Entrevista. “Conta-me Como Foi”: “Não há ninguém que não se reveja familiarmente nos Lopes”
Chegou a Portugal em 2007 e, através da família Lopes e as aventuras de Carlitos — o mais novo de três filhos e quem nos oferece a lente para podermos entrar na história — as novas gerações puderam perceber como eram vida política e os costumes sociais em Portugal, num regime ditatorial, no pré-25 de Abril, assim como as gerações mais velhas puderam relembrar aspectos da sua própria infância e juventude. Assim começou Conta-me Como foi, na RTP, uma ideia que tem como base a série Cuéntame cómo pasó, que tem a sua origem e exibição em Espanha. A primeira temporada terminou no marco histórico do 25 de Abril e, após um hiato de nove anos, regressou à RTP com um Carlitos mais crescido, nos anos 80 e, desta feita, com uma nova irmã, a Susana.
De momento, já podemos ver a temporada que faltava sobre a década de 80, uma época efervescente em música e na cultura POP, relembrando acontecimentos como o Mundial do México ou Chernobyl. “Não há ninguém que não se reveja familiarmente nos Lopes“, contou-nos Miguel Simal, argumentista e responsável pela supervisão do argumento da série, na conversa que a Comunidade Cultura e Arte (CCA) teve tanto com o argumentista como com Pedro Lopes, diretor de conteúdos da SP Televisão. Uma das ideias também latentes “é o quanto a história se repete e como encontrávamos eco com o presente“, revelam Miguel Simal e Pedro Lopes. Mas há também outra revelação, os Lopes começaram os anos 80 numa passagem de ano em que, cada um, quase que seguia para o seu lado. Agora o caminho vai ser encontrar, outra vez, o verdadeiro significado da união familiar.
Como surgiu a oportunidade de trazer o Conta-me Como Foi para cá, e o que é que vos atraiu na série espanhola?
Pedro Lopes [PL] – Trata-se de uma longa história. A série chegou a Portugal, em 2007. O Conta-me trata-se de uma série cuja primeira temporada foi, até, uma produção interna da RTP, gravada nos estúdios da EDIPIM. Já a segunda temporada e, ainda, alguns episódios que tinham ficado da primeira foram pela SP Televisão: a série resultou como um dos seus primeiros projectos. Acabou por ser o nosso arranque, digamos assim, como produtora — foi o Conta-me. Este recomeço, por isso, foi o regressar a uma série que, para nós, estava muito relacionada com a história da produtora. Por essa razão, depois desta paragem — sensivelmente de nove anos — a série teve muito o desejo da RTP, do José Fragoso, em retomar esta história. Em Espanha, a série nunca foi interrompida e aqui, em Portugal, houve este hiato de nove anos. Para recomeçar, também foi muito interessante porque, enquanto em Espanha nós temos este seguir das personagens, aqui foi preciso construir um bocadinho este vazio no espaço temporal. É interessante ver como a personagem [o Carlitos] de repente tinha crescido, enquanto o público espanhol foi vendo a personagem crescer ao longo das temporadas. Aqui não, houve um salto muito grande do Carlitos criança — tínhamos parado em 1974 — e este recomeço em 84.
Miguel Simal [MS] – É um Carlitos já jovem adulto. Muda o narrador e muda a história, o que é muito interessante.
PL – Os desafios são outros. Os desafios, mesmo, no sentido da idade. Não só pelo tanto que o país mudou, mas também pelas próprias ambições da personagem: a forma como vê o mundo e os seus objectivos. Ao chegarmos aos anos 80, também começámos a chegar às memórias de uma outra geração. Enquanto começámos nos anos 60, para algumas pessoas era a memória do seu passado, mas para outras era conhecer um país no qual não tinham vivido. Já o número de pessoas que recorda os anos 80 como a época na qual passou a infância e a adolescência é muito maior. Há medida que o tempo vai passando, no fundo trabalhamos essas memórias colectivas, embora haja, sempre, uma geração que não as viveu. Mas para nós foi muito interessante porque, de certa maneira, já é a nossa infância e adolescência — a infância e adolescência de quem está a escrever. Tenho 46 anos e o Miguel tem um bocadinho menos, mas é uma época que nos diz muito não só dos livros, mas das nossas próprias memórias pessoais.
