Entrevista. Marcelo D2: “Não existe futuro se a gente não olhar para o passado”
Marcelo D2 é um dos nomes mais relevantes do hip hop do Brasil, pela forma como conseguiu cruzar os universos do rap, do samba, do rock e do funk em músicas que honram a sua herança carioca e que perduram até hoje. Se antes a base de grande parte das canções era o hip hop, hoje em dia é o samba o cerne da nova obra de Marcelo, à qual tem chamado de “novo samba tradicional”. É isso que ouvimos no seu mais recente disco, Iboru, que foi lançado há pouco mais de um ano e que o artista virá apresentar numa série de concertos na Europa. Em Portugal, actuará em Amarante no dia 19 de Julho, no âmbito no MIMO Festival; no dia 20 de julho no Festival do Maio, no Seixal e, por último, no Palácio Baldaya em Lisboa, no dia 21 de julho.
Apanhamos o artista numa manhã soalheira no Rio de Janeiro, com vista para a emblemática praia de Copacabana, para uma conversa descontraída sobre aquele que é um dos momentos mais prolíficos da sua carreira. Nesse mesmo dia, Marcelo D2 daria o seu último show a solo no Brasil antes de dar início à digressão europeia. Até atravessar o Atlântico, ainda gravará um disco ao vivo para celebrar os 30 anos de Planet Hemp, o grupo de rap rock que trouxe Marcelo para a ribalta e que regressou às edições em 2022, com Jardineiros. Para além disso, criou a série “Amar é Para os Fortes”, lançada na Amazon Prime no final do ano passado, e continua a ser uma das personalidades mais interventivas do Brasil.
Sobre o teu último álbum, o Iboru, o que foi que te levou de volta a esse lugar no Norte do Rio [de Janeiro], nesta altura da tua vida?
Há muitos anos que venho fazendo essa conexão entre rap e a música brasileira — música consequentemente carioca, consequentemente da zona Norte do Rio de Janeiro, do subúrbio do Rio. A ideia de fazer esse disco vem nessa minha procura e vontade de fazer um samba que seja próprio, sabe? Um samba meu. Cresci ouvindo o samba do Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e toda aquela galera ali do Cacique de Ramos. A partir disso, comecei a ter a consciência de que precisava fazer um samba que fosse meu. Esses 30 anos que eu tenho de cultura hip hop, eles me deram essa autoridade e abriram essas portas para que eu chegasse nesse lugar. Há alguns anos, percebi que a música pop do mundo inteiro estava se apropriando muito do grave que a cultura hip hop propôs lá no final dos anos 70, com o Afrika Bambaataa. Eu vi que poderia ser um caminho e esse grave acabou abrindo portas para outras coisas. Fazer samba com colagem… Eu entendi que posso fazer samba exatamente como eu faço rap. E aí acaba aparecendo um samba super contemporâneo. A vontade de voltar aos meus lugares de origem é muito de um conceito, a metáfora do arco e flecha, sabe? Quanto mais lá atrás eu puxar, mais para frente essa flecha vai alcançar. Esse trabalho tem muito a ver com isso.
“A vontade de voltar aos meus lugares de origem é muito de um conceito, a metáfora do arco e flecha, sabe? Quanto mais lá atrás eu puxar, mais para frente essa flecha vai alcançar.”
E especificamente sobre o samba, porque achas que ele é tão representativo do Brasil e dos brasileiros?
O samba tem a ver com essa coisa da diáspora negra, dos negros que foram trazidos para cá. Esses tambores… Não é só uma música, eles contam a história do nosso povo. Eles contam essa travessia. A religião, a fé, a sobrevivência, a resistência… Tem uma história muito bonita nesse samba, que é a história do nosso povo, e que eu vejo muito similar à cultura hip hop, com os Estados Unidos. É essa autoafirmação, a coisa de levantar a autoestima. Eu sei que vocês aí na Europa veem o samba muito como uma música de festa. Mas o samba não é só isso. Tem uma coisa que o professor Luiz Antônio Simas fala: “Essa festa é a luta pelo direito de poder festejar. É a luta pelo direito de poder também viver a vida alegremente.” Então o samba tem muito de resistência, o samba fala de amor, o samba fala de tudo isso. Acho que tem muito a ver com essa luta pelo direito de a gente poder fazer festa também.
