Entrevista. Douglas Stuart: “Hoje não vemos muitas pessoas pobres, não por não existirem, mas porque estamos muito mais focados em nós próprios”

por Linda Formiga,    31 Dezembro, 2021
Entrevista. Douglas Stuart: “Hoje não vemos muitas pessoas pobres, não por não existirem, mas porque estamos muito mais focados em nós próprios”
Douglas Stuart / DR

Douglas Stuart é um escritor escocês que viu o seu romance de estreia, Shuggie Bain (editado em Portugal pela Alfaguara), ser rejeitado dezenas de vezes pelas editoras. Foi com este mesmo romance que venceu o Man Booker Prize, pela comovente história familiar em Glasgow. Estivemos à conversa com o escritor há uns meses, para falarmos sobre épocas, direitos humanos e redes sociais. Para falarmos da luta travada todos os dias por aqueles que, com as suas idiossincrasias, têm de sobreviver numa sociedade que nem sempre está preparada para os receber.

Em primeiro lugar, muito obrigada por nos receber. Gostava de lhe perguntar, quem é o Douglas Stuart e quem é Shuggie Bain?
Shuggie Bain é uma personagem 100% fictícia. Não é o meu alter-ego. Não é a narrativa da minha infância. Mas eu cresci numa família da classe baixa em Glasgow, que sofreu bastante com os anos de Margaret Thatcher na cidade. Era o filho mais novo de uma mãe solteira, que sofria de alcoolismo desde as minhas primeiras memórias até ela falecer. Fiquei órfão aos 16 anos. Também cresci como homossexual numa altura de patriarcado, e em que a masculinidade era extremamente rígida. As cenas e as personagens são todas fictícias, mas escrevo sobre pobreza, solidão, perda, luto, adição, discriminação, misoginia por dentro, se isso fizer sentido. Baseio-me muito na minha própria infância para criar uma peça de ficção. Mas não poderei dizer que esta é a narrativa da minha infância.

No discurso de aceitação do Man Booker Prize, Douglas diz que Shuggie Bain é uma obra pessoal e de ficção. Mas será um retrato da realidade escocesa nos anos 80?
Não era um retrato da realidade escocesa. A bem da verdade, não era sequer um retrato da realidade de Glasgow, que é uma cidade incrivelmente diversificada e onde há muita riqueza. Há uma grande classe média cosmopolita. Mas também há uma parte impressionantemente grande da população que é de classe baixa. E algumas dessas comunidades sentem-se bastante ignoradas ou abandonadas. É um retrato dessas comunidades a partir de dentro.

No seu discurso de aceitação, também diz que a sua mãe está em todas as páginas deste livro. Poderia dizer que todas as mulheres e crianças que vivem nessa realidade estão também em todas as páginas deste livro?
Sim, acho que sim. Retirei daí muita experiência e ao dizer que a minha mãe está em todas as páginas do livro, não quero dizer que a minha mãe esteja no livro, mas o amor, a perda e o luto que tenho transportado há 30 anos são parte do motivo pelo qual escrevi o livro. Quis celebrar a resiliência e não me focar apenas na adição. Quando lemos o livro, temos um retrato complexo de uma mulher. Ela é irreverente, bonita, inteligente, orgulhosa, resiliente, generosa, divertida, mas também adicta.

E é apenas uma celebração das mães de classe baixa entre as quais cresci, não apenas a minha mãe. Por ser um jovem homossexual, os outros homens e rapazes não sabiam o que fazer comigo, por isso era um pouco ostracizado. Mas fez com que estivesse sempre na companhia de mulheres quando era jovem. Foi difícil na altura, mas agora estou bastante grato por isso, pois é um mundo que os jovens rapazes normalmente não conhecem. E eu celebrava, por vezes, o humor ou o engenho ou a camaradagem ou o conflito entre estas mães. E é isso que está nestas páginas. Há uma corrente na literatura inglesa sobre o contexto pós-industrial nas comunidades em declínio. Pensando no Irvine Welsh, James Kelman, Barry Hines, Agnes Owens, mas todos estes se focam em homens heterossexuais. Como nas mulheres, os homossexuais nunca estão ali. E isto não me parece real, porque sempre soube que as mulheres eram o ponto forte da cidade. E não só da cidade, mas também os elos de comunicação e de expressão que tentavam manter as famílias unidas. E elas eram engraçadas. E foi por esse motivo que eu escrevi o livro, para dar voz a essas vozes.