MS – Acho que concordas comigo, Pedro. A última parte foi, quase, como construir um puzzle das memórias quando somos pequenos. Nasci em 80, a série vai de 84 a 87, foi, por isso, quase como construir as memórias das histórias que a minha família me contava sobre o meu crescimento. Foi, quase, como voltar atrás e viajar no tempo: senti que foi uma viagem no tempo. Foi agradável essa parte de trabalhar no Conta-me.
PL – Achamos, sempre, que vivemos momentos relevantes da história mas, quando olhamos para trás, há momentos que têm um impacto mais duradouro ou são mais definidores do rumo que os países tomam. Quando começámos esta temporada, tínhamos a sombra do FMI, da intervenção de Portugal, e falámos, de alguma maneira, até à assinatura da entrada de Portugal na CEE [Comunidade Económica Europeia] — Portugal e Espanha — e uma primeira maioria absoluta com o Cavaco Silva, que também é definidora e que marca, historicamente, um período específico do país. É muito interessante vermos isso, embora não olhemos para o Conta-me como uma história de época, não como uma série histórica, mas como uma série de época, ou seja, com personagens ficcionais que habitam um espaço da memória, mas que não pretendemos que representem ninguém, em específico.
São personagens completamente ficcionais mas, no pano de fundo, está o país real. Não se deixa de fazer uma reflexão, não com o objectivo de se fazer uma reflexão política mas, sobretudo, sociológica, que vai desde pequenos pormenores — como as pessoas se vestiam, o que é que se comia na altura — até à forma de pensar, o lado comportamental e a linguagem. Essa reconstrução para nós, enquanto argumentistas, é muito interessante de fazer. Como esta série já foi filmada já há um tempo, pré-pandemia, agora que me sentei — eu e o Miguel já falamos sobre isso — é muito interessante que, de alguma maneira, estamos a ver uma série que já não estava assim tão fresca na nossa memória e, assim, conseguimos ter o distanciamento de ver como espectador. É realmente um prazer rever estas personagens e, sobretudo, rever uma época que tem uma certa nostalgia.
Referiu que, em Espanha, a série não sofreu interrupções, e em Portugal houve interrupções. Porquê estas interrupções, especialmente no que diz respeito a estes episódios que estão no ar agora, e já haviam sido gravados?
PL – Isso são estratégias da própria estação e, obviamente, faz sentido tendo em conta as várias séries. Em termos internacionais, as temporadas estreiam com um período de tempo de, pelo menos, 6 meses, entre as diferentes temporadas. Penso que a RTP também tem feito essa gestão, de passar uma temporada por ano, apesar de ter sido gravada antes e, portanto, isso é uma estratégia de exibição. O facto de ter terminado na altura fazia sentido: o último episódio terminava em 24 de Abril de 1974, na madrugada para 25 e, portanto, era ali um marco. A verdade, porém, é que passado estes anos, a própria RTP sentiu que havia espaço, novamente, para uma série para o Conta-me e, obviamente, ficámos completamente de braços abertos para esta ideia. Foi falar com os actores — com o Miguel Guilherme, a Rita Blanco e todos os outros sobre esta possibilidade — e, claro, toda a gente recebeu esta ideia com muito entusiasmo. Às vezes as coisas não acontecem por um motivo muito especial, são raras as séries que têm esta longevidade e, naquele momento, tínhamos ido de 68 a 74, e foram bastantes temporadas. Agora fazia sentido este regresso aos anos 80 passados estes anos todos, e vai terminar em 87. Sabemos lá se, daqui a dez anos, o Conta-me não poderá retomar com os anos 90 e com uma nova geração que olhe para o seu passado, para a sua juventude. É um formato que vive dessa nostalgia e, portanto, tem sempre um espaço para estar e não estar.
Mas há essa vontade e hipótese de se avançar para os anos 1990?