O samba parece-te, neste momento, mais revolucionário do que o rap ou o rock?
Acho que aí é quem faz, né, cara? Depende muito de quem está fazendo rap, de quem está fazendo samba e de quem está fazendo rock. Eu acho que enquanto plataforma para me expressar como artista, o rock já teve sua função, o rap também — e continua tendo, nesse caso do rap. Mas acho que o samba talvez me ajude a contar essa história que eu quero contar melhor. Acho que tem essa coisa do entendimento do povo enquanto samba. O batuque dos tambores do samba, das percussões do samba, remete a esse lugar da casa e da família, e é para esse lugar que quero levar essa juventude: um lugar de conforto, de resistência, de sabedoria.
Falaste da metáfora do arco e flecha, que é muito interessante. Queria entender de que forma é que achas que o passado pode guiar o nosso futuro como sociedade?
Acho que não existe futuro se a gente não olhar para o passado. O futuro é ancestral, como dizem tantos aqui no Brasil — [Ailton] Krenak, Luiz Antônio Simas… As pessoas confundem muito ancestralidade com antigo. Antigo é antigo, antigo ficou lá atrás. Ancestral é o que está aqui, é o que nos trouxe aqui. É o cabelo, a cor de pele e os trejeitos que você trouxe da sua família, que às vezes você não sabe nem muito bem de onde vêm. A comida que você gosta de comer… Tudo isso é ancestral. Então, acho que não existe construir o futuro se a gente não olhar para o ancestral.
E olhando para o futuro, continuas a desenvolver-te e a evoluir com o teu filho [referência à música “Loadeando”]? Ou filhos, no caso.
Demais, cara! Eles são uma fonte de inspiração e aprendizado para mim. Cada vez que eles crescem, eu cresço junto. Tem a música do João Nogueira [“Espelho”], um sambista brasileiro, que fala isso muito bem, que eu até usei nessa música aí. Que nós somos espelhos e reflexos. Acho que o que meus filhos são é muito reflexo do que eu vivo, do que os pais vivem. Então essa conexão para mim é muito importante.
Como alguém que sempre lutou pelas causas, o que é que achas da forma como estas novas gerações fazem a luta?
A gente está passando por uma transformação talvez maior do que a revolução industrial. Essa revolução digital. Acho que o ser humano ainda não aprendeu a conviver com isso. A gente está-se isolando demais, tem muita informação e não sabe o que faz com ela, às vezes se atrapalha com ela… A gente está passando por essa transformação que é meio louca e essa geração acho que é um reflexo disso também. A gente está passando por um momento muito de individualização da sociedade. Tudo isso faz parte dessa busca do ser humano, de querer crescer. Talvez a gente esteja se enrolando, acho que a gente só vai ver isso lá no futuro. Mas é importante pra caramba o que a gente tem na mão, sabe? Essa coisa que a gente está fazendo aqui, se falando, você de Portugal e eu do Rio de Janeiro. Isso é sensacional, sabe?
Tem um pensamento que eu gosto muito, quando se fala de drogas, que eu acho que remete pra quase tudo na vida: o problema não são as drogas, o problema é o ser humano que usa drogas. Esse sistema que a gente vive, ele absorveu o rock’n’roll, que era uma rebeldia, e transformou isso num comercial de refrigerante. Absorveu o punk rock, que era total antissistema. E você viu lá o cara de moicano vendendo um refrigerante. E a gente está vendo acontecer isso com o rap, sabe? Acho que esse sistema se adapta muito bem ao que é contra ele, a fazer aquilo virar a favor dele e vender refrigerante. Bom, refrigerante é só uma metáfora, né?
