Entrevista. Dino d’Santiago: “Neste momento é a cultura que nos tem salvo”

por Espalha-Factos,    15 Abril, 2020
Entrevista. Dino d’Santiago: “Neste momento é a cultura que nos tem salvo”
Dino D’Santiago / Fotografia de David Piedade
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Dino d’Santiago é um nome que não deixa ninguém indiferente. O músico cresceu nos Expensive Soul, onde esteve durante 11 anos. Hoje, é artista a solo e cada vez ultrapassa mais fronteiras. Durante o período de isolamento social, surpreendeu os fãs com um novo álbum, Kriola. Depois do sucesso Mundu Nôbu, volta às raízes cabo-verdianas e une o crioulo e a língua portuguesa na mesma corrente.

O Espalha-Factos conversou com o artista através de vídeo-chamada, onde foram desvendadas curiosidades sobre o álbum.

Segundo sabemos, nem sempre quiseste ser músico. Como surgiu esta paixão?
Na verdade nunca esteve desvanecida, sempre existiu, mas não como profissão. Fazia parte da minha vida. Desde miúdo que cantava na igreja e depois passei a cantar em galas infantis. Como carreira, via algo mais ligado à História da Arte ou à ilustração. Até quis ser professor de História da Arte, inspirado por uma professora que admirava muito. Entretanto a música apoderou-se do caminho e decidi voltar atrás. E ainda bem, porque a música é uma das muitas manifestações da arte que sinto e é a que me faz chegar a mais gente.

Curioso. Referiste que a música é uma das muitas manifestações da arte que sentes. Quais são as outras?
Costumo ilustrar e desenhar, é uma coisa que gosto muito. É uma das minhas grandes paixões, onde realmente saio deste planeta e crio o meu mundo imaginário. Já quando editei o Mundu Nôbu, ilustrei todas as faixas para os vídeos do YouTube, em timelapse. Deu um gosto especial. Ainda ontem voltei a desenhar, porque parei as viagens na estrada, e deixa-me muito contente.

Este ano começou bem, foste convidado a participar no Festival da Canção. O que significou para ti?
A música ‘Diz Só’ já adivinhava o que vem aí, diz muito sobre a crioulização. Esta forma de sentirmos que somos todos parte de uma só cultura e que o crioulo não é, nada mais nada menos, que o resultado dessa mistura entre todos nós. Foi isso que tentei passar, o lado feminino da humanidade. Acho que todos temos esse lado. Para mim, o que define a regeneração do ser humano é quando a mulher ganhar o papel que merece na nossa sociedade. A ‘Diz Só’ é uma elevação à mulher e a essa luta milenar, é o Grito do Ipiranga.

Por falar em mulher, a RTP estreou recentemente o programa Em casa d’Amália, do qual fazes parte. O fado influenciou-te de alguma forma enquanto artista?
Claramente que sim. Bebi muito do fado graças ao Jorge Fernando e à Fábia Rebordão. Comecei a perceber a filosofia e todo o ritual que existe à volta do fado. A Amália Rodrigues é um exemplo para mim, já no disco Eva o tema ‘Herança de uma Cantadeira’ é dedicado a ela. A maior parte das pessoas não sabe, mas a introdução refere-se à Amália quando diz que “teve tudo, mas mesmo assim não soube ser feliz“. Revejo-me muito nessas palavras e também na expressão “não me peçam para dar a única coisa que tenho para vender“, que é a sua arte. Ela foi fado, mas quando esteve nos Estados Unidos cantava música americana, em Itália cantava música italiana, em Espanha cantava flamengo. Ela soube valorizar a terra que pisava.

Olhando para trás, qual foi o momento mais marcante da tua carreira?
Para ser sincero, o mais importante foi quando o Virgul, em 2004, chegou à casa dos meus pais e disse “os Expensive Soul estão a precisar de uma voz, posso levar o Dino?“. Este momento foi decisivo, mostrou a liberdade que os meus pais me deram para me aventurar. Tive a sorte de ter amigos como ele que investiram em mim.

