Entrevista. Brigitte Giraud: “Nunca olhei tanto para este homem como agora que ele se foi embora”

por Lusa,    10 Junho, 2023
Entrevista. Brigitte Giraud: “Nunca olhei tanto para este homem como agora que ele se foi embora”
Giraud Brigitte / Fotografia de Francesca Mantovani
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O romance “Viver depressa”, de Brigitte Giraud, é uma “árvore genealógica” do desastre que matou o marido da escritora, mas é sobretudo uma reflexão sobre o “destino”, através da análise da cadeia de acontecimentos improváveis que, todos juntos, levaram àquele desfecho.

Vencedor do Prémio Goncourt 2022, o mais prestigiado das letras francesas, “Vivre Vite”, no título original, foi escrito por Brigitte Giraud 20 anos após a morte do marido num acidente de mota, o tempo necessário para o conseguir escrever e “estar à distância certa“, ou seja, ser um livro “apenas literário e nunca emocional”, contou a escritora em entrevista à agência Lusa.

Este romance resulta de “uma investigação” que Brigitte Giraud sentiu que tinha de fazer para saber o que é que na vida da sua família poderia ter levado ao acidente e como é que cada uma das suas escolhas “criou uma cadeia de acontecimentos” que levou àquele desfecho. 

É como uma árvore genealógica do desastre. Tive de escrever este livro porque não existe uma causa aparente para o acidente. E, portanto, nenhum sentido. O cérebro humano não consegue lidar com coisas que não fazem sentido. Escrever ‘Viver depressa’ foi uma forma de dar sentido ao sem sentido, de compreender o incompreensível, de tornar suportável o insuportável”.

O livro está dividido em capítulos que abordam os diversos acontecimentos, aparentemente sem ligação nenhuma com o acidente, mas que conjugados parecem tornar inevitável o evitável, e que começam por “e se”, num exercício mental sobre a possibilidade de mudar os acontecimentos.

Este livro está escrito com 23 peças de puzzle (23 capítulos). Se apenas uma dessas peças não se encaixar, o acidente não pode acontecer”, afirma.

Há uma mudança de casa, há uma viagem em trabalho, há um telefonema que não foi feito, a escolha de ouvir uma música em detrimento de outra, um favor feito ao irmão, entre muitos outros fatores, que são dissecados, capítulo a capítulo, pela autora.

E depois, nos dias, semanas e meses que antecederam o acidente, houve sinais estranhos (que eu não queria ver), coincidências bizarras, coincidências preocupantes… Tive de pôr tudo isso em ordem através da minha escrita”, confessa Brigitte Giraud.

A verdade é que nada, anteriormente, “tinha corrido como planeado”, acrescenta, explicando que foi por isso que “quis analisar de perto as diferentes formas de atuação que levaram à espiral fatal”. 

É quase um ‘thriller’ existencial. A primeira disfunção é esta casa que eu queria muito comprar e que não estava à venda. Depois, esta mota [em que o marido morreu, e que nem era dele] que foi proibida no Japão, onde foi fabricada, por ser considerada demasiado perigosa e reservada à exportação para a Europa. E depois aquele telefonema que eu devia ter feito…”.

São todos estes aspetos que fazem de “Viver depressa” uma grande interrogação sobre “o destino, essa palavra que em árabe é Mektoub, que significa ‘Estava escrito’”, sublinha a autora, acrescentando: “Estou a tentar descobrir se estava escrito, ou se o acidente foi fruto do acaso (outra palavra que vem do árabe e significa “jogo de dados”). Um terceiro conceito muito importante é o determinismo”.

Por todos estes motivos, Brigitte Giraud não hesita em dizer que este é um livro “sobre o destino”, mas também sobre a forma como as pessoas vivem as suas vidas.

É também uma declaração de amor. Nunca olhei tanto para este homem como agora que ele se foi embora. É muito perturbador. Para o escrever, tive de me aproximar muito dele, como nunca tinha feito durante a nossa vida em comum. Este é também um livro sobre arrependimento”.

Capa do livro

No entanto, recusa a ideia de uma catarse através da escrita, exercício que considera impotente para mudar a realidade, mas capaz de mudar a perceção dessa realidade.

Escrever este livro permitiu-me pôr as coisas em ordem, ousar olhar a verdade de frente, todas as verdades, as minhas, as dos meus entes queridos, mas também as do mundo que me rodeia”, explicou Brigitte Giraud, que, apesar de tudo, conseguiu equilibrar a sua análise com doses de humor e ironia. 

Na avaliação que fez dos acontecimentos, vários aspetos sociais, económicos e geográficos convergiram para o acontecimento central que pauta a narrativa e são largamente abordados na obra, porque a autora quis mesmo falar sobre assuntos como a “globalização, o liberalismo, os promotores imobiliários, a violência deste mundo em mudança, com a disseminação de tudo o que é digital”. 

É, por isso, também “um retrato do final do século XX, um retrato de uma cidade e de uma classe social. É uma interrogação sobre o casal, a família, o trabalho e o lugar dos pais”.

Sobre a cidade, no caso Lyon, sobressai a importância que tem na história, assumindo o lugar quase de uma personagem, uma escolha que foi intencional, na medida em que “o acidente está ligado à forma como nos deslocamos numa cidade”.

Observei atentamente a organização dos fluxos de tráfego nas diferentes avenidas, como se passa de um bairro rico para um bairro pobre, como se atravessa um rio. Como o clima é um fator importante. É tudo fascinante”, contou a autora.

Esta não foi a primeira vez que Brigitte Giraud abordou a morte do marido. Já o tinha feito no romance “A Présent”, escrito e publicado em 2001, dois anos após o acidente.

Mas esse foi um livro “sobre o choque, a explosão e a dor de estar no olho da tempestade, no meio do caos”, ao passo que “Viver depressa” é uma construção literária “sobre a vida”, a sua e a dos outros, sobre o amor, e é também “o retrato de um homem”.

Como tal, assume-o como “um livro íntimo, mas que ressoa com o coletivo, com o sociológico, o histórico, o geopolítico”.

Imbuída do mesmo espírito que norteou a investigação e a escrita da obra, Brigitte Giraud olha para o Prémio Goncourt e encontra nele também coincidência de circunstâncias.

Fiquei muito contente por receber o prémio, mas também me perguntei se haveria algum sinal. Porque o número 22 tem um significado especial no livro [o acidente aconteceu a 22 de junho de 1999]. E receber o prémio em 2022 é uma piscadela de olho extra!”.

A escritora de 63 anos, nascida na Argélia e residente em Lyon, autora de dez romances, confessa que desde que publicou este último livro se sente “mais calma” e que o prémio lhe veio “aumentar a serenidade” e dar energia para continuar a escrever, embora não o pretenda fazer durante algum tempo.

“Viver depressa” está publicado em Portugal pela editora Planeta.

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