Entrevista. Manel Cruz: “Isto não pode ser um negócio de ou somos crianças ou somos adultos”
Manel Cruz é há já algum tempo um nome sonante na música portuguesa. Começando pelos Ornatos Violeta, dos quais matámos e vamos matando as saudades por estas semanas, passando pelos Pluto, Supernada, Foge Foge Bandido, Manel Cruz apresenta-se agora em nome próprio sem nunca esquecer o passado. Desta vez, não falámos sobre nenhuma das bandas pelas quais passa ou passou, mas sim da banda-sonora de “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, realizado por Tiago Guedes a partir da peça de teatro homónima de Tiago Rodrigues, que Manel Cruz criou.
Foi no projecto Foge Foge Bandido que Tiago Guedes pensou para a banda sonora do filme “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” por haver, nas palavras de Manel Cruz, “uma ligação emocional, dentro do que são os códigos artísticos, e há de facto uma codificação entre o Bandido e este filme.” Embora, à primeira vista, pareça que a banda sonora é maioritariamente composta por músicas que constam no único álbum de Foge Foge Bandido, Manel Cruz tentou, mantendo-o como premissa, “construir um universo que tivesse alguma ligação a esse universo, no sentido de ter uma banda sonora dedicada ao filme. Há uma melodia que percorre o filme em diversas músicas, e a música do filme foi predominantemente feita para ali. Houve esse compromisso de reduzir a presença do Bandido aqueles momentos em que já não era banda sonora. Por exemplo, o “Quando eu morrer”, que é uma música que eu acho que teve logo muito directamente a ver com o assunto, e que eu acho que teve a ver com este paradigma entre a morte e a beleza da vida, de quem fica e da memória, era já feita para o filme. Então essa ficou, assim como mais uma ou outra em determinados momentos. Mas a ideia era que tudo o que não fosse canções, mas em espaços, fossem músicas feitas para dar uma determinada emoção num determinado momento.”
A ligação de músicas a um filme, ou a um qualquer outro elemento visual, foi algo que Manel Cruz sempre abordou com alguma renitência “precisamente por saber que as músicas se transformam quando estão ligadas a essas coisas. Mas passado este tempo todo e sendo o objecto que é, não tive receio nenhum de envolver as músicas no filme porque acho que se criou um outro objecto, em que nenhum anula ou outro, e para mim é uma honra.” A honra de participar num filme é a mesma que sente em trabalhar com Tiago Guedes, de quem é amigo, e com António Porém Pires, director de som, que não conhecia pessoalmente mas que “foi essencial porque já estava a trabalhar fora da sua obrigação, porque as coisas estavam acabadas e já estávamos no último sprint, porque as coisas no cinema têm sempre um tempo muito limitado, e ter uma pessoa ali ao lado, como Tiago e o Tó Porém Pires, foi incrível. Foi incrível trabalhar com ele no sentido de ter alguém que te puxe para a frente, para as coisas ficarem bem e não no sentido de “isto tem de ficar pronto”. O trabalho com os dois, com o Tiago e com o Tó foi fantástico, acho que foi o que fez a diferença.”
Em relação ao filme propriamente dito, Manel Cruz adora a “forma como o Tiago [Guedes] pegou na coisa. Embora se fale numa fantasia e numa metáfora em muitos aspectos, a abordagem cinematográfica foi muito mais quotidiana e realista”, passando por um espectro alargadíssimo da condição humana, seja a ilusão da infância, a entrada na adolescência, os dramas de um adulto, a amargura de um velho. Para um artista, seja ele qual for, também é possível olharmos para a sua obra e vermos estas etapas de vida, o que para o músico “é uma questão engraçada, porque às vezes acontece-me ouvir coisas nas minhas letras que, passados anos, contam-me coisas que na altura eu já sabia, mas ainda não tinha passado. Ou seja, há um aspecto da vida e da nossa aprendizagem que passa pela observação dos outros, e a vida é isso e desde cedo observamos e amealhamos, mas é um bocado aquelas coisas para embrulhar para comer mais tarde. Com o passar do tempo, as coisas fazem um match quando efectivamente passamos pelas coisas e entendemos também de uma forma sensorial aquilo que já sabíamos.”