PL – Não digo que há ou não há. Não é, sequer, uma questão. O que estou a dizer é que o formato é um que não vive da urgência do momento, não estamos a contar uma história contemporânea que tem de ser aqui e agora, estamos a fazer uma reflexão sobre o passado. É, portanto, um tipo de série que tem sempre oportunidade de surgir. Neste momento, em 87, e achámos e a estação achou que fazia sentido este corte porque se entra num novo momento, num novo ciclo do país. Terminamos aqui com estas temporadas que foram de 84 a 87.
Se olharmos para o primeiro episódio da série espanhola e para o primeiro episódio da série portuguesa há bastantes similitudes, até em termos de guião, especificamente nas primeiras cenas. Até que ponto há liberdade para inovarem e fazerem a adaptação para a realidade do país? Ou seja, a liberdade é igual ou há algumas linhas guia que têm de ser seguidas?
PL – Acho que quando se escolhe um formato é porque se acha que esse formato tem qualidade e é relevante. Acho, portanto, que se deve aproveitar tudo o que tem de bom. Obviamente que estamos a falar de uma série de época em que, por vezes, a realidade que vês em Espanha pode não coincidir, completamente, ou pode não coincidir naquela data exacta, com a história portuguesa. Por acaso, uma coisa com a qual eu e o Miguel nos debatemos, foi com o primeiro caso de sida em Portugal e em Espanha — não coincidia o mês. Os episódios reflectem o mês e, portanto, não fazia sentido naquele episódio, mas poderia fazer sentido passados dois ou três episódios. Há, portanto, aqui um grande rigor, quando temos, na temporada anterior, o acidente de Alcafache e, na versão espanhola, houve um incêndio numa discoteca em Madrid, onde morreram umas dezenas de pessoas. Não vamos falsear o que foram os factos. O que vamos encontrar são situações relevantes que possam, do ponto de vista dramático, ter o mesmo efeito. Os episódios podem aproximar-se ou distanciar-se mais, dependendo do que, para além da história ficcional, está nos episódios. O que acontece é que, muitas vezes, a história ficcional também vai ao encontro de alguma coisa que aconteceu na realidade, portanto, esses dois níveis é possível ir equilibrando.
MS – Acho que com os anos as personagens, até pelo trabalho dos actores, vão ganhando vida própria. O António e a Margarida portuguesas, ao fim de 20 anos de série, não são exactamente iguais ao António e à Margarida espanhóis, porque a Rita Blanco e o Miguel Guilherme trazem uma parte deles. Seguimos as linhas espanholas, mas contamos uma história muito portuguesa. A dada altura é só mais uma linha guia e temos alguma liberdade, como o Pedro diz, de seguir a nossa história, a todos os níveis: a nível histórico e ao nível da evolução das personagens.
PL – Sim. No arranque, ou seja, na primeira temporada, havia a questão dos dois países viverem sob regimes ditatoriais, Salazar e Franco e, à medida que vai avançando, as coisas vão-se diferenciando. Temos uma guerra colonial e a nossa revolução acontece numa altura em que não acontece em Espanha: o processo de democratização em Espanha é diferente do processo de democratização em Portugal.
“Achamos, sempre, que vivemos momentos relevantes da história mas, quando olhamos para trás, há momentos que têm um impacto mais duradouro ou são mais definidores do rumo que os países tomam.” / Pedro Lopes
MS – A emigração, por exemplo, é completamente diferente.
PL – Por isso, é natural que as coisas se possam ir afastando e que ganhem um caminho próprio. No entanto, reconhecemos que o que agradou à RTP e nos agradou a nós, enquanto formato, foi o facto de ser uma série que vive muito da nostalgia e das pequenas coisas que nós reconhecemos como pertencendo ao passado de todos nós. Não se quer que seja uma série política mas, sobretudo, uma série em que também importem as questões sociais, o comportamento, a forma de pensar e, depois, até as pequenas coisas, como a música que se ouvia e os penteados. A identificação vem também dessas pequenas coisas.
MS – Não sei se concordas comigo Pedro, mas acho que não há ninguém que não se reveja familiarmente nos Lopes.
PL – Claro!
MS – São a nossa família, de certa maneira. Ao fim destes anos todos eu, por exemplo, estou a rever os episódios e parece que estou a visitar a minha família no Natal ou na Páscoa. Acho que eles se tornaram uma parte da família portuguesa. E todos os espectadores que seguem a série, há anos, vão atrás da sua família quando vão ver o Conta-me.
