Entrevista. Anabela Mota Ribeiro: “Quando a pessoa vê a sua caveira, há muitas coisas que perdem significado”

por Magda Cruz,    4 Abril, 2024
Entrevista. Anabela Mota Ribeiro: “Quando a pessoa vê a sua caveira, há muitas coisas que perdem significado”
Anabela Mota Ribeiro / Fotografia Ponto Final, Parágrafo – DR
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No papel de entrevistada, a jornalista reflete sobre o encontro de uma entrevista. No podcast Ponto Final, Parágrafo revela o processo de escrita do romance “O quarto do bebé”, publicado no final de 2023, conta como foi conhecer Annie Ernaux, numa feira do livro no Brasil e fala sobre livros da autora francesa e na ligação que têm para este seu primeiro romance. Em entrevista a Magda Cruz, Anabela Mota Ribeiro avança que está a escrever um segundo livro e que o programa da RTP3 “Os Filhos da Madrugada” vai voltar para uma terceira temporada. 

Magda Cruz: Desde cedo que sabias que ias trabalhar em comunicação. Em que altura percebeste que não tinhas medo das palavras – e de as usar?

Anabela Mota Ribeiro: Eu não sei se eu percebi. E de cada vez que eu, hoje, tento encontrar as palavras e elas me escapam – assim como se fosse a água do mar, a onda que vai e vem – de cada vez que me debato com essa dificuldade, essa procura – e isso é simultaneamente uma coisa angustiante e instigante – eu penso “afinal, que relação é que eu tenho com as palavras?”

MC: Mas é a tua ferramenta.

AMT: Mas é a minha ferramenta principal, sim. Eu acho que compreendi muito tarde que teve alguma importância, na minha relação com a língua portuguesa, com as palavras, com a escola e com a aprendizagem, e o facto de ter feito duas vezes a 1ª classe, como então se dizia. Manifestei, desde muito cedo, uma vontade e um gosto em aprender. Portanto, fiz a primeira vez a 1ª classe com o meu irmão, que é um ano e uns meses mais velho do que eu, sem estar matriculada. Depois, fiz a 1ª classe já matriculada. E, nessa altura, eu já sabia ler e escrever. Portanto, deu-me um conforto, uma confiança, se calhar, que me acompanham até hoje. Mas isto foi uma coisa que eu desvalorizei ou que não…

MC: E entretanto, apercebeste-te dessa importância, dessa confiança que tens com as palavras.

AMT: Sim, sim. Acho que isso foi uma coisa importante, sim, esse reforço inicial. E depois lembro-me de fazer redações, ainda na escola primária. De gostar de fazer redações.

MC: Escrevias sobre o quê? Inventavas muito ou ias mais ao real?

AMT: Eu não invento muito. (risos) Ainda hoje… Eu gosto muito da palavra “imaginação”. Gosto muito da faculdade da imaginação.

MC: Mas tens dificuldade em chegar a ela?

AMT: Eu digo isto e ao mesmo tempo acho que não é verdade. E “O Quarto do Bebé”, fazendo já esse voo em direção ao futuro, tem uma componente autobiográfica assumida, mas eu mesma começo a efabular a partir de um momento que eu não sei qual é.

MC: E já te é fácil fazer essa efabulação?

AMT: Eu acho que essa efabulação nos é natural. Quando nós reconstituimos a nossa memória, não sei se já não fazemos essa efabulação.

MC: Às vezes é mais fácil do que dizer a verdade.

Escritora Anabela Mota Ribeiro, convidada do podcast, e Magda Cruz, autora do “Ponto Final, Parágrafo”, na livraria Stuff Out

AMT: Mas é que, talvez, não saibamos onde é que está a verdade. É isso, não é? Eu costumo dar o exemplo dos dois irmãos que, remontando à sua infância comum, a essa casa dos pais, a esse espaço inaugural, têm memórias opostas, tantas vezes. Portanto, onde é que está a verdade? Onde é que está o facto? A partir de que momento, nós, lidando com a memória de quem somos – e a nossa memória biográfica – estamos já a tropeçar na efabulação.

MC: Pegando na efabulação, na mentira…

AMT: “Mentira” é uma palavra de que eu não gosto. Mentira adquiriu um significado mais pejorativo. Recuso essa palavra.

MC: Entretanto, surge o género de entrevista. Sei que gostas da entrevista como o encontro de visões. Uma entrevista é uma peça de teatro?