Acho que talvez a nossa grande batalha no futuro próximo vai ser o ser humano contra as máquinas. A inteligência artificial tentando manipular o ser humano. A gente tem recursos suficientes no mundo para alimentar todo o mundo, para que todo o mundo sobreviva. Mas acho que a gente não tem recursos suficientes para alimentar a ganância do ser humano. Essa ideia de que a felicidade está em carros, em jóias, isso me assusta um pouco. Esse “american dream”, o sonho americano se espalhou pelo mundo. E talvez funcionasse para eles! Mas a gente tem vidas tão diferentes entre Rio de Janeiro e Lisboa, por exemplo. O que te deixa feliz em Lisboa, talvez não te deixe feliz aqui no Rio de Janeiro. Essa globalização até do sonho é muito louca. Essa geração tem um desafio maior talvez do que as nossas.
E a nível pessoal, à medida que o tempo passa sentes menos energia para continuar a militar e a lutar pelas coisas?
Não, porque eu acho que respirar, viver, para mim é isso, sabe? Eu faço arte de combate, arte de resistência. Para mim, viver é fazer arte. Enquanto eu estiver respirando, sempre vai ter uma fagulhazinha lá. Eu acho que quanto mais o tempo passa, mais armado eu estou para isso.
Isso significa que vais continuar a fazer música o resto da tua vida?
Provavelmente. Já pensei em parar de fazer música, sabe? Ali em 2014 ou 2015, estava meio cansado e falava: “ah, cara, acho que vou fazer outra coisa”. Tenho um papel significativo no cenário musical, mas acho que só isso também não me define. Quero poder fazer outras coisas. Agora, com o audiovisual, fazendo filme, essas coisas têm me alimentado também. Fiz o filme do Iboru, “Amar é Para os Fortes”, a série na Amazon Prime… Essas coisas têm me alimentado no sentido de ser criativo.
Sentes que é necessário colmatar a música com essa parte visual?
Acho que hoje em dia se vê muito a música. Antigamente, era só câmara de cinema, era muito difícil. Hoje em dia, com um celular com 4K você faz conteúdos maravilhosos. Essa possibilidade que a gente tem nas mãos é importante pra caramba.
Nos últimos anos, tens lançado muitos projetos novos e feito muita coisa. O que é que te motiva a manteres-te tão ativo?
Nesses últimos anos, estou realmente apaixonado. Não sei se viu minha mulher [Luiza Machado] passando aqui atrás [risos]. Encontrei nela uma parceria muito grande. A gente tem uma produtora juntos, a Pupila Dilatada, produz filmes, discos e conteúdos… Fiz esses últimos discos meio que para impressionar ela. Aquela coisa do moleque, que quer fazer banda para impressionar as meninas. Esse amor que eu estou vivendo, ele alimenta muito o meu processo criativo.
A gente passou também momentos difíceis no Brasil, porque além de toda a pandemia, a gente teve a ascensão da extrema-direita que negou educação, ciência e cultura. Para a gente que acredita na ciência, na cultura, na educação, foram momentos medonhos. Esse jeito sujo que a extrema-direita usa de fake news, de ataque pessoal, à honra… Isso foi muito cansativo e, de uma certa maneira, por mais doloroso que seja, isso te deixa com vontade de criar, de combater esse tipo de coisa.
Eu estou bem exausto, dá para ver na minha voz, né? [risos] Fazendo turnê com Iboru, turnê com Planet Hemp, filme… Tenho um centro cultural aqui no centro do Rio de Janeiro, Ocupação Iboru, que a gente faz exposições e eventos lá. Tenho trabalhado bastante, mas isso é muito bom, cara. Eu escolhi trabalhar com isso.
“A procura é mais importante do que a “batida perfeita”. A procura da batida perfeita é um lugar que mexe com essa utopia que é a vida.”
E não sentes falta do descanso? Não é algo que estejas a planear fazer?