Estamos a falar de duas épocas diferentes, o pré-25 de Abril e, depois, os anos 80, que marcou o início da abertura de Portugal para o mundo. Até que ponto acham que a personalidade do casal principal, os Lopes, também vai acompanhando, a nível de mentalidade, essa evolução ou transição portuguesa?
PL – É o sinal dos tempos e, depois, como têm filhos que seguimos desde muito pequenos, na primeira temporada, também as situações com que vão sendo confrontados — com o crescimento dos filhos, as suas escolhas profissionais e as relações amorosas — também os fazem questionar a sua forma de pensar e também eles vão mudando, relativamente com os problemas que vão tendo no casamento e a forma como os resolvem. Há todo um crescimento que não é só das personagens mais novas mas, também, do próprio casal que vê o país mudar e eles próprios mudam.
MS – Uma parte muito interessante de escrever esta parte dos anos 80, é que os nossos protagonistas que eram o casal principal, de repente, já têm os filhos adultos. Já eles estão a caminhar para a idade dos avós, quase. Aliás, eles já são avós. É muito engraçado ver essa passagem de testemunho e eles sentirem que ainda são novos e ainda é o tempo deles, mas já lhes começam a fugir os anos. Nós seguimos o primeiro Conta-me e eles têm a idade dos filhos, agora têm a idade da avó, mas não quer dizer que percam relevância. É muito interessante tentarem adaptar-se aos tempos modernos.
Os Lopes surgem no núcleo de personagens que temos como protagonistas e têm conseguido, ao das temporadas, manter a sua importância e centralidade. O quão difícil ou fácil é conseguir isso, e conciliar a centralidade do casal Lopes, com o surgimentos de outras personagem que, por si, também vão ganhando espaço, principalmente agora na década de 80?
MS – Foi fácil porque temos um elenco óptimo. Há três personagens que são novas e que gosto imenso nesta temporada: a Luz, a Amparo e o primo Zé, que são o Rui Melo, a Madalena e a Mafalda Vilhena. Ao fim de dois episódios já fazem parte da família. Temos actores muito bons, temos um elenco óptimo, por isso, acho que o mais difícil foi fazer o público aceitar que o Carlitos cresceu. É mais difícil estarmos apaixonados por uma personagem principal, que é uma criança de nove, dez anos, e depois a personagem transforma-se num jovem adulto — os jovens adultos falham e fazem disparates — do que aceitarmos novas personagens. Mas a reacção do público foi muito boa.
PL – Esse foi o grande desafio, porque o Conta-me, o que tinha, é que nós estávamos a ver um período da nossa história em que se vivia sob uma ditadura, sob os olhos de uma criança. A realidade aparece, portanto,
MS – A preto e branco.
PL – E os pormenores que lhe interessam são, por vezes, os pormenores que fazem sentido dentro da estrutura mental de uma criança, não as grandes questões políticas. No fundo, ele reflecte sobre aquilo que tem impacto na sua vida, na vida da sua família e na vida do seu bairro. Ao termos, agora, uma personagem que é adulta, essa visão inocente desaparece. O regime desapareceu e, portanto, temos uma nova voz de um narrador e se isso, por um lado, nos conduziu, aqui, a um processo interno de grande reflexão, por outro lado também há o desafio de reconhecermos o Conta-me, reconhecermos as personagens, mas não ser mais do mesmo. Termos alguma coisa que é nova e, portanto, termos aqui um narrador que também vê o mundo de uma outra forma e cujas coisas impactam de uma outra forma na vida dele, porque já tem uma outra idade.
Mas, obviamente, a voz que temos não deixa de ser a do Luís Lucas, alguém que já é muito mais velho e que está a reflectir sobre as várias fases da sua vida. Obviamente, a forma como um adulto relembra a sua infância ou relembra a sua adolescência, ou o começo da idade adulta, é diferente, e as coisas que questiona são diferentes. Como o Miguel diz, portanto, a entrada de personagens novas faz sentido, refresca as temáticas, outras preocupações, permite-nos organizar as histórias de forma diferente, mas isso não nos trouxe qualquer problema. O que nos trouxe, mas não foi um problema, foi uma reflexão, foi a perda da inocência do olhar de uma criança, e temos um período que já não é um período ditatorial, mas o período da consolidação da democracia. E esse foi, para nós, o grande desafio.
