entrar no país; onde temos controlos de fronteiras: aí percebemos, de facto, a existência de duas realidades bastante diferentes e o que, de facto, o espaço Schengen, o programa Erasmus e a existência da moeda única nos trazem para o dia a dia. Agora, se isso nos aproxima mais da União Europeia, materialmente julgo que não.
Vemos isso, nomeadamente, na participação nas eleições europeias que, tradicionalmente, são aquelas que têm sido as eleições com menor participação. E porquê? Porque, desde logo, a maioria dos cidadãos não sabe o que é o Parlamento Europeu, não sabe quais são as funções, nem os poderes do Parlamento Europeu. Mais do que isso, o impacto que este poder de decisão do Parlamento Europeu tem para várias esferas da nossa vida: desde a maneira como certos alimentos são fabricados, que produtos químicos podem ou não ser utilizados na confecção de roupa e na segurança dos brinquedos, por exemplo. Portanto, há todo um normativo que emana da União Europeia, mas que vemos como algo distante, lá em Bruxelas, e que não é uma realidade próxima de nós, desde logo porque o nosso governo, em Portugal, e todos os outros governos dos Estados-membros também não promovem essa proximidade. A União Europeia tem algo que é único numa organização internacional que é a cidadania europeia, mais nenhuma organização internacional tem algo semelhante. Obviamente que se perguntar a alguém a sua cidadania, a pessoa responde “sou cidadão português” e não vai puxar do seu pergaminho de ser cidadão europeu. Desde logo, como referi, porque os próprios governos não promovem, também, essa identidade.
Acha que falta, então, um maior investimento, por exemplo, em formações para explicar às pessoas e, também, aos jovens como funciona o espaço europeu?
Esse pode ser um caminho, entre outros, claro. Costumo referir o exemplo da reciclagem. Há duas décadas, a reciclagem era mínima, progressivamente foi aumentando porque se foi ensinando nas escolas, aos meninos, desde uma idade muito jovem, a importância que a reciclagem tinha para o país, para o planeta. Consequentemente, as crianças foram multiplicadoras, nas suas famílias, dessa importância e de novos comportamentos também. Daí que na escola, provavelmente, será o momento e o espaço inicial e fundamental, também, para explicar, nomeadamente, para cada tipo de idade, claro, o que é que é a cidadania Europeia, o que é que representa, que direitos confere, porque é que existe. Mais uma vez, só existe porque existe União Europeia e todos os decisores políticos decidiram instituir, precisamente, esta cidadania para reforçar o sentimento de cidade (civitas), de comunidade que tem, obviamente, de ser promovida numa lógica de unidos na diversidade, que é o lema da União Europeia.
Faz um balanço positivo da moeda única, o euro, ou sedimentou alguma desigualdade por ser uma moeda muito forte? Há questões a serem limadas ou foi um processo bem implementado?
Não sou economista, portanto, nunca fiz nenhum estudo sobre o impacto do euro. O que lhe posso dizer é que, de facto, a adesão ao euro continua a ser, até hoje, a questão mais fraturante no que diz respeito à participação de Portugal na União Europeia. Mesmo entre os economistas, ainda hoje não é consensual, primeiro, se Portugal deveria ter aderido ou não; segundo, se deveria ter aderido na altura em que aderiu; e, terceiro, se, de facto, o impacto tem sido positivo ou negativo, se tem beneficiado mais, ou menos, o país. Na realidade, a estratégia do governo, na altura, foi de continuidade, de alinhamento com os grandes projetos da União Europeia. Desde a adesão até agora, Portugal tem integrado todos os grandes projetos da União Europeia desde o seu início, portanto, nesse aspeto, também, foi consequente com o percurso que tinha tido desde o início. No caso de um país pequeno como o nosso, com um mercado, também ele próprio, pequeno, não sei até que ponto é que teria beneficiado estando isolado, não tendo aderido à moeda única quando, por exemplo, Espanha, que é, no fundo, uma extensão do mercado económico português, o fez.