Entrevista. João Ferro Rodrigues: “É infantil a ideia de que a meritocracia e o mérito são a solução para todos os males sociais”

por Adriana Cardoso,    3 Fevereiro, 2023
Entrevista. João Ferro Rodrigues: “É infantil a ideia de que a meritocracia e o mérito são a solução para todos os males sociais”
João Ferro Rodrigues / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Numa tarde soalheira de janeiro, João Ferro Rodrigues recebe-nos no seu escritório no centro de Lisboa. “Lisboeta”, como é preconizado nas suas biografias das redes sociais, identifica os diferentes pontos turísticos do horizonte ribeirinho. Conta-nos como surgiu a sua ideia de escrever o livro, e que engloba uma panóplia de leituras afincadas que realizou ao longo do tempo. Escrever um novo livro? “Teria de ler durante mais dez ou quinze anos para voltar a ter inspiração”. Foquemo-nos então na “Era do Nós” (ed. Objectiva), uma ode ao valor de comunidade.

No livro cita Dawkins, que escreveu o livro “O Gene Egoísta”. A tese do autor é que os nossos genes, a unidade básica que nos define, são egoístas. Isto não valida que geneticamente estamos programados para sermos individualistas?

Não, penso que não. Dawkins depois refutou essa interpretação excessiva do seu livro e da sua tese. Acho que a história da humanidade demonstra o contrário, ou seja, que uma das vantagens evolutivas que temos enquanto espécie é a capacidade de associação, e não o egoísmo. Aliás, a biologia avançou para um paradigma hoje em dia que reconhece que existiam espécies mais inteligentes que competiam connosco, e até outras mais fortes, e mais ágeis, e nenhuma delas acabou por triunfar numa ótica global do nosso planeta e da exploração do seu ecossistema como a nossa. O que permitiu isso foi a nossa capacidade de trabalhar em conjunto, portanto penso que Dawkins não ficaria chocado com o que eu escrevi.

“O modelo meritocrático é a ideia de que cada um de nós chega até onde as nossas capacidades o permitem. Vem muito associado à ideia de esforço. E portanto, como se a origem e o ponto de partida de cada um de nós não fosse muito relevante. Penso que é muito fácil para cada um de nós compreender que os nossos pontos de partida foram muitíssimo relevantes para o que somos, independentemente do esforço.”

João Ferro Rodrigues, economista

Uma das discussões filosóficas e morais mais interessantes da atualidade é acerca da forma como nos organizamos como sociedade. O que é o modelo meritocrático atualmente, e em que consiste no nosso dia-a-dia?

O modelo meritocrático é a ideia de que cada um de nós chega até onde as nossas capacidades o permitem. Vem muito associado à ideia de esforço. E portanto, como se a origem e o ponto de partida de cada um de nós não fosse muito relevante. Penso que é muito fácil para cada um de nós compreender que os nossos pontos de partida foram muitíssimo relevantes para o que somos, independentemente do esforço. Acredito piamente que o esforço faz a diferença, mas também não sou cego, e reconheço o privilégio que tive por ter nascido onde nasci, e ser filho de quem sou. Acho que no fundo é infantil a ideia de que a meritocracia e o mérito são a solução para todos os males sociais. 

Em primeiro lugar porque é utópico acreditar que é possível implementar um sistema desses, por causa exatamente dos pontos de partida diferentes, em segundo lugar, e aí socorro-me de Michael Sandel, que também menciono no livro, não sei se esse resultado final seria uma utopia ou uma distopia. Mesmo que conseguíssemos implantar essa utopia, estaríamos a catalogar as pessoas de forma ainda mais brutal do que o fazemos hoje. Hoje, a bem ou mal, as pessoas que são pobres percebem que há azares, e que há pontos de partida que também toldaram o seu caminho. Se estivéssemos num caminho de meritocracia pura e dura, estaríamos a catalogar essas pessoas como incapazes, e que sociedade seria essa que criaríamos? Essa meritocracia levaria alguém para um lugar melhor? Com pessoas a serem colocadas de parte e humilhadas porque em sociedade lhes diríamos que não foram capazes? Não tenho a certeza disso.