Lançaste agora um novo álbum, Kriola. Como surgiu o nome?
Surgiu a partir da afirmação do movimento crioulo, que se reflete na cultura da mistura que todos nós somos. Vem da crioulização dessa cultura, ou seja, a união de várias línguas e formas. O nome é no feminino porque se trata de uma homenagem ao elemento que nos rege, a mulher.

Assumes que este é o teu álbum mais ativista. O que pretendes transmitir?
É o olhar atento às mães que perdem os seus filhos, como a mãe do Giovani [jovem cabo-verdiano que faleceu no início do ano ao tentar separar uma rixa]. Nada tem a ver com racismo, podia ter sido outra pessoa ali. Foi um momento de ódio que culminou na tragédia. É o relembrar da Sra. Cláudia que também foi agredida por polícias, assim como a violência doméstica que aumenta cada vez mais. O disco fala sobre tudo isso, a importância que há em assumirmos as nossas misturas e não nos esquecermos que a iniquidade deve ser extinguida.

No fundo, o álbum representa a tua identidade e os teus valores. Sentes que ainda há alguma barreira por quebrar?
Depois de ouvir a ‘Brava’, que é um batuque, a tocar na Antena 3 e recentemente ouvir funaná com o Julinho a passar na Mega Hits, sinto que os vários espectros da nossa cultura, que eram censurados pelo colonialismo, já foram quebrados. Chegar à minha idade e poder ouvir, juntamente com os meus pais, estas músicas a passar na rádio, é a maior vitória possível. Ouvir as pessoas no concerto a cantar em português e em crioulo, faz-me pensar que muito está feito e agora devemos continuar a plantar essa semente.

Fizeste várias colaborações com artistas como o Branko, Julinho KSD e o Kalaf. Quem gostarías de convidar para um próximo tema?
[Risos] Boa pergunta. Sou fã de tantos artistas nossos, a Sara Tavares, Slow J, Richie Campbell, entre outros. São artistas que admiro muito. Já tive a oportunidade de colaborar com muitos outros que serei fã até morrer, como o Sam [The Kid], o Valete e o Carlão. Se pudesse escolher neste momento, gostava de fazer um som com a Rosalía. É a pessoa que mais estou a admirar pela forma como está a trabalhar. A nível nacional, gostava de trabalhar com a Ana Moura, é um timbre que aprecio muito.

Acredito que estejas ansioso por apresentar o teu álbum ao vivo, quando for possível. Qual é a reação que gostavas de ver do público?
Muito ansioso! Se for como aconteceu com o Mundu Nôbu, que os concertos estavam sempre esgotados e estava repleto de pessoas à minha volta a cantarem, a única coisa que quero é que ao tocar ao vivo, que as pessoas possam estar perto novamente, sem medo do coronavírus. Só o simples facto de podermos estar perto, para mim é o melhor.

A cultura tem sido uma das áreas mais afetadas pela pandemia da Covid-19. Como estás a lidar com a situação?
Tenho procurado manter a frequência do meu pensamento elevada, para não entrar na corrente da preocupação. Acredito que existam agentes culturais que estão a trabalhar para entrar em acordo com as Câmaras Municipais, de forma a não cancelarem os concertos. É uma verba que já está disponibilizada, por isso espero que a dirijam aos músicos e definam novas datas. Neste momento é a cultura que nos tem salvo. São as séries e os filmes que já foram gravados antes disto acontecer, os programas de TV, as rádios… Todos estão a trabalhar para nos entreter e isso já passou a ser uma espécie de medicina para nós, já não é só o entreter.

Quanto tudo isto terminar, não seremos os mesmos. Concordas?
Espero que não, porque de outra forma não teria servido de nada. Espero que sejamos pelo menos 5% mais sensíveis. Em vez de ficarmos um mês sem dizer aos nossos pais que os amamos, passemos a dizer uma vez por semana. Temos de compreender que o comunicar vai muito além de um simples telefonema, é estar realmente atento ao próximo.

Entrevista de Madalena Soares e originalmente publicada em Espalha Factos.

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