“Shuggie Bain”, livro de Douglas Stuart

As vozes silenciosas, por assim dizer.
Sim. Se eu tivesse escrito uma história na classe média, esta seria sobre uma família a passar por dificuldades, mas as pessoas à volta, os vizinhos, estariam bem. E era só uma família. Neste livro, eu saio da família Bain, vou ao encontro de outras pessoas. Dos amigos do Shuggie, das mães e dos pais e da senhora que vive do outro lado da estrada estão todos a passar tempos difíceis. Quis mostrar uma comunidade em crise e quis dizer que há muitas pessoas deixadas para trás pelo governo e pelo progresso. E especialmente para as mulheres. Uma mãe de classe baixa nessa altura tinha opções limitadas. Quando vemos as estatísticas do governo, a presença da classe baixa na universidade era de apenas 0,003%. E quando contabilizamos as mulheres aqui, é então uma ínfima parte. As mulheres de classe baixa não iam para a universidade na década de 70 e 80. E a Agnes está um pouco presa na situação em que se encontra. Ela pode trabalhar, pode cuidar de uma família, mas não pode subir na sociedade. 

Na literatura vemos frequentemente os homens a falhar, mas não as mulheres. É a história de homens heterossexuais que não conseguem sustentar as suas famílias. E esta é a história de uma mulher solitária que tem de sustentar os seus filhos e cuidar de si. Este é o lado oculto da história?
Sim, quis que as pessoas compreendessem a adição, não só como alguém que sofreu com ela, mas como pessoa. A Escócia é uma sociedade que consome bastante álcool. E quando os homens bebem, ou têm problemas, fazem-no publicamente. Estão num pub, estão nas ruas, sabe-se na comunidade. Quando as mulheres bebem, têm de o fazer em privado. Na época em que se desenrola a acção, as mulheres não iam aos pubs sozinhas. Muitas vezes, não podiam ir porque era um pub de homens ou tinham de ir acompanhadas por um homem. Mas quando uma mãe falha, quando uma mulher tem problemas de adição, a comunidade é extremamente dura com ela. Há uma personagem masculina do livro que sai da família e tem uma vida excelente, não olha para trás e não sente qualquer remorso. E quis também mostrar o estigma do homem que ama a Agnes e que quase a rejeita por causa da adição, forçando-a a fazer coisas que ela não consegue fazer porque é uma alcoólica. Eu conheci essa solidão. E também sei o quão doloroso foi para a minha mãe quando as pessoas se afastaram e a julgaram. Sentimo-nos isolados, e quando temos dificuldades, é a pior coisa que podemos sentir. Por isso, quis humanizar essa experiência em grande detalhe para que as pessoas percebessem que não é só a Agnes, mas milhares de pessoas em Portugal, em França ou em Detroit. 

Li numa entrevista que alguém lhe tinha perguntado se tinha síndrome pós-traumático, e o Douglas respondeu que uma criança não tem tempo para pensar sobre isso. Demorou 12 anos a escrever este livro, foi a sua terapia?
Para ser exacto, foram 10 anos para escrever, 12 para publicar. Não acho que seja a minha terapia. Estou muito grato pelo que fiz. Os homens de classe baixa, especificamente os homens de classe baixa da costa ocidental da Escócia, nunca falam sobre o que sentem. Não estão talhados para falarem sobre quando se sentem vulneráveis ou com medo. Shuggie Bain, e tudo o que escrevo e crio, é como um canal para eu processar os meus sentimentos. Não faço terapia, mas sou uma pessoa criativa. Um dos motivos pelos quais demorei 10 anos a escrever, é que tive de me tornar mais empático. Quando se é uma criança numa situação como aquela, tendemos a focarmo-nos em nós próprios e a pensar no mal que as pessoas nos fizeram. E quando comecei a escrever, tive de pensar onde é que começava a mágoa. Porque não começou com a pessoa que me fez mal, mas é sim o resultado de centenas de anos de História. Veio de não perguntarmos aos homens se queriam ir para a exploração das minas e de não permitir que eles tivessem medo de estar debaixo da terra o dia todo. Por isso, bebiam e ficavam violentos. Veio de não libertar as mulheres e de não permitir que fossem para as universidades. 