João Ferro Rodrigues / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Mas em certo aspeto nós já não temos esta visão meritocrática aplicada em muitas componentes da nossa sociedade? Por exemplo, o caso dos cuidadores informais. Se medirmos o valor destas pessoas de uma forma meramente económica, provavelmente terão muito pouco. Mas o valor social e o capital social daquele trabalho, que a meritocracia não reconhece como de valor acrescentado, é enorme.

Acho que tens toda a razão. Acho que o tema aí é a definição de mérito. Se eu achar que o mérito está ligado ao ideal Aristotélico de participação no bem comum, de florescimento através do contributo para o outro, vamos perceber que o valor social de um limpador de lixo ou de um cuidador informal é enorme. O problema é que nós associamos o mérito à medição de riqueza. E portanto, nessa ótica, um trader, um gestor de fundo de investimento, é visto como uma pessoa com muito mais mérito que um cuidador informal, e pode ser até que o seu contributo para a sua comunidade seja muito menor.

Parte destes problemas resolver-se-iam se o conceito de mérito fosse o correto, e não uma definição quantitativa, associada a património e riqueza, e geração de PIB. Acho que esse exemplo dos cuidadores informais é muito adequado para explicar isso mesmo.

Não seria desejável que de facto nos regêssemos por uma visão meritocrática? Ou seja, que quem tivesse mais mérito fosse capaz de ascender socialmente de forma mais bem-sucedida, e fosse premiado por isso?

É aí que eu não tenho a certeza absoluta, e não vou dar uma resposta taxativa. Percebo o ponto, mas vou-te contar uma história de dois pais, com dois filhos, e que os criam da mesma maneira, mas o ponto de partida é muito diferente. Desde o nascimento há uma criança que teve muito mais facilidade em tudo. E repara que a outra criança ao longo da vida até se pode esforçar mais, mas nunca chegará ao mesmo patamar do que a primeira, seja em estatuto social seja em riqueza criada, porque o ponto de partida era diferente. Pode ser cognitivo, social, ou de outra forma. Neste exemplo, o que é que é o mérito? Lá está, eu acho que nestas análises o conceito do mérito baseia-se nesse agente económico, que é uma espécie de folha branca. Uma entidade racional, que não põe em causa que a natureza humana é muito complexa, e só mesmo quando estamos a analisar numa ótica robotizada é que o mérito passa a ser um agente chave para uma organização social.

[O autor lembra-se de um exemplo que vivenciou e que pessoaliza a sua opinião sobre a meritocracia] Há uns anos existiram uns cartazes do IEFP, com uma apresentadora, que colocavam essa pessoa no supermercado e diziam: se ela não tivesse estudado, era aqui que teria ficado. Fiquei horrorizado com aquilo. A ideia era boa, mas lançava um estigma enorme sobre aquelas profissões, de pessoas que tiveram o seu caminho, que tiveram as suas dificuldades. Acaba por se materializar naquela ideia de levar a meritocracia a um patamar que envergonha as pessoas. Quem possa ter visto esse cartaz e que de facto trabalhe num supermercado, ou que realize qualquer outra dessas profissões, pode dizer que “Bom, talvez essa apresentadora tenha nascido num berço diferente do meu. Tive de deixar os estudos e ir trabalhar para ajudar os meus pais a pagar as contas.

Esta ideia do mérito é muito perigosa, porque desumaniza, não tem em conta a história e trajetória das pessoas, como se existisse uma receita mágica. E depois cria injustiças. E é também verdade que quem advoga muito esta questão do mérito tem uma correlação muito direta com pontos de partida muito favorecidos. É raro ouvir uma pessoa muito pobre com esse discurso, porque percebe que com condições mais favoráveis é fácil de ultrapassar constrangimentos do seu ponto de partida. E às vezes falta essa consciência de privilégio. 

Eu não quero ser a pessoa que é conotada como quem acha que o esforço e o mérito são horríveis, porque não acho. Acho que obviamente uma pessoa se deve esforçar, e deve ser premiada pelo seu esforço, não vejo é que uma sociedade seja mais feliz se esse for o valor chave da sua organização. Se encaixarmos no conceito de mérito a entrega, a devolução à comunidade, o bem comum, e a preocupação com os outros, talvez já valha a pena orientar uma sociedade à volta disso, mas não é disso que estamos aqui a falar, que é o conceito muito individualista do mérito, e esse é que é o problema.