AMT: O Goldoni dizia que a vida é teatro. E eu acho que é uma imagem muito poderosa esta de que estamos num palco, somos personagens de uma peça. A questão é que avançamos sem rede, sem ensaio e sem guião. Mas nós estamos sempre nesse palco. Sempre. Estamos sempre numa interação que não controlamos completamente, por mais preparados, filtrados que estejamos. Mas não podemos repetir o instante que passou. E mesmo quando, nas entrevistas, repetimos takes, palavras, respostas, perguntas…é sempre outro momento. É sempre outra dinâmica. Então, gosto mesmo muito dessa…

MC: Trabalhas nessa rede?

AMT: Não, não. Ao contrário, eu gosto de um improviso preparado. Quando faço entrevistas, gosto de preparar, mas insuficientemente. Eu não gosto de ter a ilusão de que sei as respostas todas. Portanto, gosto só de preparar-me o suficiente para poder lidar com o imprevisto, com a surpresa. E, se calhar, é sobretudo isso que eu procuro suscitar nesse exercício de perguntar e escutar.

MC: Como é o teu dia-a-dia de leitura? Lês de manhã, lês à noite? Lês com música, em silêncio? Como é essa digestão da Literatura?

AMT: Com música, seguramente não. Eu gosto tanto de música e tenho uma relação tão antiga com a rádio e com ouvir as coisas nos auscultadores com uma atenção máxima. Isso continuou quando, durante anos, fiz as entrevistas e transcrevi as entrevistas com auscultadores. Estou muito, muito habituada a ouvir com fones e com essa hiperatenção.

MC: Porque sabes a importância da palavra e da pontuação.

AMT: Sim, sim. E do som. Um som pode ser para mim como uma flauta mágica, encantatória. E eu sigo. Ler com música eu não consigo. Eu gosto muito de ler de manhã. É o meu momento preferido.

MC: Logo ao pequeno-almoço com uma torrada? 

AMT: Não, não. Na cama, ao acordar. Vou buscar um café. É o meu momento. É assim como se não estivesse ainda perturbada pelo ruído, pelos estímulos, por todas essas coisas que são, depois, a vida cá fora. Portanto, esse é o momento em que eu mais gosto de ler. 

MC: E avanças muito?

AMT: Sim. Sinto-me mais permeável, mais atenta. Mas essa é, sobretudo, uma leitura que é a do prazer. Depois, há muitas leituras que eu faço que tem que ver com o meu trabalho: porque vou entrevistar alguém, porque me preciso de preparar sobre um assunto. E essas podem acontecer durante o dia e não é diferente de estar a escrever ou de estar a ler no computador. Eu gosto de ler no papel, no objeto táctil, objeto “transcendente”, como diz a canção do Caetano. Depois, também há ali um momento, ao fim da tarde, antes do jantar, em que eu posso voltar à leitura prazerosa. 

MC: E lês devagar. 

AMT: Eu leio muito devagar e gosto de ler com uma caneta ou com o que tiver à mão. Normalmente, é uma caneta e, portanto, escrevo e é como se fosse um caderno de notas, nas margens. Eu gosto de me apropriar do livro assim. Essa ideia de que o livro é um objeto sobre o qual não nos podemos inscrever e demasiado distante. Eu não me revejo nisso. Gosto do livro e da leitura como uma extensão daquilo que eu estou a perguntar.

MC: Um livro que leste várias vezes foi “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Quando Brás Cubas se encontra com a Natureza, pede mais anos de vida. Se estivesses frente a frente com ela, também pedirias mais minutos?

AMT: Esse encontro do Brás Cubas com a Natureza é num dos capítulos mais estudados das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Chama-se “Delírio”. E consta que Eça de Queiroz sabia esse capítulo de cor. E esse é um encontro do sujeito consigo próprio, com a sua Vida, com “V” maiúsculo. Estamos, no fundo, a perguntar-nos pelo sentido e estamos ainda a querer viver. E essa Natureza é simultaneamente mãe e madrasta. E esse é um dos aspetos mais inquietantes e causa perplexidade. E o próprio Brás Cubas diz isto. Como é que a Natureza pode dar e tirar? Eu gosto muito de ter essas perguntas sem resposta. E, continuamente, debater-me com elas, ir lá. Eu acho que, quando uma pessoa passa por uma doença grave ou por um momento assim mais…Não quero chamar-lhe “derradeiro”. Parece uma coisa muito dramática. Mas quando uma pessoa está assim a sós e enfrenta a sua caveira. Vamos ao dramatismo total. Quando a pessoa vê a sua caveira, há muitas coisas que perdem significado. E aquilo que tem significado, aquilo que importa mesmo, são muito poucas coisas. Aquilo que me fascina é saber como é que nós pedimos ainda mais uns minutos. Porquê? De onde é que vem essa vontade de viver? De onde é que vem esse impulso, essa coisa que nos faz querer o dia seguinte? Eu não sei. Mas a verdade é que uma pessoa pede mais uns minutos. 

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