A infância e a passagem para outra fase de vida que existe neste filme pode ser algo difícil de explicar a crianças que passam por essa mesma fase. Os filhos de Manel Cruz viram o filme inacabado, viram partes do filme, mas se tivesse de lhes explicar o filme, este acha que “não explicaria, acho que o filme é para grandes, dá para ser visto pelos grandes e com essa perspectiva da bagagem que um adulto traz para as coisas. Dá-lhe essa perspectiva ingénua, do regresso à infância em certas coisas, assim como também dá para cair bem numa criança, que ainda está a ver aquilo ainda numa perspectiva muito fantasista, mas com uma perspectiva sobre o que é a vida de uma forma nada condescendente. O que eu gostei muito no guião do Tiago Rodrigues é que ele não é nada condescendente, que é uma coisa que me aflige muito na questão da educação das crianças. Essa condescendência que muitas vezes temos, ou de acharmos que eles não percebem muitas coisas. Eles percebem, só que ainda não as viveram. E mostrá-lo é fazer com que eles vivam, não esconder essa parte e não temer pela perda da inocência, porque ela tem de se perder. Então que seja por uma maneira mais doce possível, e este filme é também uma possibilidade de eles perderem essa inocência de uma forma bonita.”
Já para adultos, certos momentos chegam a ser mais duros, “bem mais duro para os adultos”. Se este filme poderá ser essencial, ou pelo menos parcialmente importante para que não cheguemos a velhos e digamos “se puderes não cresças” a uma criança, como acontece numa das cenas do filme, Manel Cruz acha simplesmente que “é uma frase que faz todo o sentido enquanto desabafo. Mas acho que também é preciso uma pessoa não achar que crescer é mau. Porque é um equívoco achar que o crescer nos retira a parcela infantil que nós temos. Acho é que temos de proteger esse lado infantil, que vai estar lá de uma maneira ou de outra, pode estar como um miúdo birrento ou como um miúdo que conquista o seu espacinho de liberdade para de vez em quando ir à infância, mas essa infantilidade não desaparece. Quando está apagada, nós somos infelizes. A questão não é o não crescer, a questão é o crescermos crianças. Quando vemos o Miguel Guilherme dizer essa frase “se puderes não cresças”, é dito por alguém que está amargurado e aí ganhamos aquela ideia de que crescer é uma merda. Mas pode não ser. Passamos a vida a criar mecanismos de sobrevivência para nos defendermos das agruras, que não abdicaríamos em nada, acho eu, das conquistas que fizemos em termos de defesa pessoal. Isto não pode ser um negócio de ou somos crianças ou somos adultos, temos de construir um espaço de vida em que conseguimos ser as duas coisas. A amargura reflecte-se quando perdemos a ingenuidade, que depois se reconquista. Passamos a vida a tentar ser adultos, para nos darem crédito, para nos afirmarmos, para sermos reconhecidos ou para confiarem em nós, até porque queremos funcionar em sociedade, e a dada altura passamos a vida a tentar conquistar aquilo que nos ligou à vida, que é a paixão, ou as coisas mais infantis. Não podemos sobreviver só com uma das partes.”
“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” estreia dia 21 de Novembro em todo o país.
Banda-sonora, composta por Manel Cruz:
Trabalho Escolar Manel Cruz
Este é o Meu Corpo Manel Cruz
Foi no Teu Amor Manel Cruz
Ainda Pode Descer Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Quando Eu Morrer (Instrumental) Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Uma Aventura Manel Cruz
Canteiro Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Sempre-a-pensar Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Fechado para Obras Christophe Roussel/Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Intérpretes: Christophe Roussel, Catherine Beilin, Manel Cruz
O Mergulho de Regresso Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Falso Geral Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Vida Adicta Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Conversa com o Ministro Manel Cruz
Quando Eu Morrer Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Canção da Canção da Lua Manel Cruz/Foge Foge Bandido
Intérpretes: Manel Cruz, Marcos Cruz, Marta Cruz