O Carlitos foi, então, a personagem que mais teve de evoluir.
PL – Sim, claro. Os pais obviamente que mudaram: o casamento já tem uma série de anos, têm o desafio da estabilidade financeira, os filhos agora são crescidos, têm netos mas, obviamente, que a vida do Carlitos é aquela com maior impacto. Há uma mudança enorme entre o período em que vivia dependente e protegido pelos pais e, agora, há a sua entrada no mundo dos adultos, com todos os desafios que tem, com a concretização dos seus sonhos ou das suas primeiras grandes frustrações.
MS – Nestas três temporadas, o processo de maturidade do Carlitos tem muito a ver com o processo de maturidade do país. Nós éramos uma jovem democracia, tal como o Carlitos era, de certa maneira, uma jovem democracia: ainda está confuso, ainda está à procura dos seus caminhos, e quando a série termina ele está muito mais maduro, muito mais adulto, e percebe a importância da família. Penso que foi uma coisa que nós criámos, no início do primeiro episódio desta primeira temporada dos anos 80: os membros da família estão todos separados. Aliás, começa no fim de ano, está cada um no seu ponto – isto é um spoiler – mas é todo um caminho para eles se juntarem e perceberem que são mais fortes em família, como um todo. Acho que a maturidade também passa muito por aí, porque há uma fase da nossa vida, quando somos mais novos, em que renegamos tudo: renegamos os pais, os amigos, porque queremos ser independentes e, depois, com a maturidade percebemos que há um conforto com a família que, também, acaba por ser o conforto que temos com os Lopes.
PL – Isso é muito português e é muito latino, esta ligação à família, a ligação às raízes. Acho que isso é profundamente português. As pessoas identificam-se completamente com a forma, com a dinâmica familiar que aqui vemos, em que pode haver discussões gigantes mas que, no final,
MS – No final sentam-se todos à mesa e fazem as pazes.
O Conta-me como Foi é uma série de época que retrata o lado social de uma família, e os seus dramas, e os conjuga com os momentos históricos que o país atravessa. Acham que é isso que dá o encanto à série? Podermos seguir o lado social e o lado familiar dos Lopes, ao mesmo tempo que um professor de história pode passar a série na sala de aula?
PL – Até diria que pode ajudar a ter uma visão, ou conseguir imaginar o que, às vezes, por simples leitura, não é fácil de conseguir. Acredito que as séries de época e as séries históricas têm um papel na construção da memória social. Cada vez mais, uma nova geração terá essa consciência do seu passado comum, da sua identidade, enquanto país: não só através da fotografia, mas através da Historiofotia, como dizia o Hayden White. Isso tem a ver com esta reconstrução, com este rehappening do passado através da ficção histórica e de época. Acredito que este tipo de ficção tem o objectivo de ser entretenimento, mas também contribui para a construção de uma memória colectiva.
E houve algum momento histórico que vos trouxesse mais desafios, na altura de ser abordado?
PL- Acho é que é sempre um bocadinho ao contrário. É feita uma pesquisa e, com a ajuda de consultores históricos, é feita uma pesquisa de tudo o que passou: uma cronologia muito fina, digamos assim, de todos os acontecimentos em Portugal, portanto, muito através da leitura dos periódicos da época, quer cruzando com uma cronologia internacional, quer cruzando com uma cronologia com os episódios que já existiam e, depois, com histórias que nós queremos contar na forma como, de alguma maneira, podíamos fazer um paralelismo entre o que estava a acontecer a esta família e o que estava a acontecer no mundo e no país. Não diria, portanto, que houve essa dificuldade.