Temos de deixar de pensar sobre o que as outras pessoas nos fizeram e começar a pensar sobre como essas pessoas se sentem e porque é que o fazem. E foi esse momento que foi catártico para mim. Eu podia ter escrito o livro num ano ou dois, mas o que mudou foi a minha compreensão das personagens e das suas motivações. Cresci num sistema socialista, e mesmo incrivelmente pobre e órfão aos 16 anos, cresci num país que me deu acesso à educação. Eu podia fazer tudo desde que me dedicasse. A minha mãe não teve isso. Olhando para trás, como homem, eu tive todas as oportunidades. O governo pagou para eu ir para a universidade, permitiu-me fazer o secundário, mas o que era esperado da minha mãe era sair da escola e começar a trabalhar aos 14 anos. Ela não podia ir para a universidade ou estar fora de casa. Eu tive de olhar para trás e compreender, e foi isso que foi terapêutico para mim.

Especialmente não estar à procura de culpados e não focar num culpado, certo?
Não há personagens boas e personagens más, há alturas boas e alturas más. O que eu soube é que na vida de todos os adictos, e especialmente na vida da minha mãe, há algo terrível que acontece. Houve um mês em 1976 em que se começa a beber demais. E isso continua. Quando fiz a minha pesquisa, perguntei a familiares e a outras pessoas adictas e percebi que, por vezes, as pessoas não sabem quando a adição começou. E isso é especialmente problemático em comunidades em que todas as pessoas bebem em demasia. A linha entre uma boa altura e uma má altura pode ser muito fina, e por vezes só nos apercebemos que a ultrapassámos anos mais tarde. Estamos a ter um bom momento, a vida fica um pouco mais aborrecida, os sonhos não se concretizam, começamos a beber mais, subitamente precisamos de mais um pouco. De repente, passam dois anos e deixamos de ser divertidos. Os nossos amigos deixam de nos falar e já não gostam de beber connosco. Cinco anos depois, temos um grande problema.

Mudou-se para Nova Iorque, para East Village. Teve de sair da Escócia para escrever?
Não sei se tinha de sair, tive de o fazer. É um conceito difícil de explicar. Como perdi os meus pais, tive de ir para um sítio onde as pessoas me aceitassem. E quando estamos na faculdade e alguém nos oferece um emprego, temos de dizer obrigado e ir. Não tinha o sonho de ir para Nova Iorque, mas ofereceram-me um emprego lá. E encontrei-me lá. Nova Iorque faz parte do ADN do livro porque a distância deu-me clarividência. E também me trouxe saudades. Eu sempre adorei Glasgow, mas Glasgow não me adorava. 

Este livro foi rejeitado 32 vezes…
44 vezes. A minha agente não queria desapontar-me e não me disse o número real. 

Como foi lidar com isso?
Foi dificílimo. A rejeição faz parte da vida dos escritores, mas eu nunca mudei uma vírgula, não fiz nada. Às vezes a literatura tem muito cérebro e nem sempre tem coração. Eu achei que havia um coração no livro, por isso acreditei que seria publicado e de facto foi.

O seu segundo livro está quase a sair, certo?
Sim, vai sair em Abril de 2022. Chamar-se-á Young Mungo. Mungo é o patrono de Glasgow. Mas o meu Mungo é um rapaz de 15 anos. Não quis uma história de amor sexual no Shuggie Bain, e quando terminei o Shuggie, senti que queria escrever um livro sobre o primeiro amor. Então o Mungo é um rapaz de 15 anos que cresce nos anos 90, em Glasgow, que é apanhado em alguns crimes menores e para quem existem poucas expectativas. Mas ele, protestante, conhece outro jovem, católico, e juntos desenvolvem uma bela relação. Sempre tive interesse em encontrar masculinidade gentil e sensível em contextos sociais duros. Mas a sociedade espera que os homens sejam duros, pois é um acto de bravura. Os homens andam em matilhas e pode ser bastante difícil ser sensível, mas é algo que exige muita coragem porque é perigoso. 