“Se eu achar que o mérito está ligado ao ideal Aristotélico de participação no bem comum, de florescimento através do contributo para o outro, vamos perceber que o valor social de um limpador de lixo ou de um cuidador informal é enorme. O problema é que nós associamos o mérito à medição de riqueza. E portanto, nessa ótica, um trader, um gestor de fundo de investimento, é visto como uma pessoa com muito mais mérito que um cuidador informal, e pode ser até que o seu contributo para a sua comunidade seja muito menor.”

João Ferro Rodrigues, economista

A crítica a uma sociedade demasiadamente meritocrática é quase sempre anti-capitalista. O João foca-se muito no livro na defesa de um capitalismo bem regulado, com forte intervenção dos atores do Estado. Será realista ou utópico achar que o combate às desigualdades não implica ter uma visão anti-capitalista?

Penso que é realista. Tenho o cuidado de fazer a definição do capitalismo no livro, que é uma definição muito aberta. O problema é que nós afunilámos a conceção do capitalismo para algo que é a primazia dos mercados. E essa definição é um dos outputs que o capitalismo pode ter, mas pode ter muitos outros. Se nós estreitarmos a visão para considerar que o capitalismo é a lógica do neoliberalismo de que qualquer resultado que o mercado produza é aquele que a sociedade deve adotar, eu concordo que seria uma utopia considerar que este capitalismo nos poderia salvar de alguma coisa. 

Agora, se aceitarmos que há vários modelos de capitalismo possível e que há países que se calhar tiveram mais sucesso a implementar modelos capitalistas em que há um papel mais forte de intervenção do Estado na redistribuição, na regulação, para assegurar que não há abusos da parte dos atores económicos, obviamente que os resultados finais desse modelo vão ser completamente diferentes. E eu penso que não é preciso deitar o bebé fora com a água do banho, porque neste caso o bebé apesar de tudo só na China tirou 800 milhões de pessoas da pobreza. Talvez no futuro possam existir modelos de organização que possam ser superiores ao capitalismo numa democracia. Mas neste momento não conhecemos mais nenhum. É este que nós temos e que tem dado provas. Se tem problemas? Tem. Mas isso não significa que devamos matá-lo sem que haja uma alternativa clara, e melhor. Nenhuma das alternativas conhecidas até agora é melhor. 

João Ferro Rodrigues / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Neste momento, em particular a geração jovem, vive uma vida precária em todos os sentidos. Ainda nem há dez anos tivemos a Geração à Rasca. Como é que mesmo assim não é possível um consenso sobre a obrigação social do Estado?

Acho que a diversidade de opiniões é saudável, se há coisa que é boa é que uma geração não seja um bloco e tenha pontos de vista distintos. Agora, apesar disso, sou ligeiramente mais otimista do que tu. Se tivesses estudado nos anos 90 como eu, verias que a economia era muito resumida ao fundamentalismo do mercado, e na ideia de que tudo deve ser desregulado. Já não estamos nesse paradigma. 

Acho que já não há tabus, e quem defende mais intervenção do Estado em áreas como a habitação já não é visto como um comunista ou um extremista. A sensação que eu tenho é que o expoente máximo do individualismo não é nesta geração, é talvez na minha. Acho que esta geração já tem um compromisso sobre questões sociais que a minha geração não tinha.

O libertarianismo económico como o descreve, à direita, foi durante anos, e em certos aspetos ainda hoje, a teoria económica vigente. Com autores liberais sociais e democratas cristãos, porque é que acha que esta visão de autores como Mises, Friedman e Hayek predominam na esfera política portuguesa?

Penso que predominaram por efeito de contágio global. Friedman nesse aspeto é um bocado como Marx. Não tem culpa das barbaridades que fizeram em nome dele. Havia uma espécie de enfatuação da economia com a matemática e com a física, e não tanto com as ciências humanas, e isso fez com que se chegasse àqueles teoremas e axiomas muito definitivos sobre o que a economia devia ser, o homem racional, e os mercados. Esse fenómeno apaixonou literalmente uma geração, e teve consequências quando o Reagan e a Thatcher chegaram ao poder. 