Cara, a minha mulher fala que eu tenho horror à palavra férias. Ela fala: “vamos tirar as férias?” E eu: “nããão”! [risos] Então, meio que eu tiro férias trabalhando, sabe? Depois da turnê na Europa, a gente vai ficar alguns dias por aí. Mas, de uma certa maneira, eu vou trabalhar. Vou visitar museus, vou visitar amigos… Isso é uma forma de trabalho.
E já encontraste a “batida perfeita” [referência ao seu segundo disco a solo, À Procura da Batida Perfeita]?
Cara, eu costumo dizer que a procura é mais importante do que a “batida perfeita”. A procura da batida perfeita é um lugar que mexe com essa utopia que é a vida. Se você não tem essa utopia lá na frente, de querer um mundo melhor, de querer conquistar algo… isso, para mim, pelo menos, apaga esse sonho. Essa utopia é o que me alimenta. Então a procura vale mais do que a batida perfeita.
Mas, se houvesse uma batida perfeita, será que seria o samba?
Acho que é muito pessoal, que tem muito do momento! Agora pode ser, daqui a pouco pode ser outra coisa. Quando eu faço uns projetos, eu costumo ouvir algo que não tem nada a ver. Por exemplo, eu estou ouvindo um disco de uma dupla que é o Anderson .Paak e o Knxwledge, se chama “NxWorries”. Saiu agora o segundo disco dessa dupla, que para mim é o disco do ano até o momento. Eu estou ouvindo muito uma banda inglesa que se chama Sleaford Mods. É uma banda de pós-punk inglês. Eu gosto muito desse universo que não tem nada a ver com o que eu estou fazendo, daí esse universo alimenta o que eu estou fazendo. Eu tenho certeza que nenhum sambista nesse mundo ouve Sleaford Mods, a não ser eu! [risos] Acho que esse universo me ajuda muito na criatividade. Então, a batida perfeita para mim é esse tanto de coisas. Um cara lá de Nottingham, sei lá de onde na Inglaterra, porque eu nunca fui em Nottingham, se conecta comigo aqui no Rio de Janeiro por conta de tanta facilidade que a gente tem. Eu acho que isso é sensacional. A gente está vivendo um momento incrível, mas que tem esse medo, né? Quando o Chuck Berry toca aquela guitarra [imita som da guitarra], acho que teve muita gente que falou: “nossa senhora, que horror isso”. E agora isso é um clássico. Acho que a gente vai olhar lá na frente e vai ver. Porque, cara, o que tem conteúdo, fica. Essas dancinhas do TikTok, elas vão desaparecer. Mas o que estão fazendo de conteúdo no TikTok, isso vai ficar.
E sobre os concertos que vens dar a Portugal, como é que consegues passar a energia do local que inspirou o álbum para o espetáculo ao vivo?
A primeira imagem que me veio à cabeça, quando eu comecei a pensar no conceito do Iboru, era um paredão de sound system com uma mesa de roda de samba na frente. E é exatamente isso que a gente está fazendo no show, sabe? Uma mesa com a roda de samba e um cara tocando em PC, e toda essa alquimia entre o eletrónico e o acústico. Acho que a gente está levando isso para o palco e está levando isso muito bem. É isso que as pessoas vão encontrar. O mix, o encontro da cultura do sound system e do grave com a roda de samba. O que as pessoas vão ver hoje ainda é um embrião do que eu estou chamando o “novo samba tradicional”. O que a gente tem a oportunidade de mostrar hoje é o que eu vislumbro lá na frente ser uma coisa muito maior. Mas acho que as pessoas vão ter a oportunidade de ver hoje que está nascendo o novo samba. E eu tenho certeza que é isso que a gente vai mostrar aí. E pode ter certeza que eu vou levar todos vocês que forem lá [ao concerto] ao quintal da Tia Doc, em Madureira, ao Bronx, em Nova Iorque… esse mix de tudo isso do eletrónico com o samba, sabe?