A dificuldade é a dificuldade normal de procurarmos acontecimentos que tenham sido significativos, que tenham sido relevantes. Diria o contrário. Há acontecimentos que, de alguma maneira, nos despertaram mais ou menos memórias da época em que vivemos. Pegando aqui no primeiro desta temporada, a questão de Chernobyl é uma memória fortíssima, por exemplo, para mim, e por isso é muito interessante quando podemos pegar nessas imagens de arquivo e fazermos a transposição. No fundo, dá o convite para as pessoas entrarem na ficção através das imagens da realidade que, muitas delas, se lembram. Facilita muito, portanto, a forma como depois somos introduzidos na história. Mais do que dificuldade, foi o reencontrar coisas que, de alguma maneira, pudessem ressoar.
MS – Cada episódio, no fundo, representa um mês da história. Quando estávamos a trabalhar nesse mês, nesse episódio, só líamos notícias de época relativas ao mês. Uma coisa engraçada é o quanto a história se repete e como encontrávamos eco com o presente: os governos têm problemas semelhantes, a Europa tem problemas parecidos. Foi a parte mais interessante, foi o descobrir o quanto conseguíamos encontrar eco com o que estávamos a viver na altura em que estávamos a escrever a série, com o que os Lopes estavam a viver há 30, 40 anos e, de certa maneira, aprendermos alguma coisa com isso. Não é tanto um momento específico de história que tenha sido difícil de recriar, era mais o que é que foi interessante naquela altura para recontar. Este episódio de Chernobyl acaba por bater com a guerra na Ucrânia: os mesmos medos. Não esperávamos, em 2023, estarmos com medo que uma central nuclear explodisse e, de repente, aqui estamos passados 40 anos, com os mesmos problemas da história.
Então teve de haver um trabalho de arquivo intenso. Foi assim que a pesquisa foi feita? Muita leitura de jornais da época, também?
PL – A equipa de pesquisa ouviu uma consultora histórica que nos fornecia muito do material que depois mapeávamos. Mas sim, isso vinha desde a primeira temporada, que foi esse o modelo de trabalho.
MS – No ano em que estive a escrever o Conta-me, só lia jornais dos anos que estávamos a tratar. Se me fizessem essa pergunta, sabia responder melhor sobre o que se passou em 84 do que em 2019 ou em 2020. Resolvi entrar, completamente, na época que estávamos a escrever, eu e o resto da equipa.
PL – Aí temos de agradecer a essa equipa de consultoria pelo trabalho incrível que fez ao longo de todas as temporadas.
Os anos 80 estiveram muito em voga, desde a música até à moda, recentemente. Sentiram que a parte referente aos anos 80 conseguiu chamar as gerações mais jovens por causa disso?
PL – Acho que a música, quando estamos a falar de uma série de época, ou até na nossa vida — no meu caso a música tem uma importância muito grande na minha vida — é extremamente importante. Por isso, determinados temas, determinados grupos que ouvimos no passado vêm imediatamente à memória, e trazem consigo as experiências que tivemos, coisas que vivemos. Numa série desta natureza, não faria sentido se não tivesse uma banda sonora que fosse muito fiel ao que foi a época. Então, nos anos 80, com o boom do rock português, também era importante que houvesse uma presença mais ao menos constante daqueles grupos. Alguns apareceram e desapareceram muito rapidamente, mas ficaram na memória de todos e, ainda hoje, passam nas rádios. Acho, por isso, que nós damos muita importância à imagem, mas o som, nas séries e nos filmes, tem uma importância enorme e, por isso, nesta série também houve um cuidado muito grande com toda a produção.
MS – Eu e o Pedro costumamos fazer uma playlist para cada projecto em que trabalhamos e hoje, antes da entrevista, estive a ouvir a playlist para me despertar mais a memória — as músicas — e lembrar-me do que estava a ouvir quando estava a escrever os episódios, do que, por exemplo, ler guiões para falarmos. Há um lado muito sensorial
PL – Havia uma playlist, pois havia.
Uma das maiores diferenças em relação ao pré-25 de Abril e, agora, os anos 80, penso que tem a ver com a forma como os próprios filhos do casal Lopes vivem as relações: parece que já não tem, bem, aquela noção de relação para a vida. Tiveram isso em conta?