Contudo, aqui em Portugal chegou mais tarde. Acho engraçado, porque quando a economia já tinha passado esse paradigma, e em muitos países se estava a fazer uma transição de modelos, cá, na crise de 2008-2011, ainda estava muito enraizado. Mas mais uma vez sou otimista. Normalmente o caminho é da academia para a política, e da política para a cultura. Sinceramente penso que esse caminho está a ser feito, falta-nos é a parte da cultura. Ainda temos muitas expressões enraizadas, e tomamos decisões com base em paradigmas que já expiraram. Acredito que até a nossa direita transite para fora dessas verdades absolutas que a academia hoje já desconsidera. 

João Ferro Rodrigues / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Como o João referiu no livro, Portugal tem níveis de desigualdade económica acima da média da OCDE. Apresenta várias propostas de como tornar a nossa economia uma economia para todos. Que principal medida destacaria?

Destacaria a questão de reorganização do território e da habitação. A ideia de que nós devemos assegurar diversidade em cada bairro e não criar a guetização da pobreza. Há várias políticas que sem dogmas podem ser avançadas nesse sentido. Seja a criação de habitação pública, mas também quotas de habitação acessível em novos empreendimentos, algo frequente em muitos países europeus, mas que cá é tabu. As autarquias, e as Câmaras Municipais especialmente, podem decidir que querem habitação de custo controlado em cada novo empreendimento. Cada vez mais temos de assegurar que as pessoas deixem de viver em bolhas e percebam a realidade social da sua comunidade. 

Um bairro diverso vai gerar escolas com mais qualidade, porque a camada social mais elevada tem esse incentivo. E as crianças das camadas mais pobres que vivam nesse bairro vão beneficiar dessa melhoria. 

Uma das suas propostas prende-se com o nosso tecido empresarial, nomeadamente PME’s descapitalizadas que perfazem quase a totalidade do mesmo. Alguns poderiam dizer até que é ligeiramente radical. Pode explicar em que consiste?

A proposta que faço sobre as PME’s tem de ser enquadrada no contexto do livro. Quis pegar neste ângulo: o que é que podemos fazer também ao nível das PME’s que possa aumentar a confiança no próximo, e aumentar o capital social do nosso país, com retorno económico. 

Em Portugal temos um paradigma, que o Ricardo Araújo Pereira até brincava muito com isso, do micro-mini-pequeno, ou seja, que tudo o que é pequenino é que deve ser valorizado, e que devemos dar majorações de financiamento às empresas mais pequenas. Mas isso tem um reverso, em que criamos um incentivo perverso. 

Como empresários portugueses preferimos ter bolos pequeninos em vez de fatias de um bolo maior, e acho que boas medidas são as que dão os incentivos certos à associação, porque só com essa escala conseguiremos crescer. 

“A Era do Nós” (ed. Objectiva), de João Ferro Rodrigues

Uma das suas propostas que mais me surpreendeu foi a defesa de um Serviço Nacional Obrigatório. Em que consiste esta ideia, tem alguma componente militar agregada, e qual seria o seu benefício para os jovens portugueses?

A minha proposta é que no final do ensino secundário cada jovem participasse durante 3 meses em algo que fosse promotor do bem comum do seu país, que podia estar dividido em três vertentes: defesa nacional, para quem quisesse seguir o serviço militar; administração interna do território, como a proteção civil e a prevenção e combate aos incêndios; e uma terceira opção de carácter social, relacionado com a pobreza ou o combate à solidão. Isto seria um sorteio, em que os jovens poderiam escolher que área de intervenção é mais adequada, mas não selecionariam mais nada. De seguida seriam assignados a zonas do território onde estes programas ocorreriam. 

Penso que seria excelente porque temos uma necessidade enorme dos jovens, nomeadamente os mais favorecidos, de entender a sua comunidade. E de igual forma, permitir que jovens de contextos desfavorecidos criem redes e amizades e contactos para a vida com as classes mais altas. Tenho mesmo a convicção de que seria uma excelente forma dos jovens verem que o mérito, e esta panóplia de conceitos, como liderança, inteligência, podem ser encontradas em qualquer sítio, se lhe for dada a oportunidade.

Se não tivéssemos verdadeiras bolhas territoriais, talvez não fosse preciso. Isto é uma medida de emergência social. Talvez um dia que não formos um território com tantas assimetrias isto deixasse de ser necessário. Mas neste momento é.

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