Há aquele verso da música dos Smiths “it’s easy to laugh, it’s easy to hate, it takes strenght to be gentle and kind”. 
Devia ter pedido ao Morrissey para colocar essa citação no livro. (risos)

Disse recentemente a sociedade está bastante polarizada. A situação não está melhor para mulheres em geral e especialmente de classe baixa e também não está a melhorar para a comunidade LGBTI. 
Acho que a comunidade LGBTI deveria estar ao lado das mulheres na luta do feminismo e pelos direitos das mulheres. A primeira pessoa que me aceitou como gay, que fez sempre questão de me fazer sentir seguro e apoiado, foi uma mulher. E acho que os direitos das mulheres estão a ser ameaçados um pouco por todo o mundo. O estado do Texas retrocedeu na lei do aborto ainda recentemente. As lutas pelos direitos para a comunidade LGBTI e para as mulheres são distintas, mas seriam muito mais fortes se lutássemos lado a lado, na mesma direcção, porque queremos todos o mesmo, que é justiça e segurança. Como homossexual, acho que nos esquecemos do quanto as mulheres fizeram por nós. Mas a polarização que eu falava também é a pobreza e como as comunidades se sentem esquecidas. Alguns jornalistas dizem-me que as coisas estão melhores, mas a verdade é que não. Muitas cidades tiveram operações de rejuvenescimento, e Glasgow é uma cidade bastante mudada, mas ainda há muitas crianças na pobreza. E as pessoas de classe média e alta estão bastante mais ricas do que a classe média e alta de quando eu era pobre. Na minha altura havia muita solidariedade na comunidade, nós éramos incrivelmente pobres, mas eu tinha conforto. Actualmente, as crianças estão no mesmo nível de pobreza, mas conhecem a realidade de outras pessoas através das redes sociais, e isso deve ser terrível para a saúde mental. É possível que se sintam bastante mais isoladas. Eu era pobre, todos à minha volta eram pobres, e eu não via a vida dos mais ricos. Se o Shuggie tivesse acesso à Internet e visse, por exemplo, as Kardashians e todas as pessoas a terem excelentes vidas, ficaria devastado. Porque é como olhar pela janela para ver o que não se tem. 

Mas eu acho que não vemos muitas pessoas pobres hoje, não por não existirem, mas porque estamos muito mais focados em nós próprios. Na acção do livro, estávamos ainda na altura de sindicalização, o sistema de saúde não estava a ser atacado, as pensões não estavam a ser atacadas. Vemos que a Agnes e o Shuggie ficam para trás, mas no final são apoiados, não acabam nas ruas. E eu acho que hoje é diferente e isso preocupa-me. Este não é um livro político, achei que era um livro de uma história de amor. Mas quando foi publicado no Reino Unido, tornou-se um livro bastante político. No Reino Unido, as Nações Unidas tiveram de intervir para alimentar algumas das crianças do país. O quinto país mais rico do mundo! E também deixou de dar alimentos a crianças pobres durante a pandemia. Foi o Marcus Rashford que teve de fazer uma campanha para que o governo desse alimentos às crianças carenciadas durante a pandemia. No livro, vemos que a única refeição que o Shuggie Bain tem é na escola, e agora o governo acha que não tem de fazer isso e não dá refeições às crianças.

Acontece cá em Portugal. E nós não vemos isso.
Estas comunidades estão a desfazer-se e, nesse sentido, estamos mais sós. Para as pessoas mais carenciadas, é muito mais fácil sentirem que estão a ser deixadas para trás, porque não têm acesso às coisas que vêem no ecrã todos os dias. Essa é a polarização. As redes sociais não gostam de pessoas carenciadas, são anti-pobres. Mas não quer dizer que a pobreza tenha deixado de existir.

Falamos sobre a saúde mental. Há uma taxa elevada de suicídio entre os homens, mesmo entre heterossexuais, que têm de provar que não têm fraquezas. Na sua perspectiva, qual seria o conselho a dar?
Acho que não é apenas para os homens, mas para todos nós. Temos de normalizar a expressão dos nossos sentimentos. Exprimir quando nos sentimos tristes ou assustados, quando não temos a certeza. Temos de permitir que os homens e as mulheres se expressem, e dar-lhes espaço para isso.

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