PL – Estamos a passar de um regime que era bastante fechado, bastante restrito, bastante classista — mesmo as relações domésticas, as relações de género eram vividas de uma outra forma, a relação entre pais e filhos também — e passámos para uma época em que havia uma maior liberdade, uma maior contestação, mesmo em termos domésticos e na relação com os pais. Por isso, como o Miguel dizia há pouco, a democracia estava a dar passos e a descobrir caminhos e, de alguma maneira, também as pessoas estavam a descobrir um momento novo de liberdade e que, depois, de todas as situações com a revolução, se foi normalizando. Também estas personagens estão no meio dessa convulsão, a tentar encontrar um rumo para as suas vidas. Foi, por isso, um desafio muito interessante para mim, gosto muito de séries de época e séries históricas. Têm, de alguma forma, a ver com o meu percurso porque sou licenciado em história, sou professor de história antes de ser argumentista e, portanto, são tudo temas que me interessam escrever. Este contributo que nós damos, não é só para as pessoas terem uma hora em passada ao fim-de-semana, mas para contribuir, também, para a construção permanente da memória do nosso país.
Mas é engraçado que quase se pode fazer um paralelismo entre a indefinição, ou na vida profissional ou na vida amora, dos filhos do casal Lopes, com a indefinição actual da vida dos mais jovens hoje em dia.
PL – Como o Miguel dizia há pouco, há ciclos que nós vemos e em que as situações se repetem. Ou seja, a forma como os pais vivem a incerteza do caminho profissional dos filhos, as suas escolhas, os casamentos, nada disso mudou. Hoje em dia, temos aqui o desafio do desemprego jovem e todas essas questões, mas a verdade é que é uma questão que acaba por ser eterna: as escolhas que nós fazemos, se escolhemos as escolhas por paixão, se escolhemos as coisas por serem seguras, se nos sentimos felizes profissionalmente e, esse desafio, acho que é comum a todas as gerações, apesar de, depois, cada geração poder ter um desafio específico. Mas esta forma de angústia relativamente ao futuro, ou a alegria com que se encara o futuro, acho que, se calhar, não é assim tão diferente, na forma como se vive nas diferentes gerações. Estamos sempre a falar do lado do crescer, de nos emanciparmos, de querermos ser felizes. Isso acho que é comum a todas as épocas.
Os anos 80 marcaram a abertura de Portugal à efervescência POP. E, como já foi referido, desde a música ou moda, houve muitas referências que ficaram na memória desde então. Tiveram algum cuidado especial em trazer esse lado para a série?
PL- Sim, e diria por um motivo, enquanto tínhamos um Carlitos muito pequeno na primeira temporada, agora já é um jovem adulto solteiro, de 20 e tal anos, com as primeiras experiencias profissionais e, portanto, há toda essa ligação ao mundo da música, o sair à noite, as namoradas. Estamos, aqui, numa época em que a cultura POP fervilha muito mais, tal como aconteceu no país. Quando olhamos para trás, em que temos um casal que já tem 3 filhos, que já leva a vida de uma certa idade e já está estabelecido, é completamente diferente quando entramos aqui com um Carlitos com 20 e poucos anos, e a forma como ele vive a vida. Está, portanto, intimamente ligado a esse crescimento de uma cultura urbana e POP.
Havia, também, uma relação diferente entre pais e filhos. Portanto, se eu, que cresci no pós-25 de Abril, tenho uma relação de maior proximidade com os meus pais, em que os trato por tu, seria impensável para a geração anterior aos meus pais tratarem os seus pais por tu. E, por isso, havia uma maior distância nas gerações anteriores. Isso reflecte-se na relação que vemos nas personagens e na forma como elas falam. Quando avançamos no tempo, portanto, também vemos que a linguagem muda, que a relação entre pais e filhos muda — reflectem uma época específica. Acho que isso não foi tanto um piscar de olho ao público, mas sim o sermos fiéis à época, às expressões que se utilizavam e à linguagem: tentarmos reproduzir, ao máximo, até ao nível de expressões que numa época se usavam e que, depois, caíram em desuso, ou o contrário. Não podemos usar determinada expressão numa época em que ela ainda não era usada pela maioria da população. A linguagem também mostra essa evolução do país.